Um conto de horror

e um novembro agitado

Boletim Lunar

No momento de envio dessa edição, estamos em plena lua nova, nadica da superfície lunas visível, um ótimo dia para pensar um novo começo. A maré está descendo, mas ainda com um longo caminho a percorrer até a mais baixa do dia.

Luas e Marés - 10/2025

Hoje em Luas e Marés

Ando no clima de Halloween, por varios motivos. Também ando sem tempo entre cuidar da minha filha e lançar um livro e garantir que eu continue tendo a minha bolsa de pesquisa no próximo ano e escrever um outro livro. Por isso, nessa edição estou resgatando um conto curtinho de horror que foi originalmente publicado na Faísca (saudades!!!). Se você não gosta de histórias de horror extremamente baseadas na realidade, pode pular pra sessão de novidades onde falo de Feras e meu calendário para o mês de novembro. Se gosta, ou tem curiosidade como uma história de horror pode ter esse título, siga lendo. Eu não acho que ela seja exatamente assustadora palavra a palavra, se te ajuda a decidir.

Empadão do Amor

Originalmente publicado na Faísca – 26/12/2022

Preparado por Fernanda Castro

Todas as etapas da preparação foram feitas com esmero. Era uma ocasião especial, e ela estava determinada a fazer a melhor versão possível do prato favorito dele: empadão. Massa saborosa, recheio molhadinho. A receita toda era tradicional de família, como apropriado para uma comemoração, apesar de cada mulher colocar seu toque especial com o passar do tempo.

Conseguir todos os ingredientes foi um pouco difícil; o preço da carne andava cada vez mais alto. Mesmo um pedaço duro daqueles, perto de estragar e ruim de cortar, tinha custado mais do que a maioria das pessoas estava disposta a pagar. Mas que tipo de esposa seria ela se deixasse a data passar em branco?

Os fantasmas das brigas passadas a observavam com ar de confusão. Feijão Queimado, principalmente, já que havia sido uma discussão particularmente feia e também tinha surgido na comida.

— Você não merecia tudo aquilo, e ele não merece esse esforço todo — disse Feijão Queimado.

Camisa Mal Passada e Cinema com as Amigas concordaram, mas ela os ignorou. Toda relação demandava esforço, algumas mais do que outras, e se ela conseguisse fazer o jantar ser um sucesso, tudo ia melhorar.

Separou os temperos, deu o tratamento adequado aos ingredientes, e, claro, colocou amor. Todo o que tinha, daquele de curar feridas e perdoar erros, de segurar a mão nas horas difíceis. Daquele de fazer qualquer sacrifício. Deixou o sentimento escorrer de dentro de si, compor o caldo que deixaria o recheio úmido na medida certa. Picando, mexendo, misturando, mal sentiu a dor do processo de amar tão profundamente enquanto focava em fazer o melhor prato de sua vida.

Os espíritos da mãe e da avó também estavam ali, na porta da cozinha. Normalmente habitavam a parte de cima da casa, mas, percebendo que algo grande estava sendo feito, tinham sido atraídas para baixo. A avó parecia incerta, no tempo dela não tinha batedeira. A mãe só sorria com encorajamento. Elas entendiam, na mesma medida que todas as mulheres. O casamento exigia dedicação, mais ainda numa casa assombrada como aquela.

Arrumou a mesa com a toalha rendada, que era herança de família, e com os guardanapos de linho, presente de casamento que nunca tinha usado. Escolheu o vestido que escondia as marcas.

Seu coração palpitava de empolgação, cada pedacinho dele. Cozinhar com tanto empenho a tinha deixado se sentindo leve, era bom tirar o peso de dentro do peito.

Ele percebeu assim que chegou, e olhou surpreso pra decoração diferenciada.

— Pra comemorar sua promoção — ela se adiantou, o sorriso cheio de expectativa.

— Você não ficou chateada por causa de ontem, então?

— Acontece, já passou.

Batom no Colarinho não tinha virado fantasma ainda, era muito recente. Talvez fosse uma assombração-bebê, não se surpreenderia, mas não podia se preocupar com ele agora. Não nasceriam mais espíritos naquela casa.

