Guia Turístico de Averrio

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Boletim Lunar

No momento de envio dessa edição, a lua está no começo do quarto crescente, com 7% da superfície visível. A maré já não está no ponto mais baixo do dia, mas ainda tem um longo caminho a subir.

Luas e Marés - 09/2025

Hoje em Luas e Marés

Bastidores da construção de Averrio e alguns dos meus sentimentos sobre o Rio de Janeiro, e também novidades sobre Feras (e planos para 2026). Não se esqueça de vestir seu colete salva-digitação, essa newsletter infelizmente não conta com o suporte editorial de outras pessoas além de quem a escreve.

Averrio (de Janeiro)

Começo a escrever essa edição do bloco de notas do celular porque é o teclado a que mais tenho acesso nos tempos atuais em que pelo menos um dos braços está ocupado quase o tempo todo com o Pacotinho. Tenho desenvolvido a habilidade de fazer muitas coisas com uma mão só, eventualmente com os pés e até com o queixo. Acho que nunca cheguei tão perto de ser um polvo quanto agora, o que é uma conclusão muito insana quando penso que também nunca me senti tão mamífera quanto nesse primeiro mês de vida nova.

Mas esse não é um texto sobre maternidade, não sei quando me sentirei apta a colocar em palavras essa experiência. O que eu e minha filha temos aprendido está em constante transformação, todos os dias, assim como ela e eu. Isso faz com que muitas certezas voem pela janela e eu, rata de hábitos acadêmicos que sou, acho que preciso de mais observações antes de poder descrever esse fenômeno com propriedade.

Além disso, estamos em época de livro novo e publicar um livro quase totalmente escrito durante a gestação é uma vitória que eu não imaginei que ia comemorar na vida. Feras, livro que conta a história de Heitor Lacarez e Selene Veronis (coadjuvantes de Garras), foi sob muitos aspectos bem mais difícil de escrever do que o primeiro. O sono extremo e as dores de cabeça no primeiro trimestre, a pressão de entregar uma história tão boa quanto a outra, uma protagonista com personalidade tão diferente da de Diana, temas mais sutis e suaves do que Garras…

Por tudo isso, ver esse livro sair dentro do calendário planejado é uma conquista enorme e sou extremamente grata a minha editora Bia Oliveira que topou o desafio de fazer acontecer. Então quero falar sobre o livro, sobre esse universo de monstros reais e humanos monstruosos. Quero compartilhar sobre os processos e pequenos bastidores, quero que tudo seja tão palpável para os leitores quanto foi pra mim nos últimos 11 meses.

Então hoje venho escrever sobre o velho e novo cenário dos meus dois romances, Garras (lançado ano passado pela Editora Rocco) e Feras (vindo aí em Outubro pela mesma editora). Eu recebo com alguma regularidade comentários que variam na linha de “como você conseguiu imaginar tudo isso no Rio de Janeiro?”. E é uma pergunta engraçada porque o Rio é fantástico por si só, mesmo que ele não vivesse no meu imaginário desde tanto tempo. Uma cidade construída sobre o sangue derramado pela invasão portuguesa e fortalecida com mais sangue (e, vá lá, óleo de baleia) não poderia ser qualquer outra coisa; a mistura de culturas e crenças e crimes cria um tipo especial de argamassa que cada um usa para construir o que quiser.

Eu não nasci aqui, embora com certeza tenha me tornado uma pessoa mais sólida e mais “eu” quando me mudei pra cá para perseguir uma formação superior e, claro, o mar. Meu primeiro contato com a cidade tinha o tingimento do passeio, do encantamento de uma criança vindo visitar família em finais de semana aleatórios. Um aniversário de primo, um passeio de barca. Um Natal, um tour pelos museus da cidade. Um encontro de família qualquer, um dia no Jardim Botânico. Mais tarde, já estudando oceanografia, o encanto pela cidade ganhou contornos mais complexos. Aulas de campo no Arpoador e Santa Teresa, passar todo dia pelo Maracanã e ouvir de casa o estádio comemorando gol, aprender a se deslocar numa cidade enorme e perigosa, ficar intima da Baía de Guanabara, sentir medo da violência, descobrir que tem que ir com medo mesmo.

Averrio, a minha versão fantástica do Rio de Janeiro, nasceu primeiro desse meu bolo de sentimentos complicados em relação a essa cidade que eu odeio e amo morar. Depois, nasceu do meu encantamento com a arquitetura antiga do Rio de séculos passados.

