Necropsia de uma Sereia

Tudo que você não precisava saber sobre a biologia das sereias

Necropsia de uma sereia

Hoje eu fiz uma brincadeira na newsletter, e como sempre peço para você colocar o colete salva-digitação antes de começar a ler.

Uma observação inicial:

Autópsia =coleta de amostras em corpos vivos

Necropsia = coleta de amostras em corpos mortos

(Teoricamente, a dissecação de uma sereia não seria uma coisa nem outra, talvez uma imaginopsia?)

É um resumo bem tosco de uma sereia: metade gente e metade peixe — pelo menos por fora. De todas as criaturas fantásticas marinhas, as sereias talvez sejam as mais universalmente conhecidas, com exemplos em diversas culturas ainda que as mais conhecidas sejam as clássicas mulheres com cauda de peixe e torso e cabeça humanos.

Essa mistura sobrenatural é fascinante justamente por ser incongruente, de difícil associação.

Peixes e mamíferos são tão distantes quanto se pode ser no mundo vertebrado. Um nasce de ovos, o outro de gestações uterinas internas. Um respira em baixo da água, o outro só ar — inclusive os mamíferos marinhos estão restritos quanto a isso, precisam ir até a superfície para respirar e seus corpos são totalmente adaptados para fazer isso da forma mais eficiente possível. Onde estão as sereias nessa fronteira? Como se dá a respiração? Osmorregulação? Termorregulação? Aquele canto famoso de enlouquecer marinheiros é na garganta ou nasce de uma bexiga natatória bem batida como fazem as corvinas?

Elas lançam seus ovos no mar e esperam a mágica da fecundação externa acontecer? Elas ficam grávidas? Elas amamentam seus filhotes? Nada mais justo se perguntar isso bem no dia das mães.

Essas perguntas volta e meia são feitas com diferentes graus de complexidade na internet, o exemplo mais recente chegou até mim através da Mary C. Müller questionando sobre o top das sereias do filme da Pequena Sereia ser feito de escamas ao invés de ser um sutiã de conchas. A consequência lógica de perceber que as escamas estavam cobrindo não só a cauda mas também a parte de cima, é se questionar: mas e as tetas??

Eu compartilhei a minha teoria na hora, mas a coisa ficou morando na minha cabeça como as coisas esquisitas costumam fazer. Se enterram na massa cinzenta e ficam ali cozinhando até ganharem mais corpo e terem forma, se alimentam de outros pensamentos estranhos e de informações absorvidas pelo trabalho e pelo dia-a-dia até que estejam grandes o suficiente para se autointitularem ideias. Ideias esquisitas, mas ideias, e nesta cabeça as estranhezas tem direitos iguais aos dos demais pensamentos. Então, aproveitando que estamos em Maio, o mês das sereias (se você não sabia disso, seja agora apresentado ao conceito de Mermay: Mermaid + May, e saiba que em maio as artes são tomadas por caudas de peixe e cabelos exuberantes), essa e as próximas newsletters desse mês vão ser dedicados a essas criaturas impossíveis e fascinantes. Cada edição, vou focar num tópico específico sobre elas, a começar por…

A Biologia das Sereias: Tudo que você não precisava saber

Descrição da imagem: Pôster ilustrado mostrando os órgãos internos e a anatomia do sistema respitarório e da cauda de duas sereias (um home e uma mulher). Sobre os desenhos está o título “La Sirène” e dizeres em francês sobre os espécimes. Autor: Camille Renversade.

(Essa ilustração bonita e outras você encontra aqui no instagram do artista, Camille Renversade.)

Uma investigação anatômica adequada, obviamente, necessitaria de um espécime morto numa mesa de necropsia para dissecação. Como não dispomos de uma sereia (eu até conseguiria uma mesa de necropsia e os bisturis e material para armazenar amostras, se alguém me arrumar a bicha…..), porque sereias não existem porque não seria ético matar uma só pela curiosidade científica, vamos seguir a partir daqui com o esquema hipotético de uma especialista no assunto.

Convidei a Dra. Anabele Arge (cof cof) para compartilhar com vocês o conhecimento acumulado ao longo de muitos anos pesquisando sereias. A Dra. Anabele é formada pela Universidade de Cedre, especializada em criaturas marinhas impossíveis. Antes de começar gostaria de salientar que, apesar de seus métodos ortodoxos de pesquisa auxiliados pelo corsário Delfime Luces, ela me garante que nenhum espécime foi capturado com o propósito de necropsia e não conduzem nenhum procedimento invasivo de coleta de dados. Abaixo, está o texto escrito por ela própria para ser publicado com exclusividade aqui na 20.000 Histórias Submarinas. Eu mandei algumas perguntas para ela, e a deixei bem à vontade para responder da forma que achasse melhor e mais lógica, só tomei a liberdade de excluir alguns trechos em que a baba do cachorro Larápio que acompanha ela e Delfime nas expedições me impediu de entender o que estava escrito — ela pede desculpas por isso.