Ele começou a contar do dia, falando de boca cheia como sempre. Não viu os espíritos se acumulando na porta da cozinha, nunca via. Também não percebeu os pedaços duros de coração no meio do recheio, sinal de que o amor tinha disfarçado tudo com perfeição.

— Você não vai comer?

— Não, fiz tudo pra você, amor.

— Ué, por que? O que…

O primeiro engasgo veio quando o empadão já estava pela metade. De seu lado da mesa, ela apoiou o rosto nas mãos e sorriu enquanto observava. Poucas coisas davam tanto prazer a uma esposa quanto ver o marido aproveitando seu prato favorito.

— O que… tem aqui? — perguntou, entre tossidas. Começou a ter ânsia de vômito, mas era inútil; o recheio se agarrou em seu caminho goela abaixo.

— Ah, um pouco de tudo… A massa é básica: farinha, manteiga e um cadinho das minhas lágrimas derramadas por você, pra salgar e umedecer. O recheio deu mais trabalho, porque precisei juntar todas as coisas horríveis que você já me disse. E meu coração, claro. Tive que fatiar bem pequenininho. Tá gostando?

Ele olhou para ela com medo, os papéis invertidos pela primeira vez. Quando tinha se casado, achou que o aviso sobre as mulheres da família dela era um exagero, pensou que bastava um cinto de couro bem usado para ficar tudo bem.

— Você… tá… mentindo. — As palavras saíram com esforço.

Tentava cuspir os pedaços, mas o empadão não deixava — ela tinha se lembrado de colocar no recheio a sensação das mãos dele a prendendo no lugar.

— Claro que não estou. Eu jamais mentiria pra você, meu amor.

Para provar, abriu os botões do vestido e mostrou o corte fresco de onde o coração tinha sido arrancado. Não tivera tempo de costurar direito; a abertura mostrava um peito vazio entre as costelas, e um pouco de sangue pingou sobre a mesa. A toalha rendada ficaria manchada; seria sua vitória eternizada para sempre.

— Eu também coloquei amor no recheio. Meu amor por você. Precisava me livrar dele, sabe, mas também não podia jogar fora. Você sabe que não gosto de desperdiçar. E só ele ia conseguir disfarçar o gosto amargo de tudo que você já me fez. Agora você sabe como é engolir tudo por amar alguém.

Ela assistiu o esforço dele tentando resistir a não fincar o garfo e levar mais um pedaço à boca.

— É bom, né, ser forçado assim por alguém que te ama tanto… Ai, o vinho, que esquecida!

Aos sons que ele emitia enquanto engasgava com a comida, ela se serviu de uma taça. A cor rica do tinto era quase tão escura quanto o molho que escorria dos cantinhos da boca do marido. Como era uma esposa dedicada, pegou um guardanapo e a limpou.

— Come tudo, meu bem, mas guarda um espacinho pra sobremesa. — Piscou um olho, se sentindo muito satisfeita com o olhar de pavor que recebeu.

O jantar estava sendo mesmo um sucesso.

*

Notas Autorais: Este texto foi o resultado de escrever com o tema comida logo depois de ver o jornal da manhã, onde sempre somos confrontadas com uma notícia sobre uma de nós sofrendo.

Novidades

Feras está em pré-venda! Finalmente! Você encontra a edição física com brindes e em ebook por enquanto no site da Amazon, mas sei que algumas livrarias já receberam o livro caso prefira ter o prazer de ir folhear e já voltar pra casa lendo. Ando falando bastante sobre o livro nas redes sociais, então não vou ficar repetindo tudo aqui, mas vou deixar vocês com essa ilustração LINDA que vou dar de brinde para quem for me ver nos eventos que vou participar! Foi feita pela artista Mari Morgan, a mesma que fez a ilustração de Diana e Edgar, para Garras. O card dessa ilustração vai ser exclusivo para quem me encontrar presencialmente esse ano (e no próximo, se tudo der certo), então me procure nos eventos!!

A ilustração mostra um casal composto por uma mulher gorda de pele preta com os cabelos presos num coque e um vestido elegante prateado em estilo 1920, e por um homem branco com cabelo castanho penteado para trás usando camisa social branca e colete cinza. A mulher segura um leque escondendo o sorriso e o homem tem a mão no bolso seegurando o paletó do terno. Os dois estão muito próximos, se tocando, sorrindo um para o outro. Estão parados numa rua com iluminação fraca enquanto confetes e serpentinas caem ao redor deles.

