Entre sal e raízes

O mistério da floresta alagada

Entre sal e raízes

Esse é mais um daqueles textos que eu comecei e recomecei várias vezes. Uma daquelas criaturas ressabiadas, que colocam os olhinhos para fora da toca e ao menor sinal de movimento se enterram novamente — e ai de você se for lá tentar tirar o bicho a força, pois ele tem duas pinças e nenhum apreço à invasão de sua privacidade. Mas hoje estou otimista de conseguir escrevê-lo, vou usar uma isca e atrair aos poucos o monstrinho de palavras até a arapuca.

(Esse final de semana também é um dia propício porque — se você é usuário do Twitter já descobriu — tivemos mais um lembrete de que nosso espaço nas redes sociais nunca é garantido.)

Não se esqueça de vestir o colete salva-digitação! Apesar de serem águas relativamente tranquilas, nunca se sabe quando erros de digitação e a pressa para publicar podem jogar erros de português para dentro do barco.

A Floresta Alagada

Descrição da imagem: Fotografia de um manguezal ao longo do curso de um rio que desemboca no mar. No centro está o curso d’água de cor marrom, e nas laterais estão as árvores com muitas raízes aéreas. Só é possível ver o céu por entre as folhas verdes.

Então hoje venho falar sobre o manguezal, o ecossistema marinho que eu tenho menos afinidade. Preciso logo de cara começar com esse fato para que nenhuma ideia errada seja formada aqui. Eu não sou cria do mangue, eu não tenho facilidade de andar pela lama sem atolar — não tenho essa leveza, seja física ou mental — mas admiro toda a beleza bruta e subestimada de um ambiente em que terra e mar encontram um meio termo. Gosto muito desse termo, inclusive. Floresta Alagada. É uma contradição que me soa poética.

No Brasil, temos florestas de mangue em quase todos os estados litorâneos. Esse é um ecossistema que se desenvolve em regiões tropicais e subtropicais, e que tem um papel crucial no ciclo de vida de muitas espécies marinhas. É comum que ocorra em pontos onde o rio encontra o mar, mas essa não é uma característica obrigatória para o surgimento de uma nova floresta de mangue. O principal é que a área seja frequentemente inundada por água salgada — e esse é um ponto que faz a floresta alagada dos mangues tão especiais: as espécies vegetais que compõem o mangue tem mecanismos especiais para sobreviver à salinidade, ocupam áreas que a maioria das plantas não consegue.

‘Manguezal’ é o termo que usamos para nos referir a floresta de mangue, e ‘mangue’ é a palavra que usamos para nos referir ao tipo de planta que compõe essa floresta. São cerca de 80 espécies no mundo todo. 80 espécies de plantas que só são capazes de existir nessa zona de transição entre terra e mar, onde o ciclo de marés dita o ritmo da vida. No Brasil, encontramos nove, sendo as principais: o mangue-vermelho (Rizophora mangle), o mangue-branco (Laguncularia racemosa), e o mangue-preto (Avicennia schaueriana). Uma floresta de manguezal típica vai ter essas três espécies (ou espécies do mesmo gênero) e uma organização em que cada uma delas será encontrada numa zona específica que atenda às suas necessidades. O mangue-vermelho vai estar mais pro lado do mar nas regiões com mais lama, solos pouco firmes, e vai ter as clássicas raízes áreas que formam os labirintos que costumamos imaginar. O mangue-branco vai estar em regiões mais altas pro lado de terra, portanto menos alagadas, em solos mais arenosos e firmes. O mangue-preto ocupa o espaço intermediário entre os dois, suporta mais variação de condições. A distinção das cores se refere ao tom interno da madeira quando os troncos são cortados.

Apesar de terem preferências distintas, todas as espécies de mangue são capazes de suportar quantidades de salinidade que uma planta terrestre não daria conta. Ou que plantas de água doce, mesmo adaptadas para a vida aquática, não suportariam. É possível encontrar outras espécies vegetais além do mangue nesse ambiente, mas isso graças a presença das árvores de mangue, que sustentam o ecossistema como um todo de muitas formas.

O manguezal tem muitas funções para outros ecossistemas. Um dos exemplos dessa importância vem ganhando destaque nos últimos anos em que as mudanças climáticas tem causados eventos mais intensos: ele é um escudo para a região costeira. Quando as ondas encontram o litoral ocupado pelo mangue, sua energia é dissipada ao atravessar o labirinto de raízes e troncos. Quando encontram um litoral liso não tem nada para impedir seu avanço sobre a terra (e sobre construções humanas).

Uma das coisas mais legais sobre o manguezal, pra mim, está no seu papel de berçário para espécies marinhas. Seja na copa das árvores, seja nas águas sombreadas da floresta alagada, o início da vida de muitas aves, peixes e crustáceos é nesse lugar de interseções. Até grandes predadores, como tubarões, começam pequeno na vida, e enquanto jovens vulneráveis precisam de lugares seguros e com grande oferta de alimento até terem tamanho suficiente para nadar na mesa dos adultos. Diversas espécies migram para que seus filhotes nasçam na Maternidade Manguezal, com toda a estrutura e conforto que apenas a floresta alagada e salina tem para oferecer!

