20.000 Histórias Submarinas - #12 Conchas

Já começo pedindo desculpas pela confusão, mas a minha rotina segue um pouco confusa, então é isso que tem pra hoje. Um texto meio sobre bichos marinhos e meio sobre fazer escrita e sobre mostrar seu trabalho e usando conchas como metáforas.

Atenção! Essa newsletter foi escrita sob condições de viagens turbulentas (literalmente), pode conter erros de digitação e lágrimas. Para se proteger, vista seu colete salva-digitação antes de embarcar.

Conchas (e porque não sair delas...)

Conchas. As joias do mar. Exoesqueletos em forma de obras de arte. Guardiãs da memória. Artigo de colecionador. Receptáculos de carbonato de cálcio para parte da vida marinha. Refúgios para escritoras oceanógrafas introvertidas.

Ok, essa última parte é um exagero (nem tanto), mas a metáfora segue valendo. Sair da própria concha costuma ter uma conotação positiva – algo como finalmente ter coragem para se revelar, para interagir com o mundo do lado de fora e resplandecer como uma linda pérola que tinha ficado escondida esse tempo todo. Culpo integralmente a deusa Vênus nascendo na pintura de Sandro Botticelli por essa ideia que sair da concha é algo bom.

Sair da própria concha significa morte certeira pra 95% dos animais marinhos que habitam uma. Tirando os que ocupam temporariamente conchas vazias num uso capião ecológico (e que são o motivo de não ser legal catar conchas pra colecionar, muitos animais precisam de conchas vazias!), sair da concha significa virar comida para a maioria.

E com isso, voltamos a falar de moluscos de concha externa! Quem tá aqui comigo desde a primeiríssima edição lembra que já falei de cefalópodes e que eles são moluscos! Hoje trago o lado mais introvertido da família – ops, Filo. (Reino Filo Classe Ordem Família Gênero Espécie, grosseiramente falando. “Rato Frito Com Orégano Fica Gostoso, Experimente” pra quem precisa de ajuda pra lembrar.)

O filo dos moluscos é um dos mais diversos, principalmente considerando o registro fóssil. Apesar de termos muitas espécies terrestres (alô, caracóis e lesmas), a origem do grupo está no mar e através das conchas preservadas em rochas e camadas de sedimento, temos uma boa noção de quando surgiram e das extinções ao longo do tempo. Atualmente, temos moluscos com conchas externas de características diversas (inclusive alguns sem conchas, mas hoje vou deixar eles de lado). Os bivalves são todos os moluscos que têm duas metades de conchas (ostras, mariscos, vieiras, mexilhões...). Também temos gastrópodes marinhos, que vivem dentro de suas conchas espiraladas. E não menos importante apesar de mais taxonomicamente distante, também dentro do grupo dos moluscos com conchas externas, temos espécies de náutilos no grupo dos cefalópodes.

Ao contrário de crustáceos (camarões, caranguejos, lagostas, siris...), que de tempos em tempos trocam suas carapaças para terem espaço para crescer e maturar, bivalves e gastrópodes e náutilos ficam sempre dentro de suas conchas. Elas vão crescendo para comportarem o corpo do animal.

Os bivalves são essencialmente sésseis, se fixam ao fundo ou à costões rochosos e lá ficam filtrando a água para se alimentarem a não ser que alguma catástrofe ocorra. Gastrópodes não ficam parados, vão se movimentando pelo fundo num passo lento e ritmado, buscando comida pra raspar com sua rádula (a língua dos moluscos). Já os náutilos têm vida livre, nadando e migrando por grandes distâncias e profundidades. (Talvez náutilos sejam meu grupo favorito pois eles têm suas conchas bem bonitas e viajam bastante. A combinação perfeita. Não é à toa que esses animais emprestaram seu nome ao submarino do Capitão Nemo e estão na logo dessa newsletter também.)