O estudo da sirenologia, vocês sabem, avança muito devagar. Suspeitamos que sejam seres inteligentes demais, além de crípticos, e dificilmente se deixam aproximar para interagir. Eu mesma vi algumas vivas apenas em duas ocasiões e Larápio, o safado, latiu e delatou nossa posição nas duas e elas fugiram. Todas as informações que temos hoje, e consideramos confiáveis, portanto, vem do estudo feito através de necropsias em indivíduos mortos encontrados ao longo dos anos em diferentes estágios de decomposição.

O primeiro registro, claro, foi obtido através de uma ossada descoberta numa caverna, que serviu de confirmação para as lendas. Existe uma especulação que o estado extremamente preservado só podia ser resultado de circunstâncias suspeitas para a morte, o esqueleto estava posicionado longe da linha d’água mesmo considerando a maré mais alta já registrada na região. Nenhum exame feito até hoje foi capaz de confirmar a causa, fato é que do crânio até as vértebras caudais foi finalmente possível conhecer a estrutura completa desses seres biologicamente improváveis.

A caixa craniana, para todos os efeitos, tem uma conformação bastante humana, ao ponto de poder ser confundido por olhares desatentos. Há um detalhe, porém, que marca de forma bastante clara a diferença: os dentes. Não temos uma confirmação sobre o que comem, apesar de a onivoria ser muito provável pelas características observadas; a arcada dentária conta com menos dentes, o que chamaríamos de caninos são ocos e pontudos, e os molares com mais cúspides. Suspeitamos que perfurem a carne de pequenos peixes com os caninos e macerem com os molares, assim como maceram algas e animais borrachudos como esponjas.

Partindo para o resto do corpo, vemos a metamorfose entre mamífero bípede e peixe. Pescoço e clavículas são bem mais flexíveis, com articulações que permitem maior rotação— há de se pensar que façam bastante coisa de cabeça para baixo uma vez que a gravidade não é um problema grave. A coluna vertebral se transforma mais ou menos no centro, quando as vértebras passam a ficar maiores e mais fortes para dar conta do movimento da cauda até onde se estendem— o grosso da força é feito na cintura e no abdômen, não na cauda em si. Ao contrário da crença popular, os lóbulos caudais não possuem ossos, e sim estruturas cartilaginosas.

Isso é tudo muito fascinante e, claro, não descobrimos a partir de um único esqueleto. Os espécimes que encalharam mais frescos permitiram saber mais sobre os tecidos e a organização dos órgãos, o que me leva para suas outras perguntas.

Demos boas risadas aqui no navio porque a pergunta sobre como sereias filhotes nascem nos leva a perguntas sobre como são concebidas e Capitão Delfime tem muitas ideias interessantes que infelizmente não posso compartilhar aqui para preservar sua audiência. De qualquer forma, as atividades rep-

[trecho babado]

porém assim como o resto do corpo, a melhor forma de explicar, sendo inclusive consenso entre especialistas, é que depende. Sei que a maioria das pessoas não é muito fã dessa palavra, mas numa criatura como a sereia comum é impossível fugir dela. O aparato interior contém as gônadas produtoras de gametas femininos, e há uma cavidade do que chamamos de útero vestigial — no entanto nunca dissequei um espécime com traços de gestação interna. Isso, naturalmente, não quer dizer muita coisa quando sabemos tão pouco sobre os hábitos de vida delas.

Sobre a fenda genital, ela existe, claro, e à maneira de todos os animais marinhos de corpo hidrodinâmico fica posicionada na parte central do corpo, escondida entre escamas modificadas, que podem ser afastadas. A fenda tem tamanho para comportar um penis de tamanho mediano, contudo como espécimes machos de sereia jamais foram necropsiados não temos como afirmar sobre esse tipo de encaixe. A possibilidade certamente existe, embora o propósito reprodutivo pareça diminuto já que as gônadas têm estruturas para expelir os ovos e a maioria dos peixes realiza a fecundação externa.

Delfime fez um comentário aqui que prefiro não repetir, mas acho que o conceito por trás merece algum crédito: atividades reprodutoras não equivalem a atividades prazeirosas. Deixo você e seus leitores com esse exercício imaginativo, se forem assim inclinados.

