Fluxo turbulento

(do oceano e da escrita)

Turbulência

[Insira aqui uma metáfora bonita sobre mares turbulentos e a vida.]

Descrição da imagem: fotografia do mar em tons escuros em que se percebe o movimento da água através das curvas da espuma da superfície e das ondas. Foto de Faris : https://www.pexels.com/pt-br/foto/aqua-fundo-segundo-plano-experiencia-7992270/

(NÃO SE ESQUEÇA DE VESTIR SEU COLETE SALVA-DIGITAÇÃO, ESTAMOS PRESTES A ATRAVESSAR FLUXOS DE ESCRITA REVOLTOS E A PILOTA NÃO GARANTE A SEGURANÇA DA GRAMÁTICA)

Essa é uma edição que eu venho empurrando e adiando e enterrando embaixo de muitas camadas de sedimento na esperança de que em algum momento eu teria um testemunho sólido de eras geológicas pra me justificar. Ou pelo menos pra soar coerente. Mas, uma hora a onda quebra e coloca todos os grãos de areia em suspensão de novo, e já diziam pessoas muito sábias da internet: o que a escrita quer da gente é coragem. Então, em vez de camadas de rochas sedimentares, vamos de turbulência!

O oceano é turbulento, embora não necessariamente do jeito que você está pensando. É muito mais sobre o comportamento da água enquanto fluido viscoso do que sobre as ondas agitadas numa tempestadade, embora essa cena esteja diretamente relacionada a água do mar se comportando como se comporta.

Particularmente, turbulência sempre me remete primeiro a aviões sacudindo furiosamente, me fazendo questionar a sanidade de estar numa caixa de metal aerodinâmica em grandes altitudes.  Mas, tanto em oceanografia quanto em meteorologia (ou seja, no oceano e atmosfera), o conceito de turbulência na verdade diz respeito a um tipo de força de viscosidade atuando num fluido. (Ufa, tem até que pegar um ar pra dizer isso tudo.) Movimentos turbulentos são aqueles em que várias flutuações de velocidade ocorrem de forma aleatória de tal forma que são modelos bastante complexos de se analisar, de forma que só conseguimos analisar estatisticamente. Isso é uma parte importante do estudo da dinâmica dos fluídos, que envolve muitas equações e índices e vetores e escalas e eu não vou destrinchar fórmulas aqui.

Quando um fluido está se movendo de forma organizada e linear, em camadas que não se misturam, dizemos que está escoando de forma laminar. Quando as camadas vão fazendo curvas e meandros e se misturas, dizemos que está escoando de forma turbulenta — percebemos a turbulência em seu efeito final, e não em seus múltiplos pequenos movimentos agitando o fluido de maneira caótica.

Descrição da imagem: Demonstração com setas o escoamento laminar e o escoamento turbulento dos fluidos. Na parte superior, três setas retas paralelas umas sobre as outras apontando na mesma direção representam o Escoamento Laminar. Na parte inferior seis setas de diferentes espessuras e fazendo curvas diferentes cada uma se comportando de um jeito representam o Escoamento Turbulento.

Se você não inseriu a metáfora lá em cima, deixo aqui uma pra você: percebemos a turbulência quando chegamos em casa tão exaustos que não sabemos exatamente o que foi pior: horas no transporte público, filas enormes pra qualquer coisa, o chocolate que caiu no chão justo no último pedaço, alguém fazendo grosseria, imprevistos e atrasos, trabalho, família, política — ou tudo junto e misturado porque não ter derramado café na roupa logo cedo podia ter mudado todo o rumo do dia.

O oceano é turbulento. Está sempre em um tipo de movimento com variações instantâneas de velocidade e outras variáveis que constantemente fazem com que as camadas de água com propriedades diferentes se misturem e mudem de direção e criem meandros e vórtices enquanto a maior parcela dessa água flui mais ou menos nessa mesma direção. A escrita também (e a vida também, mas vamos deixar essa escala maior de lado).

Nesse caos de várias pequenas coisas agitando o fluxo, escolho começar falando de Areia e Pólvora, e depois vou retomar uma edição anterior da newsletter em que falo de bichos de concha, e quem sabe depois eu não chego em algum lugar com isso aqui.

Areia e Pólvora

A história que mora no meu coração, e que de tão fundo, está virando pérola aos poucos.

