Testemunho

A história contada pelos grãos de areia

To see a World in a Grain of Sand

And a Heaven in a Wild Flower

Hold Infinity in the palm of your hand

And Eternity in an hour

“Para ver um Mundo num Grão de Areia

E um Paraíso numa Flor Silvestre

Segure o Infinito na palma da mão

E a Eternidade numa hora”

Minha tradução livre de um trecho de “Auguries of Innocence”, de William Blake (1757-1827)

Eu confesso... conheci esse verso através do filme da Lara Croft com a Angelina Jolie, e se esse também é o seu caso saiba que é uma forma muito digna de conhecer poesia. Se o mundo está num grão de areia, acesso a cultura diversa pode estar em qualquer lugar, não importa o que dizem os críticos de cinema. Vi o filme quando lançou, quando eu era criança, e a frase ficou comigo mesmo depois que a minha fase heroínas de ação invadindo templos em ruínas foi dando lugar a heroínas envolvidas em outros contextos (igualmente duvidosos). A incongruência de tudo numa coisa tão pequena é muito bonita, e milhares de anos de planeta contados por um grão de areia (ou muitos) na praia por onde caminhamos é mesmo poética, ainda que Blake não necessariamente tivesse o estudo dos sedimentos em mente quando escreveu o poema.

Muitos processos acontecem com um grão de areia até ele estar em posição de ajudar a formar a sua pegada na praia pra tirar aquela foto bem instagramável, e muito mais ainda vai acontecer. Várias transformações que começam, em resumo, quando uma rocha sofre algum tipo de intemperismo e vai aos poucos perdendo pedaços de várias formas e tamanhos. Esses pedaços também vão sofrendo intemperismo, vão se quebrando em pedaços menores e menores, mudando de tamanho e forma a medida que interagem entre si ou com rochas maiores ou com animais ou com as propriedades da água ou ou ou...

A tendência da ação de muito tempo de intemperismo é não só diminuir os pedacinhos, mas também os arredondar e aos poucos deixá-los mais uniformes. Nossa, é quase como se isso fosse uma forma de dizer que quanto mais tempo ficamos interagindo num meio mais somos moldados por ele, né? Talvez, mas hoje vou fugir das metáforas. Queria mesmo falar sobre tempo e transformação e sobre como o mundo está mesmo presente num grão de areia pra muito além do fato dele ser feito dos mesmos minerais produtos da ação vulcânica.

Essa aqui é a escala granulométrica típica dos sedimentos encontrados em ambientes marinhos, medindo os tamanhos em milímetros (exemplificada na foto):

Matacão (maior que 256) > Seixos (256-64) > Cascalhos (64-4) > Grânulos (4-2) > Areia (2-0,062) > Silte (0,004-0,002) > Argila (menor que 0,004)

Descrição da imagem: sequência de 7 fotos demonstrando as 7 categorias granulométricas. Primeiro os matacões, depois seixos, cascalhos, grânulos, areia, silte e argila. Quanto menor o tamanho do sedimento mais coeso e colados grãos ficam uns nos outros. Imagem de: Jorge Eduardo Lins Oliveira, adaptada de Turekian, 1964

Em algumas praias temos a areia típica, como conhecemos aqui no Brasil, mesmo que mais fina ou mais grossa. No geral, nas praias aqui pisamos sobre a areia de fato. Já nos nossos manguezais, é mais comum encontrarmos uma mistura de areia, silte e argila ou silte e argila. Em outros lugares do mundo vemos sedimentos mais grossos e granulados, como nessa foto aqui que a linda Fernanda Castro me cedeu de sua viagem para Portugal. Também temos praias, como as dos mares do hemisfério norte ou as da Patagônia, em que só enconstramos seixos. Além do sedimento de fato, feito de rochas, também temos várias outras coisas misturadas e que ajudam a compor esse substrato de praias e fundos marinhos: pequenos pedaços de conchas ou até conchas microscópicas e demais partes rígidas de animais e algas, matéria orgânica a partir da decomposição de animais e plantas (isso principalmente em ambientes como manguezais), lixo (especialmente esse que tá famoso agora, o microplástico)... Cada ambiente tem uma composição própria, inclusive de minerais que formam os grãos de areia em si: silicato, mica (sabe aquela areia que GRUDA, essa mesma), quartzo, feldspato.... No caso dos seixos e cascalhos vemos pedaços de rocha com mistura desses minerais, enquanto na areia já vemos os minerais em pedacinhos individuais.

Descricão da imagem: Fotografia de uma praia de seixos de cor escura, com a torre de um farol ao fundo. O mar é visto em tons verdes do lado esquerdo e o céu está nublado. Aves voam sobre a praia. Foto: Mohammad Husaini, site Pexels.

Descrição da imagem: Fotografia de uma praia, a porção de areia está na parte inferior, o mar com ondas espumadas no centro e o céu com nuvens na parte superior. Uma ave voa contra o sol meio escondido pelas nuvens. Fotografia de Fernanda Castro, em comunicação pessoal.