Os prédios antigos “do tempo do imperador” não existiam na minha cidade natal, tão jovem perto dos quatrocentos e tantos anos do Rio. Sempre que eu vinha aqui e ia ao centro respirar o passado já me sentia um pouco em outro mundo. Morando aqui eu adorava inventar desculpas pra ir ao centro, me perder nas ruelas mesmo estando convencida que já sabia me guiar no labirinto de ruas entre o Largo da Carioca e igreja da Candelária. Um dia eu estava fazendo alguma tarefa que tinha me oferecido pra resolver, justamente pra andar por lá. Eu estava perto da Praça Mauá e me chamou a atenção um homem andando um pouco a minha frente. Ele estava vestido de um jeito meio “acabei de passar cinco dias numa trilha e caí de repente no meio da cidade”, sabe? Roupas nem velhas nem novas, tênis enlameado, uma mochila gasta nas costas… e um gato malhado no ombro.

O gato estava meio de pé, atento ao caminho. O homem andava com propósito. Eu estava longe o bastante pra observar abertamente com segurança e perto o suficiente pra pensar que alguma coisa interessante poderia acontecer. De repente, a dupla virou a esquerda e entrou num DAQUELES prédios velhos e aparentemente abandonados. Arquitetura antiga, janelas de madeira fechadas e quebradas, paredes descascadas e rachadas — esses prédios brotam como flores no asfalto no meio de construções mais novas e mais bem conservadas no centro. São redutos de perigo e possibilidades, o esqueleto fraturado do Rio.

Naturalmente, quando meu caminho me levou a passar na frente da porta eu desacelerei e olhei lá dentro, porque a curiosidade matou o gato. Só que nesse caso não tinha gato, nem homem. Eles tinham sumido. Só vi um grande espaço vazio e abandonado, nem sinal de que alguém tinha entrado ali.

Uma alucinação? Um fantasma? Um mago e seu familiar? Uma imaginação fértil demais que não viu um lugar onde eles poderiam estar abrigados lá dentro? Não sei, nem nunca vou saber, mas o Rio de Janeiro é isso aí. Entre muitas coisas, é um lugar onde pessoas e animais entram em prédios velhos e somem — e é também um lugar onde essa frase pode ganhar conotações fantásticas ou pavorosas, porque pessoas desaparecem aqui todos os dias vítimas da voracidade de uma cidade que tenta o tempo todo engolir a si mesma.

Não é segredo que eu construí Averrio aos moldes do Rio. Na verdade, é um motivo de orgulho que tantos leitores reconheçam isso mesmo antes de ouvirem de mim ou do marketing do livro.

Fico muito feliz quando algum leitor carioca identifica um lugar, quer dizer que acertei. Pra quem não tem tanta familiaridade com as terras de cá, aqui vai uma pequena listinha de alguns lugares em Averrio que correspondem ao mundo real, com observações sobre liberdades artísticas que eu tomei e sobre o tanto que apareceram na história. Alguns desses lugares apareceram em Garras, outros vão aparecer em Feras, em que expando o mapa e as intrigas da cidade.

  • Parte Alta = Alto da Boa Vista - Em Averrio não trato de zonas (sul, norte, oeste), mas sim em parte alta e baixa. A elite humana é algumas poucas famílias ricas de monstros habitam a parte alta: mais fresca e arborizada, mais limpa, com muita vista pra baía. Me inspirei muito no Alto da Boa Vista, mas na história deixei ele mais urbanizado, para abrigar a Praça XIV onde ficam prédios importantes como o Clube das Boas Damas, a confeitaria da mãe de Selene e uma certa loja que vende luvas.

  • Aqueduto de Averrio = Arcos da Lapa - Sem tirar nem por, eu amo demais a ideia de lobisomens correndo pelos arcos.

  • Parque Monumental = Parque Lage - O Rio tem muitas praças e parques, em Averrio não poderia ser diferente. Eu escolhi o Lage para inspiração para esse ponto em específico porque sempre me pego na contradição do lugar: a entrada é gratuita, mas diversas áreas são de acesso proibido simplesmente porque são particulares. Além de diversas regras do que se pode ou não fazer. Uma vez fui acompanhar amigos que iam gravar o som ambiente do parque para fins artísticos, literalmente gravar o vento nas árvores e os passarinhos com gravadores de mão, e fomos abordados porque aparentemente isso era proibido. O motivo? Até hoje não sei, mas ficou comigo essa sensação de “esse lugar não é para todos”, por isso posicionei certos elementos da história de Garras ali.

