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O tempo entre as luas e as marés
(e a morte de um navio)
Uma Nova Apresentação
Se você está recebendo isso é porque em algum momento dos últimos anos se inscreveu na newsletter 20.000 Histórias Submarinas, criada por mim (oi, prazer, Lis) para falar de mar e histórias. Entre textos oceanográficos e algumas divagações, também enviava através dela capítulos de Areia & Pólvora, meu romance de piratas — a história não chegou a ser terminada, mas estávamos relativamente perto do fim!
Foi uma boa jornada, mas também foi um experimento. Comecei com a newsletter porque queria escrever e ser lida, e porque a liberdade de texto independente de contagem de caracteres e algoritmo pareceu uma ótima via pra quem não leva tanto jeito assim para as redes sociais. E ainda acho que é. E por isso viemos parar aqui.
Descrição da imagem: banner retangular de fundo azul escuro com a ilustração das fases lunares sobrepostas ao traço de ondas e intercalas com estrelas pequenas de seis pontas. As luas tem cor marfim e o traço das ondas tem cor azul escuro do mesmo tom do fundo, as estrelas são de tom dourado. Sobre as luas, alinhado a esquerda, está o título escrito em caixa alta “Luas & Marés”, e na parte inferior alinhado a direita está o nome Lis Vilas boas
Luas & Marés é o novo nome da minha newsletter, escolhido para expandir minha editoria de assuntos. Sou incapaz de deixar o mar para trás, mas também estava sentindo falta de um espaço mais amplo para assuntos diversificados dentro dos meus interesses e também do meu crescimento enquanto escritora (marinheiros diriam que eu estava “sem água pra manobrar”). Eu já estava há bastante tempo sem enviar textos por motivos variados, esse incluso. À medida que a minha identidade de escritora foi ganhando mais força, passei a querer falar sobre coisas que não eram marinhas, e talvez possa parecer frescura, mas não achava certo. Talvez eu tivesse (ainda tenha) assinantes que vieram exclusivamente pela oceanografia e, embora ela vá continuar aparecendo por aqui, não queria frustrar ninguém.
Sobre Areia & Pólvora: eu já tinha dito algumas coisas sobre o hiato dessa história em edições passadas. Então, agora acho que estou pronta pra anunciar que eu estou oficialmente retirando a história do ar, para reescrever e revisar, fazer alterações com base em comentários das diversas pessoas que leram e acompanharam — ordens da minha agente, inclusive. Tudo dando certo, em algum momento do futuro ela volta pra vocês já completa e com o final que Anabela, Delfim e Ladrão merecem. Isso quer dizer que não vou mais publicar histórias minhas aqui? Não, devo enviar algumas menores, faíscas e contos, mas os romances de folhetim por enquanto ficam escondidos abaixo da linha de maré.
Então, a partir de agora, essa newsletter pode conter: luas, marés, histórias, magia, ciência, romances (românticos), e todas as coisas que habitam os interstícios entre esses espaços marítimos e celestiais. Novidades literárias, indicações e lançamentos também podem ser esperados a qualquer momento. Sobre a periodicidade, ainda não vou fazer promessas. Por mais que eu me esforce em manter uma rotina, o oceano não se importa com o calendário e as metas estabelecidas para 2024, então as edições vão sair quando o alinhamento celeste for o ideal e as correntezas forem favoráveis.
Escolhi o nome Luas & Marés porque acho que hoje representa bem esses dois lados meus, artista e cientista, e a conexão entre eles. É impossível desassociar a maré da lua, céu e mar são dois lados da mesma metáfora, e com o passar do tempo me vejo cada vez mais no meio do caminho entre eles.
O passar do tempo é também outro assunto da lua e da maré. A sucessão de fases, a repetição dos ciclos, a certeza de fim e recomeço, a secura da maré baixa e o suspirar da maré alta, a alternância entre a lua cheia reveladora e os mistérios escondidos sob a lua nova. Tudo novo, de novo. É falando sobre isso que quero inaugurar essa nova etapa, esse recomeço, da newsletter.