Independente do grupo, alguma dessas criaturas parece que quer ou precisa sair da concha? Que vai tirar algum benefício disso? Como é que isso virou uma metáfora positiva? Eu gosto muito da minha conchinha confortável, obrigada, e preferiria não ter que sair dela.

No mundo natural de hoje, nos oceanos de hoje, animais com conchas externas além de terem que lidar com todos fatores naturais de sobrevivência (comida, predação, reprodução) também estão sob o impacto da acidificação dos oceanos. Com o aumento da acidez da água do mar, o carbonato disponível para formação de conchas e esqueletos fica muito reduzido. Diferentes organismos têm diferentes graus de sensibilidade, mas no geral a tendência das conchas e carapaças é ficar mais frágil quando expostas por muito tempo ou a uma grande quantidade de acidez — elas vão aos poucos sendo dissolvidas por um ambiente que antes era perfeitamente equilibrado.

Será que se a concha de Vênus de Botticelli tivesse sido aos poucos dissolvida e quebrada ela teria emergido tão maravilhosa daquele jeito? Tenho minhas dúvidas. Sair por escolha é bem diferente de martelarem e martelarem que você precisa deixar seu abrigo ou não vai conseguir nada.

Eu fujo um pouco do tema porque ele me apavora um pouco. “Quem não é visto não é lido.” Isso é uma das coisas que acaba valendo para as minhas duas carreiras, e em ambas as situações me joga pra baixo. Ser vista não é bem uma coisa que me deixe confortável. Gosto de escrever minha ciência/minhas histórias e jogar no mundo, e deixar a maré levar pra onde tem que ir. Apesar das minhas publicações científicas não terem o peso de um artigo na Nature ou na Science, eu tenho a minha parcela de contribuições publicadas que encontraram seu caminho até a bibliografia de outras pessoas fazendo ciência e eu considero isso uma medida de sucesso. Essas publicações também serviram para apontar questões sobre a Baía de Guanabara e forçar algumas tomadas de decisão, por menores que tenham sido, e se ajudou pelo menos um tico na conservação da baía e seus botos residentes eu também penso que é uma outra medida de sucesso (e essa muito recompensadora). Dito isso, eu sei também que poderia ter feito mais no quesito “conseguir citações”.

Não se faz ciência sozinha, sou bem consciente disso. Mas também não tenho facilidade para “fazer ciência socializando”. Eu sou introvertida, não fico confortável em grandes aglomerações de pessoas e minha tendência ao silêncio também não deixa as pessoas confortáveis comigo. Eu sei fazer apresentações (inclusive, vou fazer uma nesse sábado, que é uma das raízes da News de hoje), eu sei (razoavelmente) dar aula e explicar sobre assuntos. Sei conversar também, mas isso exige certo esforço de mim. Não vou ficar aqui desfiando sobre a mente da pessoa introvertida, até porque tá longe de ser a minha especialidade, só posso falar sobre mim. E eu sei que a minha pesquisa não tem capilaridade em alguns laboratórios brasileiros porque... bom, muita gente não sabe que eu existo. Nos congressos eu não costumo ficar horas batendo papo com qualquer um que passa e nem vou descrever aqui a coisa absolutamente estranha que eu sou na hora de interagir com pessoas desconhecidas no pós-evento.

Não se faz um livro sozinha, outro fato que entendo e aceito. No geral, trabalho bem com as pessoas que se juntam para trabalhar nas minhas histórias. Edição, preparação, revisão... acho que a maioria (se não todas) as pessoas que já mexeram num texto meu vão concordar que eu não encrenco com alterações sugeridas. O que me pega, de verdade, é o tal do marketing.

Periodicamente o tema surge nas redes sociais e nos grupos de escrita. Divulgar seu trabalho é necessário, se não ele não encontra o público-alvo. Menos frequente, mas com regularidade, também surge uma outra sensação, uma que sussurramos porque não queremos que seja verdade apesar dela estar sempre à espreita nos cantos mais escuros da mente ocupada pela síndrome do impostor: saber fazer marketing vale mais que escrever bem.

