Guanabaras

A baía onde me tornei cientista e navios colidem com pontes

Primeiro, uma nova apresentação...

Quando eu comecei o projeto da newsletter, as 20.000 Histórias Submarinas da ficção e da vida real, eu falei das duas identidades de Lis. A oceanógrafa: Bittencourt et al, pra ciência. A escritora: Vilas Boas, pra escrita e artes. Um sobrenome e uma característica principal pra cada área da minha vida. Hoje, as duas andam bem borradas, e acho que uma não existe sem a outra por mais que de tempos em tempos um lado da vida grite mais alto. Pra todos efeitos, aqui continuo assinando como Lis Vilas Boas porque esse é o espaço da versão mais livre e divagadora, bagunçada e também esquisita.

Essa mudança já estava planejada. O Revue estava com vários problemas (inclusive o enorme problema de não entregar os textos no seu email!), e já tinha seu fim anunciado. Com o caos na rede do passarinho, achei melhor adiantar essa troca de plataformas antes que eu tivesse dificuldades de anunciar links na rede onde eu tenho maior alcance. Então, aqui estamos: 20.000 Histórias Submarinas no Beehiiv!

Se você está recebendo esse email hoje, é porque estava inscrito na newsletter via Revue. Sinta-se a vontade para remover seu email da lista de inscritos se essa nova plataforma não lhe agrada. Eu escolhi a casa nova a partir de uma mistura de: questões técnicas e valores. Mas, de verdade, eu espero que você fique!

Então... como vai funcionar?

Essencialmente, do mesmo jeito! Continuo mandando textos escritoceanográficos, apresentando curiosidades marinhas que você talvez não soubesse e falando de mares e criaturas fictícias com sob meu olhar de oceanógrafa, e, claro, as minhas próprias histórias.

Talvez você tenha chegado até aqui por "Areia e Pólvora", o meu romance de piratas! Bem, eu sei (sei meeesmo) que ela está atrasada, mas ela continua! Na verdade, está na reta final, e acredito que até o final do ano vocês recebam também o último capítulo da história de Delfim e Anabela e Ladrão. E depois? Bom...

O mar é cheio de histórias e eu também! Já escolhi a história seguinte, e como você já está aqui dou algumas dicas do que esperar dela:

  • um cenário marinho sobre o qual EU JÁ ESCREVI (Lisverso vem aí?)

  • sonhos (ou pesadelos?)

  • uma (ou mais) cadeira

  • esquisitice

  • marcas na areia (eu gosto muito de areia)

O que TALVEZ aconteça é que, com as novas funções que o beehiiv me oferece, eu separe as duas linhas editoriais da news: uma para os textos oceanográficos e outra para a história. Ainda vou pensar sobre isso, estudar o mecanismo, e também perguntar a opinião de quem assina!

Mas, tudo isso é pra depois. Por hora, seguimos com Areia e Pólvora intercalada com meus devaneios. E pela ordem, era hora de um capítulo do romance, só que recentemente teve esse acontecimento que eu não podia deixar passar em branco. Então, hoje vamos falar da Baía de Guanabara e suas diferentes versões.

ATENÇÃO! Ao trocar de embarcação tome cuidado com a borda, risco de queda na água. Por precaução, use seu colete salva-digitação para boiar por cima de possíveis erros de digitação.

Guanabaras

Falei lá em cima que as minhas duas identidades andam meio borradas, e é verdade. Eu ainda não me sinto tão confortável de falar de escrita (e da minha dedicação a publicar histórias) para pessoas com quem convivo no meio acadêmico, por vários motivos. Mas nem sempre dá pra esconder, também por outros tantos motivos. O primeiro texto assinado como Vilas Boas que eu ativamente divulguei pro povo que me conhece como cientista foi o artigo publicado na Revista Pretérita: “Das baleias de Melville e Verne à caça esquecida no Brasil” — baleias estão bem no centro da minha especialização dentro da oceanografia: bioacústica marinha e cetáceos! Parecia um texto legal pra mostrar que eu também escrevo sem assustar ninguém, e também divulgar uma revista que eu gosto pra um público que talvez não soubesse da existência dela. Basicamente, eu pesquiso sobre a comunicação de baleias e golfinhos e como a poluição sonora produzida por nós afeta a fauna marinha. Nesse artigo, falo brevemente sobre algumas coisas que a maioria das pessoas não sabe, e aproveito pra trazer aqui uma imagem que apresento nele: A pesca da baleia na Baía de Guanabara, pintura de Leandro Joaquim em torno de 1750.

Fotografia de um quadro oval no sentido horizontel, de bordas de madeira, retratando a pesca da baleia na Baía de Guanabara no século 18. A pintura é a óleo, mostra morros verdes e alguns prédios brancos no que hoje é a cidade de Niterói e um mar azul onde diversas baleias pretas borrifam e são cercadas por muitos barcos.

