O Canto da Sereia

(e o Canto da Sirene)

Eis aqui mais uma newsletter que eu mudei a data de envio porque a vida veio com os atropelos dela e acabei mudando levemente o tema pelo mesmo motivo, mas continuo no especial #mermay então seja bem-vinde a mais uma viagem subaquática. 

Por favor, vista o colete salva-digitação porque você sabe como sereias e erros de gramática são.

Sereias, sirenes (e umas selkies)

And with your mermaid hair and your teeth so sharp

You crawled from the sea to break that sailor's heart

You only get one night up on the shore

So dance like you've never danced before

 

“E com seu cabelo de sereia e dentes tão afiados

Você veio do mar para quebrar o coração daquele marinheiro

Você só tem uma noite em terra

Então dance como nunca dançou antes”

(Tradução livre minha da música Mermaids do album Dance Fever, de Florence Welch)

Esses dias eu fiz uma enquete no twitter porque estava curiosa sobre como as pessoas enxergavam o que cabia numa definição de “sereia”. Não posso dizer que o resultado me deixou surpresa. Definições rígidas até que funcionam, ajudam a guiar nosso olhar por um mundo tão diverso que ameaça a te engolir com incontáveis variações — no fundo, todo mundo tem um pouquinho de taxonomista dentro de si. Então, pra maioria das pessoas, só é sereia se tiver cauda de peixe.

Descrição da imagem: Print de um tuíte no perfil de Lis Vilas Boas em que ela pergunta como uma criatura tem que ser para ser considerada uma sereia. A enquete tem três opções e os resultados são: “Só vale metade peixe” (75% dos votos), “Qualquer mulher cantando” (17%), e “Metade de qualquer bicho” (11%).

Um bocado de gente fez ressalvas perguntando se qualquer bicho era qualquer bicho marinho ou qualquer um mesmo. Originalmente eu tinha pensado em qualquer bicho marinho, confesso que me faltaram os caracteres no tuíte. Mas o tempo foi passando e eu fui pensando em outras coisas então deixei cada um concluir o que quisesse, e falo sobre isso ao longo do texto de hoje. Dessa vez não convidei a Dra. Anabele Arge para dissertar, então vocês vão ter que ficar com as minhas próprias idas e vindas de raciocínio.

A bruxa Úrsula, vilã diva maravilhosa da Pequena Sereia? Não, sinto muito, ficou barrada na porta. Metade polvo, metade água-viva, metade serpente...? Foi mal, gente, vocês estão em uma outra categoria que ainda não tem nome.

Acabou que na enquete eu não dei a minha opinião, e pra registro, deixo ela aqui: qualquer ser que seja metade humana e metade bicho marinho pra mim vale como sereia. “Ah, mas pela definição de...”. Não. Por isso coloquei na enquete “para você, independente do que diz a literatura”. Uma das razões por trás dessa minha visão é bem básica e sem graça: não sei como chamar alguém metade polvo e metade gente. Polveia? Cefalopeia? Aceito sugestões.

Dito isso, eu fiquei encantada com a quantidade considerável de gente que abraçou a opção “qualquer mulher cantando”. Tinha colocado bem pra ver o que ia dar, mas sem expectativas, porque veja bem... o canto é parte integral de uma sereia, e também de uma sirene.

Vamos voltar um pouquinho na questão dos nomes e destrinchar um ponto de confusão taxonômica na sirenologia (se a Dra. Anabele Arge discordar, ela que me corrija, vocês viram na edição passada [link] como ela sabe muito). Sereia e Sirene é a mesma coisa?

Bom... em inglês e também nos textos gregos mais antigos, essas duas categorias ficam bem mais separadas. Temos as mermaids (sereias) e as sirens (sirenes), suspeito que palavras tão diferentes ajudem a diferenciar um pouco os conceitos. Tradicionalmente, as sereias são as criaturas metade gente metade peixe, parte do merfolk (povo sereio? Alô, tradutores, ajuda aqui) que vive no mar e são lindas e tem belas vozes. Já as sirenes são aquelas que cantam nas rochas, aquelas cujo canto hipnotiza quem o escuta, aquelas que são metade... pássaro. Ahá!