Rindo de nervoso. Eu não sei se vale (espero que não), mas é difícil não pensar assim.

Essa me parece uma questão que tem mais camadas que a concha mais antiga de um náutilos. É verdade, ou não é? Vale pra publicações tradicionais mas nem tanto para independentes? Difere de livros para revistas? Perguntas e perguntas e eventualmente o desânimo.

Algumas pessoas talvez não se importem tanto com isso. Queria ser uma delas, mas não sou, infelizmente. Eu quero ser lida. Se não quisesse não enviaria newsletters e nem faria nenhum esforço para publicar minhas histórias em diversos meios, teria continuado na toada da Lis de antes da pandemia escrevendo apenas para si mesma. Quero ser lida, mesmo que não consiga necessariamente ser vendida, apesar dessas duas coisas andarem tão juntas. (E ser vendida seria bom também, viver da escrita pode não ser um sonho possível mas é também um sonho teimoso que fica me cutucando. Queria, sim, que comprassem minhas histórias e poder dar muitos dinheiros pros meus agentes da Magh e poder escrever sem culpa por não estar dedicando tempo e concentração ao outro trabalho. Queria, sim, que meu pai passasse na livraria e visse meu livro na prateleira. Independente de onde vieram e do motivo, essas vontades estão aí, agarradas e teimosas desde bastante tempo e eu não tenho forças pra questioná-las.)

Esse assunto nebuloso acabou brotando na newsletter hoje porque estou digitando esse texto enquanto estou indo para um congresso que vai se sobrepor em dias a um dos grandes eventos literários do eixo Rio-São Paulo e eu não consigo parar de pensar sobre como seria a experiência. Ao mesmo tempo que gostaria de ir, também fico me perguntando se tem um lugar pra mim num evento desses — sob vários aspectos. Minhas histórias um dia vão ser conhecidas e queridas o suficiente para que eu seja convidada? Se eu tivesse comprado ingresso e ido, eu ia ter um cantinho pra ficar vendo tudo acontecer sem me sentir um peixe fora d’água? Muitas questões. Nos eventos científicos eu tenho meus artigos e contribuições pra usar de bandeira/escudo/boia salva-vidas porque... bom, as pessoas podem não saber que eu sou mas se elas forem estudar sobre boto-cinza e poluição sonora no Rio de Janeiro é possível que saibam quem Bittencourt et al é. Vilas Boas et al talvez não seja alguém ainda e é possível que não chegue a ser, se as histórias não encontrarem quem as leia.

Acho que tenho uma presença OK nas redes sociais, embora saiba que ainda é uma frequência bem distante do que seria um marketing ideal. Pra quem (quase todo mundo da escrita) tem mais de um trabalho, essa presença também tem contornos de exaustão e administração de um tempo cada vez mais curto e devorado por transporte público, prazos, saúde... Não sei como resolver isso que é um problema até para quem não tem características introvertidas. Vejo pessoas com mais tempo de mercado e com mais histórias publicadas também buscando meios de lidar com a pressão do tal do marketing e minha impressão é que ninguém chegou numa resposta muito satisfatória, embora no fim das contas todo mundo consiga se virar de um jeito ou de outro. Com isso tudo, ainda lido melhor com as redes. É um lugar onde posso colocar meus tentáculos de fora, fazer uns malabarismos discretos, e voltar pra minha concha ao menor sinal de perigo.

Mostrar uma história para as pessoas não deveria estar diretamente ligado a se mostrar o tempo todo. 