Pintura de Leandro Joaquim: "A pesca da baleia na Baía de Guanabara"

Sim, as baleias costumavam ser tão abundantes na Baía de Guanabara, que a caça era comum o suficiente para ser retratada em pintura. Se você mora ou já passeou pelo Rio de Janeiro e foi até a Ponta do Arpoador aplaudir o pôr do sol (ou rir de quem aplaude, sem julgamentos), saiba que você fez isso do lugar onde se arpoava baleias. Arpoador = quem arpoa. Apesar de um passado triste da região, gosto de usar esse fato histórico pouco lembrado para ilustrar o quanto as pessoas não conhecem a Baía de Guanabara.

Desde que entrei de verdade no mundo acadêmico (estágio lá em 2009...), uma das perguntas quem mais fazem quando digo com o que trabalho é: e tem golfinho na Baía de Guanabara??

TEM!

Tem golfinho, tartaruga-marinha, peixes variados, tubarões, raias, moluscos, crustáceos, algas marinhas... A Baía de Guanabara pelas definições oceanográficas é um estuário e tem tudo o que um estuário típico tem. O problema é o que não deveria estar lá, e a proporção disso em relação ao que deveria.

Com 380 km² de espelho d’água, banhando 7 municípios, essa é uma das maiores e mais economicamente expressivas baías do Brasil. Isso significa que existem muitas versões da Guanabara contidas no mesmo espaço.

A baía de quem vive entre Rio e Niterói é limitada pela ponte e o horário das barcas, de um lado com vista para os fortes que guardam a entrada e do outro uma infinidade de navios ancorados. A baía de quem senta na mureta da Urca pra tomar uma cervejinha costuma ser uma das mais bonitas, se parece muito com a baía de quem corre no Aterro do Flamengo ou de quem frequenta a praia de Icaraí em Niterói — são as vistas mais amplas e elitizadas, tem sim suas quantidades de lixo mas ainda longe o suficiente de onde a coisa fica feia. A baía da Ilha do Governador já tem problemas mais escancarados, de um lado tanta poluição que quase não tem oxigênio na água e mal sustenta vida, de outro saem os barcos de tanta gente que pesca e vive do mar. A baía da Ilha de Paquetá carrega um ar de nostalgia, meio lugar de passeio meio lugar esquecido. E além dessas, tem tantas outras marcações geográficas que não tem como citar todas aqui sem fazer uma newsletter gigante.

Também existem as versões de uso. A baía de quem pesca, a baía de quem navega, a baía de quem faz ciência — essa é a minha. Eu moro no Rio, mas não sou carioca, quando eu era criança eu só passava em cima da ponte quando ia visitar a minha tia em Niterói. Fui ser apresentada de verdade quando comecei a estagiar pra estudar os botos que vivem na baía. O boto-cinza, Sotalia guianensis, é o golfinho mais fácil de se encontrar no litoral brasileiro se você souber onde olhar. Não é exuberante como os rotadores de Noronha, é relativamente pequeno e cinza, discreto, um sobrevivente. Na Guanabara costumavam viver mais de 400 botos-cinza, hoje nossa população está quantificada em menos de 30.

Pois é.

A Baía de Guanabara do boto-cinza é uma residência, literalmente. Eles não saem da baía e depois voltam, eles nascem e morrem aqui, se alimentam aqui, criam seus filhotes aqui e esses filhotes também continuam até morrer. A baía deles hoje é muito reduzida. Se antigamente eram vistos de norte a sul, hoje são encontrados lá no fundão, depois da Ilha de Paquetá e na região da Área de Proteção Ambiental de Guapi-mirim. Também é uma baía barulhenta, com o tráfego constante de embarcações grandes e pequenas, e uma baía poluída — esses botos são muito contaminados por diversos compostos químicos, volta e meia são vistos interagindo com lixo...

Temos também a Guanabara das notícias, e essa é a pior de todas. Palco de todas as desgraças possíveis: vazamento horrível de óleo, todo tipo de lixo, desova de corpos, rota de tráfico e contrabando, cemitério de navios. É a versão nua e crua da baía, o fruto de décadas de descaso público em todas as esferas.

Essa semana ela brilhou com o navio que colidiu com a Ponte Rio-Niterói, e logicamente se infiltrou nas conversas das pessoas. Achei que era uma boa hora pra falar dela aqui, em parte porque eu sou apegada à Baía de Guanabara (todos os meus trabalhos de conclusão de graduação, mestrado e doutorado foram conduzidos nela) e em parte porque eu vi um bocado de exageros sendo ditos por aí.

Então, para começar: sim, navios e embarcações de vários tamanhos menores são abandonados aqui. Tem lugares em que é preciso tomar cuidado para não passar por cima de um barco já completamente afundado e sofrer riscos no casco da embarcação onde você está. Esse abandono em específico em geral se dá por motivos de: dinheiros. É muito caro deixar atracado no porto, e também muito caro se desfazer de forma correta e adequada (remover TODO o óleo e combustível dentro, remover tecnologias, retirar o que pode ser reaproveitado, desmontar ou afundar) — basicamente, as empresas escolhem o prejuízo menor.

