Sete Ondinhas

As minhas divindades do mar

Escrevo essa cartinha dia 31/12, com mais determinação que inspiração, querendo mais agradecer do que pedir.

A minha relação com o divino e o sagrado é bastante pessoal, guardo de forma bastante privada, mas sob diversos aspectos eu sempre fui fascinada pela ideia de deusas no mar. Na minha cabeça de criança, se havia um Deus masculino no céu fazia muito sentido que tivesse uma Deusa feminina na água. É claro que hoje compreendo que nada no mundo existe apenas nesses dois extremos, mas pra uma menina extremamente incomodada com não poder fazer certas coisas porque não eram “coisa de menina” eu era bastante sedenta por reverenciar uma mulher.

Eu tinha sei lá quantos anos quando vi um barquinho de madeira muito bonitinho pela primeira vez na areia de uma praia na região dos lagos, norte do RJ. Dia 01/01, e um barco de madeira assim no meio do nada! Eu queria brincar, meu pai veio correndo avisando que não era brinquedo, era uma oferenda e eu não devia mexer. E então ouvi falar de Iemanjá. Não lembro da explicação exata, o que ficou comigo foi a ideia de que as pessoas deixavam presentes pra Iemanjá— e que aquele barco tinha sido recusado. Cheio de água e areia, numa parte mais alta, não tava mais em posição de ser levado pela maré. Aquilo me encheu de medo.

Não sei se já contei isso aqui, mas quando eu era criança pequena eu tinha tanto medo do mar quanto tinha vontade de estar nele. Uma dessas contradições da gente, herdadas da família e transformadas ao longo da vida em algo só nosso. Mas na época o barco me contou uma novidade sobre o mar: tinha uma deusa exigente ali embaixo, então talvez se eu conversasse com ela direito eu conseguisse permissão pra entrar na água e perder aquele medo que eu queria me livrar.

Eu não sou especialmente religiosa (um tópico longo e privado demais para estar aqui), então o tempo passou, eu cresci e o rosto da divindade foi mudando até não ser mais um ser divino e um grande repositório dos meus medos, desejos, reflexões e até reclamações. Até fazer 18 anos eu não morava perto do mar, então o encontro com ele era sempre especial, mágico— momentos pra fazer aquele meu ritual sem ritualística de ficar em pé na arrebentação e conversar com o que ou quem estivesse ouvindo. Fui fazer faculdade e o mar ganhou contornos numéricos, um universo limitado pela superfície ondulante e as feições fisiográficas do fundo, uma variação de texturas e parâmetros. Precisei ficar um tempo afastada pra perceber que sentia falta da outra parte da minha conexão com o oceano, estava com saudade de sentir o sal na pele e descarregar os pensamentos, de talvez ser absolvida por mim mesma caso a divindade não estivesse de plantão lá no fundo.

Sempre que me deparava com uma divindade “nova” do mar eu parava pra tentar saber tudo sobre ela, entre ser nerd de mar e nerd de mitologias era claro que eu ia querer conhecer todas— dar um rosto pra quem estava lá embaixo e não sentir que estava falando sozinha. Não conheço a fé de você que está lendo, nem se você tem uma ou como se sente quando vê outra pessoa falando sobre o você acredita, então não vou ficar aqui listando todas as que eu fui encontrando como se fossem apenas personagens em histórias ou avatares de RPG. De Poseidon (ou Netuno, se você for mais chegado em Roma) a Aegir dos nórdicos, Tangaroa (Polinésia) a Mama Cocha (incas), e até nessa questão complexa de Iemanjá e Nossa Senhora dos Navegantes, o mar tem muitos rostos — inclusive os nossos.

Se conversamos e nos conectamos sob qualquer aspecto com o mar, em geral acabamos encontrando nosso próprio reflexo encarando de volta. Se você olha pro abismo, o abismo olha de volta pra você e etc… Recomendo.

Essa virada de ano vai ser a primeira vez que vou passar no tumulto de Copacabana, já avisei todo mundo em casa que vou pular as sete ondinhas. Se é uma divindade que vai atender meus pedidos ou se vou ser eu que vou trabalhar duro pra alcançá-los não me importa muito. O que eu quero é a mesma sensação de ser pequena diante da enormidade, de estar sozinha sem estar só, de conversar comigo e com o mundo ao mesmo tempo.

2022 foi um ano difícil, sob vários aspectos e eu com certeza não preciso listar aqui tudo que passamos coletivamente ou o que eu passei individualmente. Quero entrar em 2023 olhando pra frente, olhando com realismo pras resoluções de ano novo e com paciência comigo. Escrevo essa newsletter do celular, com a casa cheia e uma programação intensa até o ano que vem (que felizmente tá bem perto). Não tenho nem imagem bonitinha pra colocar aqui, tô escrevendo no improviso e na vontade (mais do que nunca, pelo amor, coloque seu colete salva-digitação!). As vezes é só assim que a gente dá conta de fazer o que queremos ou que devemos, com medo mesmo, com desapego ou tateando no escuro, pisando com cuidado mas seguindo em frente. Ano que vem vamos seguir em frente.

Desejo pra você uma boa passagem, na forma que isso for significativo pra você. No que diz respeito a newsletter, acho que vou conseguir me organizar melhor. Areia e Pólvora vai continuar, e o brinde planejado pra vocês tá atrasado mas tá ficando lindo demais e eu não vejo a hora de mandar! 2022 a identidade oceanógrafa me consumiu mais que a escritora e pro ano que vem espero conseguir equilibrar esses dois lados interligados.

Se por acaso você for uma das pessoas sem juízo que vai passar a virada em Copacabana também, a gente se esbarra nas sete ondinhas! Se não, até ano que vem, pessoal.