  • Bairro da Destilaria = São Cristóvão. Precisava ser um bairro antigo do Rio, e com proximidade com a baía. Quando chamam os Lacarez de vira-latas dos canais, estou me referindo a canais que vão dar na baía, são rotas que eles usam para operações criminosas. Sabia que o bairro de São Cristóvão costumava ter uma enseada? Pois é, houve um aterramento por volta de 1906! É dessa época que tirei o bairro da destilaria, onde fica a Cachaçaria Afiada, casa dos Lacarez.

  • Bairro Vermelho = Santa Teresa. Para as bruxas eu queria um bairro alto e isolado, marcando o distanciamento delas tanto da boa sociedade humana quanto dos monstros da sarjeta. Um bairro bonito e charmoso, com história, e com certa dificuldade de acesso… mas conectado pela mata a um certo parque. Agora vocês conseguem estimar o quanto Edgar correu.

  • Bairro das Missões = região da Praça da Cruz Vermelha. A verdade é que eu escolhi essa região por causa do carnaval. Uma colega de turma da faculdade uma vez me contou das loucuras que viveu num bloco que passou pela praça da Cruz Vermelha, um prédio bem antigo perto do centro do Rio. A imagem ficou comigo. Esse lugar aparece apenas em Feras, e tomei muita liberdade para descrever e detalhar a versão imaginária.

  • Hotel Mitz na Avenida Beira-Mar = Edifício Biarritz na Praia do Flamengo. Esse prédio é lindo, simples assim. Sempre que passo na frente fico admirando e imaginando como é lá dentro. Ano passado vi um vídeo mostrando as áreas comuns, com direito a jardim de Burle Marx e só fiquei ainda mais encantada. Tanta beleza só poderia ser palco para uma festa importante em Feras, em pleno carnaval…

  • Paço = Paço Imperial - Antigo local de residência de governadores da capitania do Rio de Janeiro, esse edifício histórico já foi também local de despachos no reinado e no império, e até agência dos correios. Hoje é um centro cultural importante no Rio, de modo que a inspiração foi exatamente essa: um lugar velho que já viu dias melhores e é transformado num foco de artes. Esse não apareceu em Garras, mas muitas cenas importantes de Feras ocorrem aqui!

Se eu pudesse, faria um mapa completinho de Averrio, mas acho que com isso já dá pra ter uma boa noção do que e como eu tirei do Rio. Falando em mapa, aí vai uma curiosidade: na edição de Feras eu cortei uma cena enorme envolvendo um mapa e três mulheres. Espero um dia poder reaproveitá-la num livro de um certo lobisomem brigão…

Espero também que tenham gostado desse pequeno passeio, do Rio para Averrio. E, sim, caso você esteja se perguntando, o nome é uma conjunção de “Ave Maria” com “Rio de Janeiro” porque viver nessa cidade muitas vezes significa rogar por qualquer tipo de proteção.

Infelizmente, ou felizmente, criei um universo bem maior do que as páginas de Garras comportavam. Contar as histórias dos irmãos Lacarez é também um jeito de contar essas outras pequenas histórias e experiências entremeadas na narrativa. Enquanto pessoas ambiciosas, Edgar e Diana vivem uma Averrio que é um tabuleiro, se deslocam para conquistar e devorar; ele atrás de uma vida melhor, ela em busca de preencher carências acumuladas ao longo de uma vida inteira. Heitor e Selene têm outras questões, outros problemas a resolver, outros monstros para lidar, de modo que revelam outros aspectos da cidade. Averrio é um espelho quebrado da fome que cada personagem sente, sua ruína e salvação brotando no desencontro entre as rachaduras do asfalto. Não é assim que nós também vivemos nossas cidades?

Então, o que posso dizer sobre o lançamento de Feras?

A previsão de lançamento é final de outubro, e deve haver um período de pré-venda que começará muito em breve, mas datas não estão no meu controle.

Assim como em Garras, acredito que vamos ter o brinde de um card com uma arte do casal. Foi ilustrada pela mesma artista, então combina com o card de Garras! Estamos também trabalhando para que tenhamos eventos de autógrafos. Como esse ano estou com a circulação restrita, os eventos devem ser no Rio de Janeiro e na minha cidade natal, Volta Redonda. Outras cidades… quem sabe no ano que vem?