Não é preciso navegar longe, vários pontos da baía têm uma ou mais carcaça sucateada. E isso é importante: são pontos. Vi muita gente falando que o navio estava à deriva há seis anos. Não estava, gente. Se tivesse ficado à deriva por seis anos já tinha dado merda há muito tempo. Esses navios ficam ancorados, ou no caso de embarcações menores ficam amarrados a algum tipo de poita. Um navio no porto está atracado, um navio ancorado no fundo do mar está fundeado. Pode ser preciosismo de vocabulário, mas como cientista acho importante usar os nomes certos para descrever os problemas corretamente. O que ocorre é o seguinte: a maré e o vento ainda atuam sobre tudo que está amarrado de alguma forma ao fundo, e as correntes e cabos de âncora sempre têm uma sobra que permitam movimentação — se ficarem muito tensionados, arrebentam. E foi isso o que aconteceu. Ao longo de tantos anos abandonado, o navio São Luiz continuou se movendo com as marés e o vento, indo com a maré enchente e voltando com a vazante, girando com o intercalar dos ventos de sul e noroeste... girando ao redor do eixo da corrente da âncora, encurtando essa extensão e progressivamente aumentando pressão no metal que não passava por manutenção sabe-se lá há quanto tempo. Um vento mais forte (como muitos que temos tido ultimamente) foi aquele empurrãozinho final que faltava para quebrar seu elo com o fundo. O São Luiz então foi derivando até encontrar um obstáculo: nossa querida Ponte Rio-Niterói, mestra suprema dos engarrafamentos sem a qual não sabemos mais viver.

Até afundar um navio seria um fim mais digno, mas mesmo isso requer esforço e trabalho. Não pode ser feito em qualquer lugar para não apresentar risco à navegação e não causar danos — nos lugares certos um navio afundado pode servir de recife de coral artificial, nos errados pode prejudicar o ecossistema local. Também é preciso garantir que não tenha substâncias tóxicas.

Daí agora os olhos se voltaram, por enquanto, para a Baía de Guanabara de novo. Ela virou, mais uma vez, uma ótima cabeça de lança pra cutucar algumas figuras que queríamos muito cutucar. E isso não é errado, não mesmo. É necessário mesmo mostrar a realidade e cobrar.

O que me incomoda é esse clima de acabou, a baía está morta e precisamos prender os culpados.

Não, a baía está viva e precisamos mantê-la assim!

Pensando em conservação e estratégias de comunicação, acredito que é preciso tomar cuidado com a imagem de desgraça total como se não adiantasse mais nada, como se estivéssemos além do ponto de recuperação. Não estamos, e digo isso como alguém que já nadou nas águas da baía — muita gente VIVE da baía, porque ela está viva.

No meu trabalho de graduação eu caracterizei os perfis sonoros de vários pontos da Baía de Guanabara. Temos lugares muito ruidosos? Sim, mas temos lugares ainda silenciosos quase ao ponto completamente natural também. No mestrado, mostrei como o boto-cinza da baía ajusta a sua comunicação de acordo com esses lugares mais barulhentos e silenciosos. No doutorado, eu mostrei que não só ainda temos esses lugares acusticamente preservados dentro da baía, como eles mantém ainda os mesmo níveis sonoros de lugares considerados bem mais saudáveis que a Guanabara — o lugar mais silencioso da costa do Rio de Janeiro, entre os que eu pesquisei, foi dentro da baía! E isso é só no meu tema de estudos. Tem muitos outros.

Esse é o lugar que me fez cientista e me ensinou a olhar para o mundo de um jeito menos absoluto, observando contrastes, conhecendo os infinitos tons de azul entre o céu e mar do fundo da baía. A Baía de Guanabara é azul, e também marrom, as vezes um verde meio musgo e talvez cor de vurrAo longo dos últimos quatro anos bem que tentaram, mas nossas medidas de proteção e preservação ambiental ainda existem e resistem. Tem gente sim trabalhando pela baía, que acredita nela. A colisão do navio com a ponte claramente é grave, é um alerta de outras tragédias que podem acontecer, mas tá longe de ser a última pá de terra em cima do caixão.

Convido você, do Rio ou não, a dar uma passeada por aqui. Pegar a barca até Paquetá e fazer um piquenique (vá ver a Praia da Moreninha onde Joaquim Manuel de Macedo teria começado a escrever o livro!). Fazer o passeio de barca que mostra os pontos turísticos da baía. Dar uma remada aqui dentro. Conheça a Baía de Guanabara em todas as suas versões, vai ver lixo mas vai ver muita paisagem bonita também, vai lembrar de por que brigamos contra o descaso ambiental dela. Se der muita sorte, vai ver até um boto saltando.

Nas próximas news...

Sim, eu sei, Delfim e Anabela estão mais do que atrasados. Mas junta mês de NaNoWriMo com final de ano universitário com calendário atrasado por conta da pandemia... já viu!

Quando você menos esperar, Ladrão vai aparecer no seu email!