Se você leu a história que eu publiquei recentemente na revista Luna Station Quarterly, Mother Mangue, já sabe de onde eu tirei algumas inspirações extremas para o conto. Mother Mangue são duas personagens no conto, é o título que pessoas de um vilarejo usam para se referir a bruxa que vive no manguezal a quem recorrem para assuntos de gravidez. O conto em si é muito mais sobre solidão do que maternidade, embora esses dois assuntos estejam frequentemente tão entrelaçados quantos as raízes aéreas do mangue. Mas além de usar a ideia de berçário, tem uma outra inspiração que eu tirei da floresta, essa bem menos conhecida.

Algumas espécies de mangue são vivíparas. Lembra dessa definição? Ovíparos – botam ovos externos; ovovivíparas – botam ovos internos; vivíparas – gestam internamente, sem ovos. Seres humanos são vivíparos, assim como a grande maioria dos mamíferos. Ou seja... as árvores de mangue ficam grávidas.

(Vou te dar um tempo pra absorver a informação. Eu gastei uns bons vinte minutos da aula em que aprendi isso pra conciliar as ideias.)

Tudo bem, tudo bem... talvez seja um exagero usar esse termo. Gravidez é assunto sério e etc. Mas, a verdade é que ambientes salinos são sempre difíceis, por mais adaptado que o organismo esteja a eles. Não é tão simples quanto uma semente atingir o solo, onde teoricamente ela vai encontrar tudo que precisa para germinar. Além de ter que lidar com o excesso de sal, também há a questão da deriva com a maré, que pode tanto levar a nova plantinha para um lugar propício logo de cara quanto deixa-la boiando por muito tempo e percorrendo longos trechos... a única forma de sobreviver a isso é se esse novo indivíduo estiver muito bem protegido, ou se já estiver completamente formado.

Eis a solução para o mangue: propágulos! Muitas formas de vida usam propágulos, na definição biológica do termo sementes e esporos são propágulos. Há aí algumas particularidades de termos para cada espécie, mas a ideia geral do propágulo do mangue é essa: a semente germina dentro do fruto, ainda conectada à planta-mãe. Esse fruto, o propágulo, pode se abrir para soltar a nova planta quando cair na água e esbarrar na lama ou resistir muito tempo à deriva até encontrar um novo litoral a colonizar. Assim, a mudinha de mangue já nasce pronta para ganhar o mundo. Ganhar o mundo e colonizar novos litorais faz parte da ideia, já que não dá para elas crescerem umas sobre as outras.

Eu não sou botânica e, talvez justamente por isso, essa ideia me marcou demais. É claro que toda planta vivente hoje tem uma estratégia de dispersão de sementes eficiente. Mas o mangue dispersa indivíduos, não sementes, e esse paralelo com o reino animal me faz ter aqueles arrepios do tipo “o mundo é fascinante”.

Uma vez, em férias de família, eu estava numa praia no Espírito Santo. Sou daquelas que quando tá sentada na cadeira de praia fica mexendo o pé e fazendo desenhos na areia, escavando e depois tampando aleatoriamente o espaço em volta de mim — numa dessas, encontrei um propágulo. Toda prosa, ainda jovem e sem ter concluído a graduação, virei pra minha família perguntando se alguém sabia o que era. Pra minha enorme felicidade, ninguém sabia, e eu pude me deliciar com o momento de compartilhar uma coisa nova com as pessoas. Contei isso tudo sobre o mangue, e provavelmente com mais detalhes porque a aula estava mais fresca na mente. Fui recompensada com o mesmo fascínio – plantas grávidas! – e até um pouco de descrença de alguns membros mais desinteressados da família (veja bem, fazer oceanografia não era coisa de gente normal). Nisso, passou um vendedor de queijo coalho (a gente sempre comprava queijo coalho nessa praia) e ouviu sobre o que eu estava falando, não pegou a conversa toda mas o suficiente pra sorrir e dizer “vocês sabiam que isso é filhote de mangue?”. A sabedoria popular de alguém que convivia com o ecossistema foi suficiente pra convencer o resto da família e eu ganhei o meu dia com aquele pedacinho de conhecimento cuidadosamente germinado em sala de aula e então disseminado – praticamente um propágulo por si só. Na foto aqui embaixo você vê propágulos de mangue-vermelho. Talvez já tenha visto alguns na praia e não tenha reparado.

Descrição da imagem: fotografia de 15 propágulos de mangue-vermelho enfileirados sobre uma superfície branca. Os propágulos tem forma tubular, são majoritariamente de cor verde-escura com a ponta marrom de onde saem pequenos filamentos similares a raízes.