Esses dias eu li um trechinho aleatório do livro pro pessoal do clube Oxe Leitor. Dá pra você ver aqui.

Sempre bom lembrar também que, como nas melhores séries de romance, Garras e Feras são histórias únicas e independentes, podem ser lidas em qualquer ordem.

 A capa tem fundo de tons laranjas em que se vê a silhueta de um lobo uivando e marcas de Garras. Em destaque no centro está a ilustração de um casal composto por uma mulher gorda e negra com vestido prateado e um homem branco com camisa e colete semi-aberto. A mulher passa o braço por cima dos ombros do homem e com a outra mão segura um leque. Ela tem cabelos pretos presos num coque alto com plumas, ele tem cabelos castanhos penteados para trás. Na parte inferior na frente do casal está o nome da autora e o título do livro dentro de uma moldura de linhas retas em estilo art deco.

Capa de “Feras”

Novidades

Não tenho muitas que eu possa compartilhar por enquanto. Esse período inicial da licença maternidade tem sido dedicado a entender o realinhamento das órbitas da vida nova, mas contra todas as probabilidades, estou conseguindo escrever e planejar o ano que vem.

Continuo trabalhando no projeto da Estrela (que mencionei aqui), e espero terminá-lo em breve. Uma história sobre esperança cai bem em qualquer momento, não?

Também no quesito história: mais um conto meu originalmente publicado em inglês foi traduzido! Ainda falta mexer um bocado nele, e minha intenção é lançar de forma independente em ebook em maio de 2026. Por que tanto tempo? Porque entre meu Pacotinho e o lançamento de Feras, já estou colocando coisas demais no mundo esse ano! Mas também porque essa é uma história que tenho carinho e o mês de maio é o mês perfeito pros temas que ela toca. Uma dica aleatória sobre ela, caso você não conheça minhas histórias em inglês: tem muita água envolvida, e tem uma bruxa.

Pra além disso, você ficou sabendo aqui primeiro: estou me organizando para realizar oficinas de escrita e oferecer serviços de leitura crítica. Minha ideia é que as oficinas sejam 100% online e ao vivo, com uma abordagem prática. Alguns dos temas que já separei são: escrever com o tarô (e como não tomar um sacode do baralho esperando que ele escreva para você), romantizando o passado imaginado (e como torná-lo fantástico), mulheres imperfeitas (são as melhores protagonistas), romance entre magias (as fronteiras da romantasia)…

Se você quer explorar jeitos diferentes de escrever, trocar ideia comigo sobre suas histórias ou receber um parecer meu sobre algo que escreveu, aguarde as novidades para 2026!

A maré trouxe…

  • Não é novo, mas vi recentemente um filme por indicação da Fernanda Castro (que conhece o coração das moças) e gostei tanto que fui ler o livro no qual ele foi baseado: A Sociedade Literária e a Torta de Casca de Batata. A história acompanha uma escritora em busca do assunto para um novo livro que se depara com a história de como uma sociedade literária ajudou habitantes de uma ilha inglesa a sobreviverem durante a invasão alemã na segunda guerra. As duas versões são lindas. O livro é um romance epistolar e foca bastante em diferentes habitantes da ilha e nos efeitos da guerra em cada um, bem como os livros os salvaram. O filme foca mais nos sentimentos da protagonista ao desvendar aos poucos a história da sociedade. Sim, tem romance, mas não quero dar spoiler de como se desenrola caso você decida seguir essa indicação, seja do filme ou do livro.

  • Esse não tem filme, mas bem que poderia ter. Ligeiramente fora de órbita de Pedro Aguilera é uma ficção científica brasileira que saiu esse ano pela Editora Rocco. Chamo de ficção científica porque tem elementos de ciência além do nosso tempo e se passa numa estação espacial, mas tem muito mais de suspense psicológico — a protagonista inclusive é psicóloga. O sonho dela era ser astronauta e ir ao espaço, quando finalmente consegue a oportunidade é para ajudar a investigar o que está acontecendo na estação espacial internacional, que se encontra ligeiramente fora de órbita. Eu li esse todinho em seções  de amamentação e fiquei tão  envolvida que cheguei a tomar alguns sustos.

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