Então, antes de tudo, desculpa pelo atraso. Sei que tenho leitores que acompanham a história e a vibração dessas pessoas já me aqueceu o coração diversas vezes. Eu já tinha feito comentários sobre isso antes, mas aqui vai um breve resumo sobre a história por trás da história:

Areia e Pólvora é na verdade uma continuação! Só que não. Era a segunda a história do meu universo steampunk, que eu escrevi enquanto a primeira história (vulgo, Sal e Sol – ou Sol e Sal, eu mesma nunca lembro) sobre o irmão de Anabela estava em leitura crítica. Quando SS voltou da leitura crítica ficou claro que eu precisava continuar trabalhando nela, organizar ideias, e isso obviamente impactava em AeP. Naquela altura, eu já estava tão envolvida com Delfim e Anabela que depois de reescrever SS e ainda estar insatisfeita, eu resolvi inverter várias coisas e nisso AeP passou a ser a primeira parte. Tudo ótimo, reescrevi AeP e deixei esse universo num potinho dentro do meu coração enquanto eu dedicava meu tempo a tentar editais e colocava outras ideias no papel.

Quando eu tive a ideia da newsletter parecia óbvio que era o melhor lugar pra lançar Areia e Pólvora de forma independente. Se eu ia falar de 20.000 Histórias Submarinas, uma dessas podia ser minha, não?

[Aí começa o movimento turbulento entrando em ação e sendo sentido.]

Eu sou do time que acredita sim em cursos e prática e estudo para aperfeiçoamento, e a dedicação que eu tive em me aperfeiçoar foi me fazendo perceber o quanto Areia e Pólvora ainda precisava de trabalho. A cada capítulo, a quantidade de edições feitas antes de enviar foram ficando cada vez maiores. E talvez você esteja pensando que isso foi muito amador de minha parte e, bom, foi mesmo. Inclusive, lembro de ter escrito nas primeiras edições da newsletter que tudo era um grande experimento. Esse já me deu resultados, nem todos muito positivos.

Nesse bolo de querer melhorar e aperfeiçoar a história, uma outra coisa aconteceu: o twitter, mais ou menos. A síndrome de impostora gosta muito do twitter e de ter escancarada de forma tão clara todos os motivos pelos quais não somos boas o suficiente, né. Tudo que a sua história não tem, tudo que você deixou de abordar da forma apropriada, tudo que é mais do mesmo, tudo que é eurocêntrico e não original e sem graça. E para além disso, tudo que você NÃO está fazendo pra divulgar sua história e sua opinião e atrair mais gente, mais público, mais consumidores.

Acho que vocês conseguem enxergar o quadro geral.

Nossa, mas que bobagem se deixar afetar por isso. Não pode!

É, bom, sou fraca. Desculpa de novo, mas eu falei que era bicho de concha. Bicho meio sem forma e viscoso e gosmento que precisa da segurança da concha.

Se eu tivesse fechado uma concha mais rígida em torno de Areia e Pólvora antes, isso provavelmente não teria acontecido. Quando se joga uma história toda de uma vez no mundo, ela tá na corrente e não importa o que aconteça, ela é como foi finalizada e qualquer alteração vai fazer dela uma outra coisa, uma outra versão. Quando se lança de forma seriada, e os maiores sucessos de novela estão aí pra provar, existe a possibilidade de interação contínua com o ambiente externo ao da criação e a não ser que você se mantenha muito disciplinada, a história não está terminada até ser enviado o capítulo final. O que aconteceu foi que, quanto mais perto do final eu fui chegando, mais insatisfeita eu fui ficando com o FIM. Insatisfeita a partir dos meus novos conhecimentos e amadurecimento enquanto escritora e pessoa. O que não quer dizer que o final de AeP como é hoje seja ruim, suspeito que boa parte da minha visão negativa esteja sob influência de uma série discursos repetidos rotineiramente na bolha literária de escritores indies e não tão indies assim.

Nesse meio tempo, o fluxo turbulento também foi agindo em outros campos. Histórias que eu amo sendo recusadas e o luto por elas, histórias finalizadas que exigiram muita força, histórias abandonadas, histórias em andamento e guardadas bem fundo justamente para evitar que o mesmo acontecesse com elas.

