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O tempo nas histórias
e o tempo de uma história


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A lua está no quarto crescente, com 53% da superfície visível. A maré no instante em que começo a escrever esse texto está de quadratura, subindo. A próxima Lua Cheia será dia 12/02.
O tempo nas histórias e o tempo de uma história
Oi, sumida, sou eu de novo vindo falar de novelas (e romances de época).
Na verdade, eu não sei se tenho o direito de me chamar de noveleira, visto que — falando em tempo — me falta tempo para ver tudo de todas. Mas, talvez eu possa, sim, me considerar noveleira. Algumas eu acompanho pelas chamadas na TV e cortes que vejo nas redes sociais, a beleza do folhetim é conseguir se inteirar de uma história só por esses breves segundos ou minutos somados. Uma novela é um jeito bem longo de contar histórias, e trazer várias histórias numa trama só, e é construída justamente de modo que se a pessoa perder alguns dias ou até algumas semanas, vai conseguir sentar e retomar o fio da meada sem problemas.
[O tempo de acompanhar de forma ininterrupta uma história, seja em qual mídia for, não deixa de ser uma forma de privilégio, nessa época em que vendemos tantos dias e horas das nossas vidas para sobreviver e o que sobra precisa ser dividido em momentos para não enlouquecer — quem sabe até viver.]
Uma das coisas que gosto nas novelas é como elas são tão reais e performáticas ao mesmo tempo. Desde os cenários que dificilmente refletem uma casa de gente como a gente, independente de a família retratada morar no Leblon ou no subúrbio, até as situações e os diálogos. As novelas são ótimas fugas da realidade dentro da realidade, não é à toa que às vezes ficamos com a sensação de que a vida imita a novela, quando na verdade é a novela que imita a vida só que com um pouco mais de liberdade criativa e um estoque ilimitado de figurino e maquiagem.
E acho que todas as grandes categorias que temos dos folhetins, as que mais apelam para mim (tanto enquanto telespectadora quanto como escritora) são as novelas de época. Tradicionalmente, são mais comuns no horário “das seis”, embora tenhamos bons exemplos de folhetins passados em outras décadas (como é o caso de Terra Nostra, por exemplo, que foi uma grande novela das nove). Eu tendo a preferir as das seis, quando estamos falando de novelas de época, me descem mais livres.
[Isso não é escrito em pedra, mas é comum que os horários dos folhetins sigam uma “lógica” de palatabilidade. Sendo bem generalista: histórias mais lúdicas e teoricamente leves às seis, tramas com maior exagero e dose de comédia às sete, e grandes dramas e histórias mais densas às nove. Tudo que vem depois, bem mais tarde às onze, cai nos temas mais densos e pesados, quase crus.]
Sejam elas mais doces e bem humoradas, como Chocolate com Pimenta, ou tristes e épicas, como Terra Nostra (talvez até possamos aqui aplicar um conceito diferencial que tem na literatura também, seja ela “de época” ou “histórica”), as histórias retratadas no passado trazem um componente a mais de escapismo e fuga da realidade. Ver vilões bicheiros numa novela que se passa hoje é algo tão atual que a história precisa dos elementos de exagero e de comédia pra marcar no público a diferença entre a hora da novela e hora do telejornal, por exemplo. Se uma novela com esse tema for realista demais, com a duração de meses, pode acabar afastando o público de um propósito que é visto com muito demérito por alguns: se distrair.
Lembro de ser criança e ver minha mãe trocando o canal quando começavam algumas novelas “porque de desgraça já basta a vida”. Há quem prefira esse tipo de história mais nua e crua, é lógico, mas essas histórias estão presentes também, em seus horários, mas mesmo essas trazem uma carga dramática que de algum jeito leva o espectador para fora do cotidiano atual. A suspenção de descrença é necessária para todas as histórias, mesmo as que não se valem de elementos de fantasia.