As sirenes são decididamente parte da mitologia grega, e na Odisséia de Homero são descritas como tendo cabeça de mulher e corpo de pássaro. Seriam filhas do deus dos rios, Achellus. As sereias também existiam na mitologia grega, filhas de Poseidon e milhares de ninfas, porém são comuns também em outras culturas que nem tinham contato próximo com a Grécia.

Há também uma certa diferença na retratação “moral” dessas duas criaturas... enquanto as sereias são mais ambíguas, nem boas e nem ruins embora certamente encaradas com desconfiança, as sirenes tradicionalmente são más e vão tentar matar alguém nas histórias antigas. Acho isso muito curioso. Não consigo deixar de associar aqui a velha fala “você não é como as outras...”. Veja bem, você não é uma sirene maligna que só quer enganar o pobre coitado do marinheiro, você é uma sereia....

Com o passar do tempo, em algum momento da Idade Média, as sirenes passaram a ser retratadas com metade peixe. Inclusive, vejam essas duas ilustrações absolutamente confusas: uma cena da Odisseia em que uma é metade pássaro e a outra metade peixe atacando o navio; e uma cena em que um centauro aparece do lado de uma sirene fazendo o que sirenes fazem de melhor. O que o centauro tinha a ver com isso? O que estava fazendo na água? Jamais saberemos, mas fica aí o motivo de eu não ter insistido com as pessoas sobre a opção metade qualquer bicho ser especificamente bichos marinhos. Sirenes eram metade pássaros e possivelmente metade cavalos a depender do artista.

Descrição da imagem: Duas ilustrações em papel antigo da era medieval. A ilustração de cima mostra uma cena de homens num navio a vela sendo atacados por uma mulher com corpo de pássaro e por uma mulher com corpo de peixe. A ilustração de baixo mostra três homens num barco a remo, um deles está sendo puxado por uma mulher com cauda de peixe para a água e um centauro segura um arco de flecha logo ao lado.

Com essa mudança de pássaro pra peixe, as duas criaturas foram se tornando cada vez mais associadas e misturadas, os nomes diferentes foram perdendo força. Na prática, em Português, sirene é o que fica em cima da ambulância... aqui teoricamente o termo existente é sereia e serve de termo guarda-chuva pra mulheres que: tem cauda de peixe, que cantam e hipnotizam marinheiros, e etc. Em outros idiomas latinos também tem essa mistura. Já em inglês ainda vejo certa distinção sendo mantida, principalmente com a retratação mais contemporânea de sirenes com corpo humano na cultura pop. Mas as sereias como um todo absorveram a má fama das sirenes, passaram a ser vistas como traiçoeiras e egoístas e sem sentimentos (não me deixem a começar a falar das sereias de Piratas do Caribe).

No geral, ambas as criaturas continuam sendo majoritariamente femininas, apesar de vermos alguns exemplos masculinos desde a mitologia grega (o próprio Tritão, filho de Poseidon, tinha duas caudas de peixe se uma não for suficiente pra você), e agora cada vez mais as pessoas estejam abandonando a binariedade de gênero. Na verdade, sereias que sejam de gênero fluido fazem muito sentido biológico, já que algumas espécies de peixe mudam seu sexo de acordo com a necessidade.

Dito isso, mantive na minha enquete a opção qualquer mulher ao invés de qualquer pessoa por alguns motivos. Essa ideia herdada da mitologia do canto, já misturando sereias e sirenes num mesmo conceito, vem muito forte com a imagem de mulheres enganando os homens — coitadas de nós, sempre as vilãs.

Descrição da imagem: Ilustração de Úrsula, a vilã da versão da Disney de A Pequena Sereia. Ela está sentada com os tentáculos cruzados imitando pernas cruzadas e tem as mãos fechadas na altura dos ombros enquanto sorri com um ar malicioso.

