Um manifesto por comprar as próprias flores

e uma pausa para girassóis

- Boletim Lunar -

Início da escrita: Transição da lua cheia para a lua minguante, com 82% da superfície visível. A maré está baixa e enchente, ainda há muitas horas de alcançar a altura máxima.

Término da escrita e Data de envio: Lua gibosa, já quase cheia com 90% da superfície visível. A maré está alta, porém baixando aos poucos. A próxima Lua Cheia será a Lua das Flores, no dia 23/04.

Luas & Marés #3.5 - Consultado pela Tábua de Maré do porto do Rio de Janeiro

Nessa edição você encontra:

  • Floriografia e girassóis e arte

  • Novidades

  • Indicações minhas

UM MANIFESTO POR COMPRAR SUAS PRÓPRIAS FLORES

Eu numerei essa edição como 3.5 porque a número 3 eu deixei o texto de lado por enquanto, estava muito confuso e talvez até um pouco raivoso, um dia eu retomo.

Originalmente esse texto abordava e misturava dois assuntos que na minha cabeça são paralelos, mas resolvi desmembrar os temas em nome de não soar tão amarga com algumas questões, e de também tentar enganar meu consciente com um pouco de beleza e curiosidades aleatórias na esperança de que isso mais tarde se reverta em um pouco de arte.

Então hoje eu vim falar de flores, elas acabam cumprindo esse papel para mim.

Quem me acompanha na rede das fotos (é um pouco estranho falar isso, porque não sou blogueira, mas ok), volta e meia me vê postar foto da banca de flores na feira, ou dos arranjos que eu levo pra casa. Normalmente eu escolho pelo que me dá na telha no dia, a energia que eu quero reforçar em casa ou para me inspirar em determinado projeto.

Rosas para quando estou escrevendo romances, girassóis para quando quero me cercar de um pouco de otimismo, gérberas para vibrar com as cores fortes, cravinas para focar nas coisas mais simples da vida, astromélias para uma semana mais distraída... todas essas associações são minhas, por motivos acumulados ao longo da vida. Mas quando eu descobri que existe todo um vocabulário botânico mundo afora, um que envolve uma mistura de relações culturais, significados sagrados, e símbolos diversos, fiquei encantada com a complexidade que uma linguagem das flores pode assumir e fascinada pelas diferenças de interpretações. Flores, acredite você ou não, podem mandar alguém tomar no cu praquele lugar, se combinadas com jeitinho.

Floriografia é o nome chique para a linguagem vitoriana das flores. A sociedade vitoriana, cheia de regras de comportamento, desenvolveu essa forma de comunicação velada — um jeito de dizer às vistas de todos como se sentia ou o que pensava verdadeiramente de uma determinada pessoa. Falar em alto e bom no meio do chá da tarde que se preocupa com uma pessoa querida era um escândalo, mandar flores pra dizer exatamente isso… aí tudo bem. Um único buquê poderia avisar a alguém que você sabe dos segredos terríveis que ela guarda , ou mandar o jovem lorde inconveniente se mancar, ou comunicar que seu coração está fechado para balanço. Luto, amizade, inveja, ciúmes, devoção, conquista, saudades, alegria... amor. Quase tudo podia ser expressado nos arranjos de flores e ramos de diversas plantas.

Deixo aqui alguns exemplos, uns para demonstrar a variedade dos significados. Essa lista é bem curta, tem muito mais flores no dicionário floriográfico do que isso, mas já dá pra brincar.

  • Rosa – amor romântico

  • Cravo – amor maternal ou coração partido

  • Magnolia – dignidade

  • Manjericão – ódio

  • Lavanda – desconfiança

  • Flor de Laranjeira – amor eterno

  • Girassol – falsas riquezas

  • Amarílis – orgulho

  • Jacinto – me perdoe

  • Oliveira – paz

  • Eucalipto – proteção

  • Camomila – força na adversidade

  • Margarida – inocência

  • Begonia – um aviso

Dessa forma, combinando num mesmo buquê ramos de lavanda com begônias você pode informar delicadamente a uma pessoa que não confia nela e está de olho nela. Ou, com folhas de eucalipto e flores de laranjeira pode dedicar sua devoção e proteção eternas a alguém que ama. Para dizer que sabe que uma pessoa está sendo acusada de algo injustamente, pode misturar margaridas e camomilas. O ramo de oliveira e o jacinto juntos mostram a vontade de encerrar uma briga. Muitas combinações, para muito além das rosas para dizer que está apaixonada.

Aqui estou usando os significados reunidos no livro Floriography organizado e ilustrado por Jessica Roux, e caso se interesse você encontra no Kindle Unlimited. Só pelas ilustrações charmosas já vale a pena, e no livro tem muitas outras flores e sugestões de buquês e combinações, se estiver a fim de aprender um novo idioma. Procurando nas internets da vida também é bem provável que encontre algumas dessas plantas com outro significado, mesmo em fontes “floriográficas”, e acho que isso é parte da beleza de tudo.