As roupas antigas, os cenários... tudo das novelas de época já quebra a sensação de mundo real, antes mesmo do primeiro diálogo, embora as falas e as gírias também tragam uma outra camada de imersão. Acho que essa suspensão de descrença imediata já deixa o público mais propenso a simplesmente relaxar e acompanhar, se deixar leva pela trama, se divertir com situações estapafúrdias e se emocionar com os pequenos grandes dramas das personagens.
Parece ser unanimidade que hoje a melhor novela da grade é “Garota do Momento”. Sou suspeita para falar, porque realmente tenho achado essa novela incrível. Um enredo interessante e coerente, elenco diverso e de enorme talento, um texto muito bem escrito, casais com química real, vilões carismáticos e histórias bem desenvolvidas mesmo fora do ramo principal. É uma novela que você não lamenta ver a troca de cena de um núcleo para o outro, porque todos são interessantes. “Garota do Momento” é realmente muito boa. Dito isso, o fato de ser de época, dá uma liberdade criativa ainda maior aos atores, que também são criadores dentro de uma história de audiovisual. A teatralidade de Zélia e Maristela (vilãs que dão gosto de ver, aliás), a fragilidade da Clarice, os trejeitos insolentes da Bia e o jeitão de Ronaldo, a doçura e o fogo de Beto e Beatriz... várias pequenas coisas que seriam tolhidas num contexto “mais sério de novela das nove”.
E com tudo isso, esses folhetins não deixam de retratar temas atuais. Todas as obras são frutos de seu próprio tempo, em que são criadas, não do tempo que buscam retratar.
Aqui vou pegar o atalho para mudar de meio e falar de um dos meus gêneros literários favoritos, os romances de época. Não necessariamente os romances históricos, que estão mais para as novelas das nove. Gosto desses também, mas os romances de época me acalentam o coração, me fazem rir e chorar e me contorcer porque a roda de uma carruagem convenientemente quebrou perto de uma estalagem onde, você adivinhou, só tem uma cama.
Entendo que haja uma percepção de que são livros mais bobos (afinal de contas, tudo que nós pobres mulheres incultas gostamos é bobo, não é mesmo? Tudo que tangencie ou atravesse de alguma forma a felicidade e o prazer feminino é bobo, para uns e outros por aí). Entendo que algumas pessoas não consigam se conectar com personagens de séculos atrás, normalmente vítimas de algum tipo de pensamento retrógrado e preconceituoso. Mas, os romances de época não são sobre isso, embora certamente esse seja um contexto comum dos enredos. A maioria dos romances de época escritos em tempos atuais trazem mocinhas à frente de seu tempo, justamente porque as autoras estão muito à frente do período retratado, e isso é ótimo. Se engana quem acha que os romances de época são apenas sobre jovens mulheres à espera de um casamento com um nobre, mesmo que esse seja outro tropo comum do gênero. Gosto de ler as mocinhas que queriam fazer ciência numa época em que não era permitido, e tanto conseguem quanto por acaso encontram um bom partido que não apenas entende as necessidades dela, mas ativamente contribui para fortalecê-la. Gosto de ler as mocinhas dispostas a tudo para viverem a vida que desejam, e acabam encontrando o amor pelo caminho, não como um fim em si só, mas como parte da vida.
Mocinhas empreendedoras em negócios considerados masculinos, como cervejarias e cassinos. Mocinhas cientistas. Mocinhas ricas e pobres e de classe média. Mocinhas ladras, espiãs, costureiras, divorciadas, protetoras dos animais, viúvas... Hoje felizmente estamos vendo também um (lento) aumento da diversidade étnica e de gênero, com histórias centradas em mocinhas pretas, casais sáficos e aquileanos, trisais. Há uma variedade enorme de protagonistas e histórias, tratando de questões (ainda) atuais retratadas em décadas passadas, cujo cenário antigo é um recurso, não uma limitação.