Um lugar misterioso

Berçário, escudo litorâneo, fonte de subsistência... e tudo isso entre sal, raízes retorcidas, águas muitas vezes escuras e o cheiro da matéria orgânica em lenta decomposição. Nenhum manguezal é igual ao outro, apesar de a primeira vista parecer que é tudo mato e lama. A “cara” do manguezal varia de acordo com o lugar, com o regime de águas da geografia e oceanografia local, e também com a interação humana, essa praga... Na Baía de Guanabara, aqui no Rio de Janeiro, o manguezal mais preservado é o que está dentro da Área de Proteção Ambiental de Guapi-mirim, um exemplo entre muitos no Brasil em que a parceria dos órgãos de conservação ambiental e comunidades locais se esforçam para realizar um uso mais sustentável do ambiente. Também na Baía de Guanabara, temos o manguezal da ilha do Fundão, onde a abundância de lixo provavelmente é maior que a de peixes. Essa região, inclusive, costumava ser um complexo de ilhas (de manguezal) que foram aterradas para compor artificialmente o que hoje chamamos de Ilha do Fundão.

O que eu vejo de comum em todos os manguezais é o ar de mistério. Quando você entra numa floresta de mangue, mesmo que numa incrustrada na selva urbana, atravessa pra um mundo paralelo onde o chão perde a firmeza e os sons ganham outro timbre. Você ouve coisas que não vê, sente os esbarrar de criaturas amorfas no pé enfiado na água, tem o vislumbre de pinças rápidas, fica toda hora no limiar entre sombra e luz. É preciso andar com cuidado para não atolar (já atolei), não pisar num caranguejo (já pisei), não se perder (já me perdi), e não deixar a imaginação correr solta (você já pegou a ideia).

Uma vez explorando um manguezal com amigos da faculdade ouvimos passos. Não sei se eles se recordam disso, mas minha imaginação fértil se apegou nessa lembrança e eu ainda consigo escutar o som. Num arroubo de ideias brilhantes (tivemos muitas nessa viagem), resolvemos caminhar pelo percurso do rio razinho porque ia ser muito mais fácil – eu só atolei e quase perdi o chinelo mil vezes, mas tudo bem. Fomos pelo caminho da água. Quatro jovens aventureiros (eu, nem tanto) não são exatamente discretos, então enquanto estávamos em movimento ouvíamos muito mais nosso próprio barulho do que os sons da mata. Mas quando a gente parava.... tchec tchec tchec... O primeiro que reparou no som comentou, e aí fomos ficando mais quietos, tentando ouvir. Paramos um tempo e o som parou. Voltamos a caminhar e lá veio o tchec tchec de novo. E de novo. Em determinado momento ficamos um tempão parados, ouvidos atentos (e meu coração já disparado, pessoa medrosa que sou), e os tchec tchec tchec prosseguindo, hora variando o ritmo e hora seguindo constante numa direção impossível de verificar até que... TCHIBUM.

Sei lá o que foi isso, até hoje não sei. Não tinha nenhuma outra evidência de mais gente ao redor, embora provavelmente fosse uma pessoa pegando caranguejo – não que pessoas sejam tão mais seguras assim do que bichos papões feitos de lama. Mas fiquei muito feliz com a decisão coletiva de ir pra uma trilha mais normal após o tchibum e adicionei o acontecimento na minha lista de experiências que alimentam medos irracionais.

Talvez o que torne o manguezal seguro seja toda essa aura de que monstros maiores estão à espreita. Não importa que o bicho papão seja na verdade um caranguejo possivelmente com mais medo de você do que você dele, ele também é todo o manguezal. Monstros e medos são feitos da mesma matéria que o lugar onde habitam. (Pessoas também.)

Eu disse lá em cima que o manguezal é um ecossistema com que tenho pouca afinidade, mas talvez seja mais justo dizer que é o ecossistema onde me sinto menos capaz e mais presa, mais perdida. Eu o respeito, de longe, varro para ele os medos e metáforas que posso me dar ao luxo de não enfrentar e olho com cautela para o limite de raízes retorcidas.

Não posso falar muito mais do que isso, ou o texto se assusta. Algumas palavras e pensamentos precisam mesmo ficar sob a lama, amadurecendo antes de estarem prontos para deixar o manguezal rumo ao mar aberto e a boca faminta de peixes maiores. As muitas versões desse texto alinhavaram muitas coisas esquisitas e pessoais, então preferi me valer dos nomes científicos e deixar que cada pessoa absorvesse o manguezal como preferisse. O que você associa à floresta alagada?

Histórias...

Se essa edição te despertou alguma curiosidade, te deixou com vontade de histórias que se passam no manguezal, te dou algumas sugestões de leituras. A maioria delas é de arrepiar, provando que eu não sou a única pessoa que associa o manguezal com aspectos sombrios:

  • Antes Havia Pássaros, conto do Moacir Fio que saiu na edição mais recente da Eita!, fala de uma cidade de lama e desejos infantis perigosos. Leia com a luz acesa, seja a versão em português ou a versão em inglês.

  • Terra Alagada, romance de Lucas Santana, ainda não li mas está na minha lista de leitura. É um thriller de suspense que começa com a descoberta do corpo de uma drag queen do mangue. Confesso que só não li ainda porque tô juntando coragem. Esse está no KU!

  • Mother Mangue, a minha história que saiu na Luna Station Quartely porque se eu não falar das minhas histórias quem mais vai, não é mesmo? Essa é menos assustadora e mais melancólica, fala de solidão e maternidade e como muitas vezes mulheres são berçários de si mesmas. Essa leitura é gratuita!