Se você não tiver mais interesse em estar por aqui, não se sinta mal de querer sair, eu entendo de verdade. Mas se quiser seguir comigo, vou ficar muito feliz de poder continuar compartilhando um pouco com você, e recebendo os comentários que eu nem sempre tenho como responder de imediato mas que fazem meu diamuito mais feliz.
No momento em que começo a escrever essa edição, a lua ainda é Nova, crescendo aos pouquinhos, com apenas 5% de sua superfície visível. A maré é de sizígia, e está no estado alto de acordo com o marégrafo do porto do Rio de Janeiro. Até o final do texto, tudo isso pode ter mudado.
O passar do tempo e o Temeraire
Como promessa de que o mar ainda está aqui, hoje vou falar (um pouco mais do que já falei) da minha pintura favorita e de como ela se relaciona com esse momento de mudança.
Descrição da imagem: Pintura a óleo “The Fighting Temeraire, tugged to her last berth to be broken up, 1838” de James Turner. A imagem é retangular no sentido horizontal, mostra uma paisagem de céu e o rio Tâmisa. Na porção esquerda, um navio com as velas amarradas é rebocado por um rebocar menor soprando fumaça. Na porção direita, vemos outras embarcaões e a silhueta de uma cidade. O céu tem nuvens, uma lua crescente e um sol se pondo. O quadro tem tons de laranja, cinza, marrom e azul escuro, sem linhas fortes.
O quadro “The Fighting Temeraire” foi pintado em óleo sobre tela por Joseph Mallord William Turner no ano de 1838. O título completo do quadro na verdade é “The Fighting Temeraire, tugged to her last berth to be broken up, 1838”, o que numa tradução livre ficaria como “O Combatente Temeraire, rebocado a seu último atracadouro para ser desmantelado, 1838”. O pintor é mais conhecido atualmente como William Turner (inspiração para um certo personagem de um filme? Quem sabe?), e é um artista inglês muito interessado por paisagens e atmosferas naturais, mas também pela contraposição da industrialização e a natureza. Muitas das pinturas dele incluem as “novas” invenções do homem em meio a cenários rurais ou naturais, principalmente nas zonas litorâneas. Se pintura é uma nerdice sua, acho que vale a pena dar uma olhada nos trabalhos dele além desse.
Descobri essa pintura completamente por acaso. Apesar de eu ser uma pintora extremamente amadora, me virando com o que aprendi das aulas de pintura que fazia com a minha tia quando eu era criança, e apesar de ter frequentado desde criança tantos museus de arte quanto possível para alguém que nasceu no interior do estado do Rio numa época em que a internet ainda engatinhava, foi num livro sobre ciência que fui apresentada a minha obra de arte antiga favorita.
É engraçado dizer isso. Eu quase não sei apontar meus favoritos para mais nada, e não sou grande conhecedora dos pintores de várias eras. Mas o quadro chegou até mim numa impressão em preto e branco e bem pequena na página do livro “A montanha de moluscos de Leonardo da Vinci”, de Stephen Jay Gould, paleontólogo (entre outras coisas) e comunicador de ciências. Esse é também um dos meus livros de não-ficção favorito, abriu muito a minha mente quando estava ainda na graduação em oceanografia. Vou poupar vocês do longo percurso (muito interessante) que relaciona a pintura e a ciência, mas se alguém quiser se aventurar fica aí a indicação de um livro sobre como nós humanos fomos compreendendo a natureza ao longo do desenvolvimento do conhecimento científico.
Na época, tudo sobre o quadro me chamou atenção naquela página apertada de livro, mas foi uma apreciação momentânea que se perdeu entre as páginas seguintes e os pensamentos agitados de uma Lis dez anos mais nova. Bem mais tarde encontrei ele em cores pela internet, e tudo que eu li no livro voltou. Já tendo passado algum tempo, a compreensão dos muitos significados que eu podia extrair dele foi se agarrando na minha cabecinha estressada pelo doutorado.