Selene Veronis e Heitor Lacarez num bloco de carnaval, numa rua qualquer de Averrio. Ilustração feita por Mari Morgan.

Agenda de novembro

Quais eventos? Bom, segue minha agenda inicial de novembro. Ainda estou aguardando algumas confirmações, mas por enquanto:

  • 01/11, 16:00 – Bate-papo no Clube Cheiro de Livro: Estarei no auditório da Livraria da Travesa do Shopping Leblon para conversar com Frini Georgakopoulos e Rafaella Machado sobre romance paranormal com a galera que comparecer ao clube. Esse é só chegar! E vou levar uns Feras para sortear…

  • 08/11, 10:30 – Bate-papo no Clube do Livrotril: Mais um bate-papo em clube do livro, dessa vez na Livraria Leitura da Rua do Ouvidor, falando sobre Garras e Feras. Não tenho certeza sobre a participação liberada desse aqui, mas você pode acessar o instagram do clube e se informar!

  • 16/11, 11:30 – Mesa de debate no evento Rio Neon: Esse evento é gratuito e conta com uma programação MUITO interessante, recheada de diversos autores, quadrinistas e ilustradores cariocas, todos voltados para fantasia, ficção científica e horror. Eu vou participar da mesa “Novos públicos, novas fantasias”, mediada por Carol Façanha. O evento ocorre o dia todo, de 11:00 às 21:00, mas por conta da minha filha muito novinha, você só me encontra nessa primeira parte do dia. Acontecerá na casa da Acaso Cultural, em Botafogo. Mais detalhes e mais sobre a programação, você encontra aqui.

  • 23/11, 16:00 – Sessão de autógrafos na Livraria da Travessa de Ipanema, no Rio de Janeiro. Aqui é sério, foi difícil conseguir uma data em final de semana!! Não me deixem sozinha a ver navios, não deixem a minha filha traumatizada pensando que ninguém quer ver a mãe dela!! Apareçam pelo Feras, mas claro que podem levar Garras também.

  • 27/11, 19:00 – Sessão de autógrafos na Livraria Leitura do Shopping Parque Sul em Volta Redonda. Sim, dessa vez vou conseguir prestigiar a terrinha e assinar alguns livros por lá! Se você for da região, por favor apareça e não me deixe lá sozinha pensando que o povo do sul fluminense não gosta de romances com lobisomens!!

Talvez tenhamos algo em Niterói também, fiquem de olho! Esse ano infelizmente não conseguirei ir a São Paulo ou outros estados, por todos os motivos citados no começo da newsletter, mas quem sabe no ano que vem? De todo modo, vou ficar imensamente feliz se você aparecer em qualquer um dos eventos mencionados!

A maré trouxe...

  • A convivência com um bebê deixa a gente bastante eclética. Ou talvez, resgate algumas das coisas que fomos perdendo pelo caminho da vida adulta. Seja como for, minha amiga Anna Martino (escritora incrível), deu de presente para minha filha o livro “Se você quiser ver uma baleia” e é com certeza o livro mais lindo que ela tem. É um livro ilustrado e poético com linguagem muito acessível, se valendo da beleza da simplicidade, para ensinar o que se deve fazer para encontrar uma baleia. Pelo meu próprio histórico de vida, talvez ele me toque de forma diferente, mas garanto que esse é um livro para todas as idades. Leio quase todo dia pro Pacotinho, e me encanto por ela enquanto o significado das palavras ainda não a alcança.

  • Não é de ler, embora seja também. Recentemente a Jessica Roux, uma das minhas ilustradoras favoritas, lançou o tarô dela, o “Tarot of the Woodland Wardens”. Para quem gosta, ou para quem gostaria de começar a se envolver com as cartas, essa é uma ótima porta para as cartas. As ilustrações seguem o estilo Raider-Waite-Smith, mas com animais substituindo as figuras humanas. No traço e no olhar singular da artista para o mundo natural, a interpretação das cartas está muito sensível e intuitiva. O meu chegou faz pouco tempo, ainda estou me conectando com esse baralho, mas já gosto da forma que ele conversa comigo.

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