Tenho certeza de que existem sim muitas pessoas por aí que são como a Vênus esperando a concha se abrir para mostrarem ao mundo toda sua glória. Mas e nós, bichos esquisitos, invertebrados e gosmentos e de formas estranhas? A parte que mostramos ao mundo, a nossa concha, é bonita também e válida como pacote completo, não? Somos válidos de dentro da concha mesmo (e também ficamos bem na sua estante), com todo o preenchimento melecoso que chamamos de corpo confortavelmente moldado às paredes.

Na praia, nas camadas sedimentares que marcam os oceanos pré-Antropoceno, no fundo do mar, nas coleções de museu... a variedade e diversidade de conchas, todas elas com um oceano inteiro dentro de si, tem uma beleza própria.

Sair da concha talvez signifique abandonar uma das partes mais valiosas de si, perder justamente o que te tornaria único (ainda que esquisito) e identificável no meio de tantas criaturas. Os tais dos algoritmos têm ditado tantas escolhas ultimamente, e enquanto vejo as pessoas tentando formas de contornar os malditos também vejo muita gente se conformando e tentando correr atrás das trends (ou melhor ainda, tentando criar uma trend!). Pode até ser que esse — aceitar que o mercado é assim mesmo e sinto muito — seja o caminho certo, se tem alguém medindo certo e errado, mas eu espero de verdade que não seja o único. Espero por mim e por tantas outras pessoas que eu sei que tem histórias incríveis a oferecer, guardadas embaixo de uma sólida e confiável camada rígida de cálcio e calcário. E não falo apenas sobre as pérolas perfeitamente redondas e brilhantes das ostras. Pérolas imperfeitas, coisas disformes e gosmentas fazem parte do mundo, não importa o quão pra baixo do tapete sejam jogadas.

Acho que a estante das pessoas tem espaço pra todo tipo de criatura. Peixes ornamentais e anêmonas coloridas e baleias exibidas e arraias elegantes e poliquetas com jeitão de mini-monstro marinho e conchas de formatos diversos e tantos outros bichos e plantas. As histórias para contar estão aí, nas mais diferentes origens e formas. 20.000 Histórias Submarinas jamais viriam da mesma espécie de peixe. Ninguém pediria a um golfinho para não saltar, então por que ostras e lemas-do-mar precisam abandonar suas conchas? Estar dentro de uma concha não equivale a estar completamente isolada de tudo, só quer dizer a interação com o tudo é diferente. (Aliás, a maioria dos moluscos de conchas externas vive em conjunto de alguma forma, porque tendem a encontrar os lugares com as melhores condições pro seu estilo de vida e lá permanecer). Um pouco menos espalhafatosa, um pouco mais devagar, dando uma espiada e depois se retirando.

Não sei se isso aqui tem uma conclusão e sei que estou chegando bem perto de falar de um cenário utópico onde cada pessoa pode ser o que é sem julgamentos ou consequências. Não sei se as coisas que quero são incompatíveis com as coisas que sou, ando muito insegura com as minhas habilidades de uma forma geral. Na verdade, nunca fui tão grata pelas amizades que aceitaram sem qualquer restrição as minhas aleatoriedades e pela confiança de Sol Coelho e Gabi Colicigno da Magh que acreditaram que conchas esquisitas merecem uma chance também, e é por causa dessas pessoas que ainda acredito que dá pra chegar lá (mesmo que o meu “lá” tenha uma aparência um pouco diferente).

Também não sei se esse texto vai servir para alguém ou alguma coisa, mas saiba que: se você também tem uma concha, saiba que ela é muito legal. Se você nasceu nela ou se encontrou uma vazia e a ocupou. Se ela é espiralada, dividida em duas metades, colorida, desbotada pelo tempo, incrustrada por algas ou difícil de descrever.

(E se você não tem uma concha, dê uma chance pra galera esquisita, vale a pena.)

Nas próximas news...

Deixamos Anabela numa situação bem complicada no último capítulo de Areia e Pólvora, não foi? Então na próxima edição vamos ver o que aconteceu e vai acontecer com ela, enquanto Ladrão e Delfim se contorcem de preocupação...