Até quando vamos pra essa versão contemporânea da Pequena Sereia da Disney, em que o canto é um elemento crucial da história, temos uma vilã. Com o lançamento do filme live action tempo desses vi algumas análises bem interessantes sobre como a história não é sobre “mudar por causa de macho” e sim sobre busca por independência e pertencimento, e é verdade. Tem muito pra se tirar dessa história, e de tempos em tempos eu volto nela descobrindo novos olhares. Nos últimos anos as histórias que colocam mulheres umas contra as outras acabam sempre me chamando atenção.

Na Pequena Sereia existe sim uma história do romance, independente de todos os outros elementos presentes. E há uma forma de competição feminina por um príncipe, uma versão boa e uma má do feminino — e aqui ainda vou além, a sereia boa é magra e jovem e inocente, enquanto a bruxa má é gorda, tem cabelo branco e maquiagem exagerada. Até podemos argumentar que o príncipe na verdade significa [insira aqui um objetivo de sua preferência], mas a codificação de que tipos de mulheres são boas e dignas e as que não são continua. Veja, a Úrsula nem sereia é, é uma bruxa velha e rancorosa pelas coisas que perdeu... “No meu tempo, a gente dava festinhas incríveis no palácio”. Já que as sirenes já foram até pássaro, de repente Úrsula é uma sirene? Não sei, mas é bem interessante também que ela rouba a voz de Ariel, tanto pelo acordo quanto na hora que vai enganar diretamente o príncipe.

O canto da sereia, ou o canto da sirene, de repente soa demais como a juventude feminina que encanta os homens mas é só mais um artifício para enganá-los, já que todas as mulheres vão envelhecer e perder seus (en)cantos... É uma cilada, Bino!

Acho que se eu não me interromper vou ficar páginas e mais páginas aqui falando sobre como o mito da sereia/sirene pode ser visto como uma metáfora sobre “como é perigoso para homens se envolverem com mulheres e como no fundo somos todas monstras horríveis”. Uma versão aquática das bruxas, mas em vez de queimar, bora pescar essas criaturas traiçoeiras. Confesso que não sei se mais gente tem essa visão, mas suspeito que o fato de tantas meninas acharem um absurdo a Ariel abrir mão da cauda de peixe pelo príncipe tem um pouco desse trauma enraizado: a sociedade espera que cortemos nossas caudas, que sigamos o padrão ou com o passar do tempo nos tornemos a vilã que sempre souberam que a gente era. Aquela voz bonita nunca nos enganou!

Claro que a personagem Ariel tem seus próprios conflitos, mas isso não impede que cada pessoas faça sua própria associação com a história dela. Acho que, como a música da Florence coloca tão visceralmente, cada vez mais as mulheres estão mais confortáveis em cantar suas canções, em assumir que têm sim caudas cheias de escamas e se você não aceitar isso, bom... a pista de dança vai se enchendo de sangue. É tão ruim assim não querer cortar a cauda fora e ainda desejar um marinheiro que não tenha nojo dela?

Migrando um pouco de mitologia, e dando um pulo mais ao norte da Europa, encontramos as selkies. No caso delas, o corpo não é dividido entre dois bichos, e sim transformado. No mar, pele de foca, na terra pele de gente. Nas histórias as selkies podem ser tanto homem quanto mulher, mas é comum serem sobre uma mulher que tem sua pele de foca roubada e, obrigada a manter a forma humana, é coagida a permanecer em terra, casada e gerando filhos do homem que roubou a pele. Finalmente, quando ela descobre onde está a pele de foca, finalmente completa, a selkie abandona a família que formou sem nem olhar pra trás. Nas versões masculinas as histórias ficam mais próximas do nosso velho conhecido Boto Cor de Rosa, os selkies procuram pessoas insatisfeitas no casamento e usam seus poderes de sedução.

Gosto dessa variedade, vale a pena procurar sobre selkies. Mas será que entram na categoria “sereia”? Tá aí uma questão taxonômica que não acho que eu tenha condições de responder, mas falo delas aqui porque mais uma vez temos essa tensão entre terra e mar, um outro tipo de pressão sobre como a criatura DEVE ser. Os homens não podem amar suas selkies sem esconderem suas peles de foca?