Um pouco de história: o Temeraire (traduzindo literalmente para o português, Temerário) foi um dos grandes símbolos das vitórias inglesas nas guerras napoleônicas, tendo sido uma peça chave na Batalha de Trafalgar. Na parte técnica, o Temeraire é um navio movido a vela, considerado um navio de linha de segunda categoria pelo Sistema de Classificação da Marinha Real Britânica. Em linhas gerais, isso quer dizer que ele contava com 98 canhões, tinha uma tonelagem aproximada de 2.200 e podia transportar uma tripulação da ordem de 700 pessoas. A supremacia naval da Grã-Bretanha dos séculos 18 e 19 traduzida em madeira, cordas e canhões.
O quadro, portanto, retrata os momentos finais desse grande herói de guerra. Está no próprio título. Historiadores não têm certeza de que William Turner assistiu ao evento real, embora existam afirmações de que presenciou o momento. De qualquer forma, sabe-se que ele tomou algumas liberdades criativas, para aumento do efeito dramático, e não vamos julgá-lo por isso (eu, e você artista de qualquer tipo me lendo, já fizemos o mesmo). O desmantelamento do Temeraire atraiu uma certa atenção da imprensa inglesa da época, por conta de sua fama junto ao público. Ele foi vendido pela Marinha para uma companhia privada que ia desmontar e reaproveitar as partes, e na verdade durante esse reboque final já tinha perdido muitos dos componentes principais como canhões, mastros e velas.
De qualquer forma, mais do que retratar o fim de uma lenda, a pintura também mostra o fim de uma era — e o começo de outra. Um dos grandes significadores da cena é que ele vem sendo rebocado por um navio a vapor, menor em tamanho e pompa, escuro e sujo, porém muito mais potente. Ao fundo, vemos ainda alguns outros navios à vela, ou seja, estamos bem no limiar dos novos tempos surgindo, dos gigantes de madeira e pano assistindo o metal e o carvão chegarem para tomar o seu lugar. Ao fundo vemos também uma lua (ali no canto esquerdo superior), cuja luz é refletida na água — estudiosos dos símbolos dessa pintura dizem justamente que é ela que representa o começo dessa nova era industrial enquanto o sol se pondo fala do fim da anterior.
É triste. E também inevitável.
O vapor substituiu a vela, o óleo substituiu o carvão, agora estamos na beira de precisar substituir o óleo de novo por outras energias. Acho particularmente poético voltar ao vento, fechando o ciclo, embora não seja muito otimista sobre essa aplicação em larga escala para o tráfego marítimo mundial. Mas isso é outro assunto.
Uma coisa interessante é que esse texto sobre o Temeraire está sendo escrito em diferentes etapas da minha viagem de férias. Eu devia estar aqui no meio das férias? Talvez não, mas eu nunca fui de recusar as palavras quando elas vêm, e escrever durante viagens sempre foi um hábito — o deslocamento geográfico e cultural solta alguns parafusos aqui dentro, e as palavras vazam por entre as engrenagens. E, por acaso, eu visitei um museu naval.
O Museo Naval de La Nación, localizado na cidadezinha de Tigre da província de Buenos Aires, é dedicado tanto à história naval argentina quanto ao mundo marítimo como um todo. Entre réplicas em miniatura de navios famosos, modelos das primeiras embarcações dos povos antigos e peças reais que cruzaram os mares antes de virarem artigos de museu, a passagem do tempo veio se descortinando de novo. O Temeraire não estava na coleção (até onde eu consegui encontrar, o museu é enorme), e as marinhas da Argentina e da Inglaterra não estão em o que poderíamos chamar de termos amigáveis em função das Malvinas/Falkland, mas a história dele estava. Os navios se substituem, o passado vai ficando cada vez mais distante, à beira de ser esquecido — ou ativamente ignorado.
A pintura do Temeraire está em todas as marinhas, e em todos os lugares tomados pela vivência humana. Tento não fazer um grande juízo de valor sobre isso. Creio que há espaço para um pouco de todos os tempos dentro da gente, não conseguimos viver constantemente em função de um só, nem temos meios de manter cristalizada a sensação de um ou de outro. A não ser talvez nas artes e nesse território insólito que é a nossa essência.