Agora o tópico amamentação é deveras interessante e se relaciona diretamente com um debate acirrado na comunidade sirenóloga, pois as questões taxonômicas ainda não resolvidas entram em ação. Pouco mais de sessenta sereias foram necropsiadas no mundo todo, e já faz algum tempo que fizemos uma descoberta fascinante: não são uma espécie única! Não podem ser, pois elas apresentam características morfológicas significativamente diferentes. O Dr. Mugimilia apresentou um seminário comparando os espécimes mais variados, e estruturou uma proposta taxonômica que as separa, a grosso modo, em sereias mais humanas e sereias menos humanas. Ele teoriza que na escala evolutiva, as sereias foram se afastando das características de mamíferos e se aproximando mais dos peixes. Outros especialistas discordam, acham mais provável que seja o caminho contrário — não vou perder tempo discorrendo sobre o pensamento antropocêntrico nas ciências naturais de criaturas mitológicas. O resumo disso é que há sereias cujas mamas são similares as nossas, e há sereias cuja região do torso é coberta em maior ou menor grau por escamas e as mamas são modificadas — são fendas mamárias a exemplo de outros mamíferos marinhos, e são localizadas na região mais próxima das axilas

[trecho babado e rabiscado no qual só é possível ler o garrancho “sovaco”]

-mas vale ressaltar que o leite das sereias não é exatamente como o nosso. É bastante gorduroso, também como o de outros mamíferos marinhos, e possui uma textura pastosa. Essa adaptação resolve o problema do leite se dissolver na água e o filhote não precisar fazer tanto esforço.

Tudo isso também se relaciona com a grande questão: é mamífero ou peixe? Bom, infelizmente a comunidade sirenóloga não tem uma conclusão sobre isso. Elas realizam osmorregulação através de excreção, porém como os mamíferos não bebem água salgada. A excreção é bastante similar a dos peixes, e os orifícios excretores também são escondidos por escamas modificadas. São endotérmicas, e conseguem regular essa temperatura com o sistema contracorrente de circulação (o sangue mais quente que sai do coração passa em artérias envoltas por veias trazendo o sangue mais frio, de modo que a troca ocorre entre os vasos — fascinante, não?!).

A respiração nunca foi observada diretamente, mas os órgãos são também bastante mistos. Os pulmões são um pouco mais rígidos, adaptados para não colapsarem sob a pressão das profundidades, e as narinas possuem uma espécie de membrana que as veda. Na base do pescoço, contudo, muitas vezes escondidas pelos cabelos tipicamente compridos, estão estruturas bastante similares com guelras. Ou seja, são capazes tanto da respiração pulmonar quanto de respiração branquial.

Sinto que não estou sendo muito útil, não estou dando respostas concretas… Mas a sirenologia ainda não as tem. Na minha opinião? São mamíferas. Existem peixes pulmonados, porém não existem mamíferos que não mamem na infância e as glândulas mamárias por mais estranhas que sejam estão presentes em todos os indivíduos necropsiados até hoje.

Outros pesquisadores têm visões diferentes, claro, e deixo aqui uma indicação de leituras introdutórias que as pessoas podem achar interessante, algumas eu mesma escrevi.

Se ainda houverem dúvidas, é só me mandar! Gosto muito de conversar sobre isso.

Introdução à Sirenologia - Anabele Arge

Sirenologia Revisada - Curema Mugimilia

Anais da Sociedade Sirenóloga, publicado pela Sociedade Sirenóloga de Sorre - diversos pesquisadores

[trecho babado]

“Quero ler mais sereias!”

Quer mais sereias?? Claro que eu tenho aqui algumas indicações pra você, de escritoras brasileiras aproveitando o #MaioNacional

“Os 12 Desejos de Turquesa”, da Mary C. Müller (sim, ela mesma) trazem a sereia mais fofa que você vai encontrar nos mares brasileiros. Aqui você encontra a versão para o kindle, mas está em todas as plataformas digitais em que a Agência Magh está presente.

“Derramar” de Marina Melo é uma ficção relâmpago que você lê num instante e no outro tem que lidar com os sentimentos que a história dessa sereia te desperta. Foi publicada pela Faísca Mafagado e você encontra aqui.

Nas próximas edições trago mais sereias!

Não é bem sereia, mas…

Esse mês meu conto Marea Infinitus foi lançado! Essa é a tradução do meu primeiro conto publicado em inglês, no final de 2021, como Cephalopod Heart na revista Hexagon Magazine.

Você encontra a versão para Kindle aqui, mas também está disponível em todas as outras plataformas digitais para leitura.

Se você já leu, considere deixar a sua avaliação no site onde comprou ou nas book redes Goodreads ou Skoob, pra ajudar mais gente a encontrar o caminho até esse planeta.

Vou me aproveitar que você ainda está aqui, e lançar uma pergunta hipotética… se houvesse mais histórias em Marea Infinitus, com outros personagens, você leria?

Descrição da imagem: Capa do ebook de Marea Infinitus. Imagem retangular com colagem de ilustrações sobrepostas de polvos em diferentes posições em tons de azul e bege, sobre a colagem há a ilustração de um coração anatomicamente correto em vermelho e sobre ele o título em letras sem serifa e todas maiúsculas MAREA INFINITUS. No centro superior está o logo da agência MAGH e no centro inferior está o nome da autora Lis Vilas Boas em letras maíusculas e fonte sem serifa sobre uma colagem de papel rasgado.