E a vida, claro. Desde o lançamento do primeiro capítulo de AeP eu já mudei de casa duas vezes sendo uma dessas de estado e cidade, voltei a trabalhar presencialmente e passei a ter aproximadamente duas horas do meu dia presas ao deslocamento urbano, e precisei estar mais disponível para pessoas em geral (o que também me demanda muita energia, como boa introvertida que sou).

Então, o que está acontecendo com Areia e Pólvora é isso: o final está sob quarentena até eu decidir o que é realmente bom ou ruim sobre ele. Peguei isso tudo e coloquei dentro da minha concha pessoal, e estou transformando isso numa pérola. As pérolas são produzidas por algumas espécies de moluscos (ostras, principalmente) como uma reação a algum corpo invasor que não conseguem espelir; o grão de areia fica dentro da ostra e ela vai depositando camadas de madrepérola em volta até formar o que conhecemos como as bolinhas redondas e reluzentes usadas em jóias (Duas metáforas pelo preço de uma!).

A prova de que a história não está de forma alguma abandonada está aqui: um pequeno spoiler, um mimo, pra você que ficou de alguma forma afetado com essa pausa imprevista.

Descrição da imagem: pedaço de uma ilustração em tons de verde, azul, laranja, preto e branco. Vemos o rosto de uma mulher de óculos de aros redondos sorrindo com a mão levantada por cima da testa como se protegendo da luz do sol enquanto tenta enxergar mais longe; ela tem cabelos pretos sacudidos pelo vento. A arte é de Duca Baumgarten.

Esse é só um pedacinho, o rosto animado de Anabela espiando o que vem no horizonte. Quando eu retomar o envio dos capítulos, eu mando a ilustração completa, feita por Duca, artista incrível que eu sempre quis que fizesse uma capa minha nesse estilo!

Conchas

Até nós, criaturas esquisitas, estamos sujeitas ao efeito da turbulência do mundo de fora da concha.

Recentemente um bocado de gente tem falado sobre essa pressão para se mostrar — tudo que um bicho de concha não quer fazer. Lá naquela edição passada eu já tinha dito sobre como queria vender minhas histórias e ser lida, e sobre como me preocupava que algumas vezes parecia que o marketing contava muito mais do que a qualidade da história. Desde então a conversa evoluiu bastante, e eu não vou conseguir falar nada melhor ou mais verdadeiro do que a Fernanda já disse aqui na newsletter dela.

Eu tenho me esforçado, de verdade. No apagar das luzes do twitter, cada vez mais insalubre pós bilionário com crise de meia idade, tenho tentado encontrar uma pedrinha pra me fixar no instagram e abrir a concha quando parece adequado. Para meu azar (ou sorte), eu não tenho uma vida muito “instagramável”. Entre a minha necessidade por privacidade e a minha tendência a simplicidade, eu não tenho muitas coisas com estética combinando, ou uma casa 100% arrumada pra montar cenários (falsos) do meu dia-a-dia construído na base de café e imprevisibilidade e “foi o que deu”. O interior do elevador do prédio já deve ter aparecido mais vezes nos stories que qualquer parte da minha casa e não é à toa. Pode até ser que ninguém tenha essa vida instagramável de verdade, pode até ser que tudo que vemos nas redes seja puramente performático, seja CoNTeÚDo apenas — mas eu ainda não encontrei dentro de mim a disposição para essa performance. Se é pra mostrar, se é pra colocar a gosma pra fora, tem que ser como ela é. Pele sem maquiagem, o mesmo canto da mesa sempre pra não aparecer a bagunça do sofá ou pra que pequenos itens particulares da minha vida continuem particulares, longos períodos de sumiço por motivos de trabalho, leituras, vídeos de bichos do mar, umas plantinhas, umas coisas aleatórias, e café com as mesmas canecas. Quando tiver lançamento, falar do lançamento que nem uma boba porque sou do tipo que fica feliz com qualquer vitória por menor que seja.

Tentando criar coragem também para divulgar os textos da newsletter por lá, mas isso tem muito mais a ver com a percepção que colegas da pesquisa tem de mim. Um outro fator turbulento difícil de analisar, também.