Voltando pro canto... andei pensando muito nisso, em parte por conta do mermay e em parte porque, naquelas coincidências da vida, as minhas duas metades entraram num raro momento de falar sobre a mesma coisa. Sereias aqui como Vilas Boas, e peixes como a outra identidade, pele de escritora, pele de oceanógrafa (hmm... o que será que isso faz de mim? Escritorelkie?).

Andei analisando e investigando coros de peixes. Sabia que peixes cantam para atrair seus parceiros? Pois é, cantam, e na maioria das espécies são os machos que fazem isso. As fêmeas são cortejadas e convencidas e chegarem mais perto e cederem seus gametas, e quem fica horas se esgoelando e tentando encontrar um amor são os machos. De forma mais ou menos análoga, também nas baleias quem canta para atrair uma parceira é o macho.

No meio marinho, cantar para atrair parceires é uma estratégia bem batida, mas muito eficiente. O som viaja rápido e cobre grandes distâncias na água, quase certo de que você vai ser ouvido por quem você quer que te ouça. Não faço ideia se na antiguidade tinham noção disso, e se sabiam provavelmente era no canto melódico das baleias e dos peixes-boi que estavam pensando quando fizeram o paralelo mitológico (o canto dos peixes varia entre sons que lembram batidas na porta ou roncos mecânicos.... pouco inspirador para ouvidos humanos); mas acho muito poético esse paralelo inverso com a mitologia. Sereias/sirenes atraindo marinheiros para afogar, peixes atraindo fêmeas para amar. Os coros reprodutivos dos peixes são tão fortes, que algumas técnicas de pesca artesanal envolvem colocar a orelha junto ao fundo do barco para ouvir se naquela região tem bastante peixe. Assim como as sereias, peixes também morrem por suas vozes...

Quem foi que disse aos marinheiros que as sereias estavam cantando para eles? De todo o tempo do mundo de que dispõem as criaturas, de todo o oceano a seu dispor... é razoável pensar que elas passavam o dia de tocaia só esperando pra hipnotizar desavisados passando? A autoestima dessa conclusão é invejável. Marinheiros incautos não entendem o canto das sereias mais do que pescadores entendem a poesia dos peixes, apenas convivem com ele e o usam da forma que parecer mais lógica. Encontrar, pescar, vilanizar...

Eu não sei, talvez a conclusão disso tudo seja que qualquer mulher seja uma sereia e todo príncipe um pescador? Que qualquer coisa que uma mulher diga seja um canto que um homem considera mentiroso? Deixo pra vocês viajarem e tirarem suas próprias conclusões, não tenho a menor intenção de convencer vocês a enxergarem essas criaturas sob essa ótica. A ideia aqui era trazer essa definições tão rígidas e questionar de onde elas vêm, perguntar como o canto da sirene é tão mais perigoso assim do que o canto da sereia se elas talvez sejam a mesma criatura.

Mais indicações sereianas

Saindo um pouco das mídias escritas, hoje indico um episódio de Bobagens Imperdíveis, o podcast da Aline Valek. Nesse ela fala sobre o gozo da sereia e se pergunta como é o prazer dessas criaturas.

E trago as ilustrações das Sereias Gigantes de uma das minhas artistas brasileiras favoritas, a Joana Fraga. Ela na verdade tem muitas outras sereias lindas, e sempre posta seus desenhos no instagram e no twitter. (Inclusive, não é de sereia, mas ela ilustrou a capa de Mariposa Vermelha, que está em pré-venda pela Editora Suma e eu acho que a Fernanda Castro vai conseguir publicar o melhor livro do ano com essa história.)

Eu até tenho minhas próprias histórias com sereias…

(E inclusive, uma delas tá pra sair MUITO em breve, em inglês! Se você passeia pelas revistas anglófonas, fica de olho!)

Mas publicada mesmo, por enquanto, minha única história submarina é Marea Infinitus, que você encontra aqui por apenas R$ 1,71! E se já leu, deixa umas estrelinhas-do-mar lá pra falar pra todo mundo o que você achou da história.