O tempo passa, e minha posição na cena do quadro de Turner vai mudando de lugar. Não vou entrar aqui no mérito ambiental, afinal de contas, esse momento da história humana foi onde começamos a pegar a ladeira abaixo no quesito preservação do planeta em troca de outras coisas. O que me prende e sempre me leva de volta para o quadro é esse reboque, a tensão entre velho e novo, entre diferentes abordagens. Mais nova, e mais impaciente, eu me via no rebocador. Hoje, temo que eu não esteja tão longe de ser o Temeraire, facilmente substituída por pessoas mais conectadas ao tempo presente e ao futuro vindo cada vez mais rápido. Por outro lado, às vezes penso que meu lado oceanográfico é o Temeraire, e a minha escrita seja o rebocador — parece incongruente, nada romântico, mas é sobre a força do movimento do que sobre a forma. A escrita hoje me impele adiante mais do que qualquer outra coisa, e o resto vem a reboque. Acho que em dez ou vinte anos, vou ainda me enxergar em outra posição, talvez nas cores ou no oceano testemunhando morte e renascimento.
O quadro tem diversos outros elementos, outros símbolos, que podem ser analisados com calma e interpretados. Pinturas também são histórias, contadas em outro formato e em diferentes tempos. Se você tem alguma pintura favorita, que te descortina pensamentos e simbolismos, vou adorar saber seja por aqui ou pelas redes sociais.
Últimos lançamentos
Se não me engano, na última newsletter enviada na identidade 20.000 Histórias Submarinas, eu falei de mangue e do meu conto aceito para publicação anglófona na Luna Station Quarterly, que você pode ler aqui.
Desde então, saíram em português mais dois contos meus.
Contenção é uma história de horror publicada na Revista Noturna N. 2, que reúne histórias de horror escritas apenas por mulheres. Esse conto foi (infelizmente) inspirado na vida real: nos esforços de contenção das manchas de óleo que assolaram as praias do nordeste brasileiro, e nos relatos reais que ouvi de mergulhadores que trabalharam na missão. Você pode encontrar a revista aqui ou no Kindle Unlimited, e se aterrorizar com essa e outras quatro histórias de escritoras brasileiras incríveis. A capa, outra obra de arte, é assinada pela incrível Paula Cruz.
As sete mortes de uma sereia é uma tradução de um outro conto meu, originalmente publicado em inglês na Seaborne Magazine. Ele foi lançado pelo selo da Agência Magh, e conta com cenas extras que precisei cortar da versão em inglês por conta do limite de palavras da revista. Essa é uma história absolutamente esquisita, sobre almas presas num ciclo e sobre como alguns sentimentos podem ser uma armadilha, sobre amores mudando ao longo do tempo e do contexto. E sobre divindades caprichosas como gatos. A tendência geral dos comentários de quem já leu é de “comecei não entendendo nada e depois amei”, o que era mesmo um dos meus objetivos artísticos com essa história. Então, se essa for sua praia, vem aqui que ele tá no precinho — além de ser uma leitura bem rápida pra ajudar a bater aquela meta ainda no mês de janeiro.
Marea Infinitus, que completou recentemente 200 avaliações, você pode comprar, ou ler pelo Kindle Unlimited.
Vale lembrar também que todos os meus contos publicados pela Magh estão disponíveis em outras plataformas digitais, incluindo bibliotecas digitais, onde você pode ler de graça de verdade.
Boletim Lunar
No momento em que finalizo a edição, essas são as condições de lua e maré a partir do Rio de Janeiro, às 16:09 GTM-3
Lua Crescente - quarto giboso, 96% de visibilidade
Maré vazante, deixando a quadratura para entrar em sizígia – 0,6 m de altura
O envio está programado para acontecer na próxima lua cheia, a Lua do Lobo, no dia 25/01/2024 – 14:56