Eu, hoje, não tenho como me dedicar exclusivamente a escrita — e nem sei se esse dia ainda vai chegar. Então, acho que ainda posso me dar ao luxo de pensar mais em qualidade do que quantidade, mais verdade e menos encenação, apesar de ouvir de todos os lados o clamor apenas por MAIS MAIS MAIS. Mais histórias, mais agilidade, mais produtividade, mais exposição.

Quando penso numa leitora hipotética entrando nas minhas redes, ou até mesmo lendo as minhas newsletters, penso no que eu gostaria que ela visse. No que gostaria que soubesse sobre mim, e uma dessas coisas é justamente isso: eu não sou produtora de conteúdo. Tem uma linha que eu não quero atravessar, um limite cujo espaço além eu sei que não consigo habitar. Não quero passar de ser pesquisadora e escritora para produtora de conteúdo e escritora. Eu quero ser lida, e não consumida. Qualquer coisa boa que eu tenha dentro de mim pra colocar em palavras não vem de algo que eu possa fotografar e postar, a não ser talvez livros e o mar, e mesmo esses são elementos cujas associações são únicas pra cada pessoa.

Esse equilíbrio entre divulgar os escritos para ser lida e manter uma coerência interna do que mostro para o mundo provavelmente é bem difícil de alcançar em fluxos turbulentos, e entre amigas estamos sempre pedindo socorro e sugestões e uma força de compartilhamento. [As caprichetes segurando as mãos umas das outras é a coisa mais linda do mundo]

E isso me traz de volta pra retomada da newsletter [mais uma variação no nosso fluxo turbulento do texto de hoje].

Esse é um espaço muito mais meu que a rede das fotos ou a rede do passarinho bilionário. E é também um espaço que me faz bem, sempre tenho um retorno legal de alguém que foi tocado pelo que leu aqui e acabo sempre tendo ideias em consequência. Nesses meses eu comecei e larguei vários textos pra enviar aqui, todos me pareciam bobos demais perto de outras tantas reflexões mais intelectuais que colegas (que eu admiro) têm enviado em suas newsletters (“quem quer saber sobre a escala de tamanho de grãos de sedimento quando o mundo tá acabando?” “ninguém vai ligar pros mares lunares e como isso serviu de inspiração pra dar nome a um planeta na sua história, isso só faz sentido na sua cabeça” “vai falar de Júlio Verne de novo? As pessoas não gostam dele, ultrapassado” ...).

Daí aconteceu uma coisa com a minha outra identidade, a oceanógrafa. [só segue o fluxo turbulento do raciocínio]

Durante duas semanas a Bittencourt et al. ficou quase que exclusivamente envolvida com a pesquisa com um golfinho sendo reabilitado para ser devolvido ao mar. A história completa tá nas redes do MAQUA, mas em resumo ela (era uma golfinha) foi tratada e recuperada com sucesso, e foi solta com um rastreador para que soubéssemos para onde ela foi e se voltou ao seu ambiente ideal. Foi tudo um sucesso, tudo que podia dar certo deu, e toda vez que eu compartilhava uma atualização sobre a Teresa (sim, ela ganhou um nome) alguém ficava feliz e vinha comentar sobre isso.

Foi um bom lembrete que, o mundo acabando ou não, tem gente que se interessa sobre as miudezas e esquisitices que fazem o planeta ser o que é. Tempo desses mandei um áudio pra Anna Martino respondendo a uma pergunta sobre a “matéria escura feita de peixes” do oceano e isso teria dado uma edição bem interessante. Outro dia saiu o conto da Jana Bianchi que eu fui consultora sobre baleionas e até ganhei uma personagem com meu nome. Volta e meia alguém vem me perguntar alguma coisa de mar e eu sempre faço caber um mundo borbulhante numa resposta que podia ter sido uma newsletter se a minha concha estivesse um pouquinho mais aberta.

Talvez as opiniões e curiosidades que eu traga aqui não sejam exatamente relacionadas aos assuntos polêmicos do momento, mas o mesmo vale pra minhas histórias e pra tantos livros que eu me encontro lendo e relendo nesses momentos em que a turbulência é tanto que perco a referência de cima e baixo. Então a proposta é essa: continuar nadando, sem lutar contra o fluxo mas sem me deixar afundar.

Areia e Pólvora talvez venha a reboque, um pouco mais devagar, mas vai vir. As outras 19.999 histórias submarinas também.