Em “Garota do Momento” temos um núcleo em que uma mulher passa por poucas e boas para conseguir o desquite do marido, e é extremamente julgada e atormentada por todos da família por ter decidido ir viver os próprios sonhos. “Um problema desses jamais aconteceria hoje em dia.” Bom, se você pensa isso, tenho uma novidade pra você...
Em “Uma semana para se perder”, livro escrito por Tessa Dare, uma mulher faz uma descoberta paleontológica e faz de tudo para apresentá-la num congresso científico, mas assim que descobrem que ela é uma mulher, vários pesquisadores desconsideram os achados. “Jamais aconteceria...” De novo, uma novidade pra você...
E é bem verdade que diversos gêneros literários podem trabalhar essas mesmas premissas. O diferencial do romance de época para mim, e das novelas de época também, é o famoso coração quentinho. O famigerado e igualmente criticado final feliz garantido.
“Ah, mas na época retratada provavelmente essas histórias não teriam finais felizes!” Pois é, que coisa maravilhosa é a ficção, não é mesmo? Que coisa incrível é poder imaginar que contra todas as probabilidades tudo pode dar certo, que depois de todos os percalços uma mocinha pode viver uma vida plena exercendo a carreira dos sonhos com o par romântico dos sonhos, que a vida pode ter um pouco mais de felicidade do que alguns querem que a gente acredite... Embora haja de fato um monte de romances de época que envelheceram mal, eles também foram fruto do tempo em que foram escritos, e podem ser lidos com olhar crítico tanto quanto qualquer clássico da literatura. E não invalidam de foram alguma a produção contemporânea, as histórias sendo escritas hoje para pessoas do hoje.
O tempo das histórias de época não é o retratado, é o nosso, projetado e vivido. É o passado do que deixamos para trás e queremos evitar que se repita no futuro, é o momento de ler/ver algo por puro prazer no meio do caos da produtividade constante, é o relógio parado para apenas sentir, é a hora de apreciar a arte pela arte, é a pressa de virar uma página para saber o que vai acontecer, é a nostalgia de uma boa novela reprisada, é um segundo de fantasia vestida de realidade.
Novidades
Bom... desde que enviei a última edição, um bocado de coisa aconteceu, inclusive, publiquei um livro! Um romance sobrenatural com bruxas e lobisomens... e de época! Veja aí, a influência das novelas. Adoro quando descrevem meu livro como uma mistura de “Chocolate com Pimenta” com “Peaky Blinders”, porque é mesmo!
Garras foi lançado pela Editora Rocco em 31/10/2024 e atualmente se encontra com um grande desconto em todos os formatos bem aqui. A sinopse: Diana é uma bruxa da alta sociedade e Edgar, um lobo da sarjeta, mas por dentro os dois são mais parecidos do que poderiam imaginar: brutais, ambiciosos e dispostos a tudo para alcançar seus objetivos. Vingança, armas e dinheiro são os termos do contrato, nada mais. Só que, às vezes, quando o amor decide entrar na brincadeira... é difícil se livrar de suas garras.
E próximos lançamentos? Ainda não posso dar detalhes, mas em janeiro desse ano entreguei mais um romance nas mãos mais do que competentes da minha editora! Então, quando puder falar mais, eu contarei. Fiquem me acompanhando pela via eletrônica de sua maior conveniência para saber das próximas novidades.
A maré trouxe
Como hoje estou falando de tempo, vou deixar aqui a recomendação de um livro de viajem no tempo. Lançado pela editora Rocco no ano passado, Ministério do Tempo escrito por Kaliane Bradley e traduzido para o português brasileiro por Ulisses Teixeira traz uma história sobre pertencimento, seja pertencer a uma etnia ou a um período no tempo. Se você gosta de Doctor Who, vai sem medo. Se você gosta de ler histórias com choques culturais, vai também. E, sim, tem uma boa história de amor, mas vou ser justa e deixar o aviso de que o final é bem mais do que aberto, é um amplo descampado cheio de possibilidades. É meio que sempre assim com histórias sobre o tempo.
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