Talvez você esteja se perguntando por que em cada lugar temos uma composição diferente. Muitas coisas, mas uma coisa muito interessante sobre o sedimento em si é que quanto maior (e consequentemente mais pesado) menor a distância que ele viaja, e quanto menos viaja mais rápido é depositado e menos transformações sofre num espaço curto de tempo. É preciso MUITA energia da água do mar para carregar as categorias de matacão e seixo, já nem tanto pra transportar areia e quase nada pra levar silte e argila.

Ou seja, pra seguir no caminho da transformação da escala granulométrica o sedimento precisa ficar muito tempo exposto ao intemperismo, e precisa viajar um bocado, mas só consegue viajar se de início estiver em uma região em que as ondas tenham muita energia e força.

Pode ser um caminho curto, com pouca mudança. Pode ser um caminho mais longo com tantas reviravoltas quanto possível. Pode ser um processo simples com um resultado bruto, ou um processo com tantas reviravoltas que acabamos com um produto final tão fino que nem parece que saiu daquela rocha pontuda onde tudo começou. Assim é com a escrita, né — opa, lá vou eu com as metáforas de novo.

Já chegou um dia numa praia que você tem hábito de ir e percebeu a areia diferente? Mais grossa, ou talvez com mais pedacinhos de conchas quebrados? Provavelmente algum evento de grande energia aconteceu, com as ondas trazendo esses sedimentos maiores. Ou de repente viu que a cor mudou, talvez mais escura, como se algo mais estivesse na mistura... Nunca reparou nisso antes? Eu recomendo, as praias têm muitas cores e formas, e nenhuma praia é exatamente a mesma de um dia pro outro.

As ondas todos os dias trazem e levam de volta um pouco de sedimento, moldam a inclinação e a forma. Animais nascem, deixam rastros, defecam e fazem sua casa entre os grãos. Os humanos aterram e desaterram, enterram seus tesouros, desenterram camadas imperturbadas por milhares de anos porque somos muito bons em desfazer em instantes o que o universo levou muito tempo pra construir.

Quando vamos estudar a composição dos sedimentos numa praia, ou do fundo do oceano, um dos métodos de coleta mais comuns é justamente o ‘testemunho’. Basicamente, enfiamos um tubo ou qualquer outra coisa que tenha uma cavidade oca na areia e puxamos de volta de modo que a estrutura das camadas fique intocada. A partir dos testemunhos de sedimentos conseguimos contar uma história, as sucessões de sedimentos e as miudezas microscópicas contidas nele nos dizem como era aquela região e quando também. (Pra quem tem boa memória, é exatamente isso que Anabela estava fazendo na sua primeira aparição em Areia e Pólvora.) Não precisa nem de muito rigor científico pra ver isso na prática, se você já teve a disposição de fazer uma piscininha na areia e cavou fundo o suficiente, com certeza já viu essa mudança aparecer diante dos seus olhos — e se não viu, é porque não deve ter reparado. Recomendo. Brincar na praia é 60% ciência disfarçada, vai por mim. De qualquer forma, acho bem poético que o nome da técnica seja esse: testemunho. A areia servindo de testemunho para a história do mundo, registrando e contando, preservando eras de mudanças naturais.

Talvez seja um exagero (bem bonito) dizer que dá pra ver o mundo num grão de areia, mas num punhadinho? Bom, o quadro já começa a ficar bem interessante. Quer se sentir pequeno? Não precisa ficar pensando na poeira das estrelas e o tamanho do universo, basta ficar um tempinho na praia, sentir a aspereza da areia ou a maciez do silte úmido e imaginar quanto tempo levou pros incontáveis grãos de sedimento na palma da sua mão ficarem com aquela textura.

Deixo vocês aqui com essa reflexão, ou pelo menos com a insistência pra reparar mais na areia quando der um pulo na praia, pensar quantas histórias e transformações não escorrem por entre os grãos. Esse texto é um dos muitos que foram começados e não enviados na newsletter, e apesar de eu não ter me especializado nisso, é uma área que acho muito interessante — o suficiente pra ter inspirado umas duas histórias minhas, uma de horror e outra de ficção científica. Com sorte, um dia, eu desenterro as duas pra serem contadas.

28/04

Não é sobre areia, nem sobre praias, mas com certeza as ondas espalham muitos grãos. Além de outras… coisas.

Descrição da imagem: Imagem quadrada com o fundo coberto por uma colagem de ilustrações de polvos em tons de azul, bege e vermelho. Um quadrado de tom azul petróleo sempre transparente ocupa a maior parte central da imagem e sobre ele está escrito em fonte serifada de tom bege: “Ela olhou para cima no momento em que a luz mudou, a visão de nuvens rosáceas sendo distorcida à medida que a coluna de água subia no despertar da onda. Era tão lindo e terrível, algo tão inevitável, que esperar pelo acontecimento era tudo o que importava.”