Inclusive, por aqui desse lado do Atlântico nos dias atuais pouco dessa linguagem faz sentido. As flores estão associadas principalmente a presentes românticos, ou de pesar e luto, e um pouco com bons votos no geral: flores no hospital para alguém se recuperando, ou para quem acabou de parir. (Isso quando não são consideradas presentes supérfluos, “presente que vira lixo”… mas pelo menos é orgânico). A verdade é que assim como idiomas aparentados podem ter palavras similares com significados muito diferentes, as interpretações da floriografia clássica são essencialmente britânicas e não poderiam nunca serem consideradas universais. Quem disse que os ingleses do século 18 têm que ditar como interpretamos símbolos?

Os girassóis das falsas riquezas para uns é lealdade e adoração para outros, ou até mesmo gratidão para Vincent Van Gogh. Como essas coisas acontecem?

Uma pausa para girassóis

Eu confesso, não sei como essas coisas acontecem... mas vem comigo nessa viagem.

Na Floriografia vitoriana, acredita-se que o significado dos girassóis tenha vindo da invasão espanhola na América do Sul. Ao se deparar com um campo de girassóis ao longe nas terras incas, os espanhóis teriam acreditado que era um campo de ouro, e depois ficaram um tanto quanto decepcionados com a verdade.  Por isso, para eles e para os ingleses e todos os outros invasores europeus que vieram pra cá atrás de explorar e destruir girassóis passaram a significar falsas riquezas. Em contraste, para muitos povos indígenas da América do Norte e para os astecas e incas essa flor tinha associações com deuses solares. Essas culturas também cultivavam a planta para usos diversos, de modo que para elas o girassol era sim uma riqueza real. Há evidências de que o girassol foi domesticado para agricultura há mais de 5000 anos nas Américas, pense nisso quando você pegar uma garrafinha de um óleo de girassol no mercado.

Em alguns lugares você talvez leia que o nome científico do girassol (gênero Helianthos) seja por conta do mito do titã do sol, Hélio, e da ninfa Clitia, que se transformou numa flor que sempre acompanha o sol depois de ser rejeitada por ele. Porém, a flor em que ela se transformou é uma flor bem diferente, menor que o girassol e roxa, o heliotropo. O girassol é nativo das Américas, e não há indícios de girassóis na antiguidade da Grécia.

(E talvez seja aqui um bom momento para mencionar que o girassol na verdade não acompanha o movimento do sol.)

De qualquer forma, os mitos têm esse hábito de se misturarem e transformarem, e bem ou mal para algumas pessoas o girassol tem essa conotação de lealdade e devoção, o que também não deixa de ser um significado bonito. A minha associação pessoal é com o otimismo por uma série de motivos que não tem nenhum embasamento lógico. Gosto do amarelo vivo contrastando com o preto escuro, e gosto da abundância — é uma flor grande, viçosa, espaçosa, retém o amarelo vivo até depois de murchar.

O pintor Vincent Van Gogh também tinha uma associação própria: gratidão.

Vincent conhecidamente era uma pessoa com muitas emoções difíceis. (Não repara na intimidade, mas recentemente pesquisando sobre ele descobri que ele gostaria que fosse lembrado como assinava suas pinturas, por Vincent e não apenas por Van Gogh. Estou tentando respeitar o artista.) Não consegui descobrir ainda o motivo dele enxergar gratidão nessas pétalas*, mas certamente era importante para ele.

* curiosidade: O que entendemos como a flor do girassol não é bem uma “flor verdadeira” e sim uma inflorescência, ou seja, um conjunto de flores. As pétalas amarelas do girassol são flores por si só, que no caso dessa inflorescência se chamam flores do raio (como os raios solares!), e no miolo pretinho temos as flores do disco. Cada vez que você cheira um girassol, está cheirando dezenas de flores ao mesmo tempo!

Vincent pintou onze quadros de girassóis, cinco deles provavelmente são o que você tem em mente quando pensa nos famosos “Girassóis de Van Gogh” (embora muita gente não saiba que são cinco quadros diferentes). Na figura ali em baixo você pode ver como os cinco são muito parecidos, talvez tentativas variadas com diferenças significativas como as cores do fundo e o número de flores (14 em uns e 15 em outros). Outros dois quadros de girassóis eram mais diferentes (com bem menos flores, e diferentes tentativas de cor) e hoje estão inacessíveis ao público — um está numa coleção privada e outro foi destruído no Japão durante bombardeios da Segunda Guerra Mundial. Além desses, há ainda outras pinturas bem menos conhecidas, mas que compunham o amor do pintor por girassóis.

Descrição da imagem: Composição com os cinco quadros mais famosos de girassóis de Vincent Vangogh, pitados em torno de 1888. Todos os cinco são variações de girassóis num vaso arredondado que apresenta duas cores: um amarelo combinado com outros sons de amarelo ou azul. Em todos os quadros o vaso está sobre uma mesa de madeira e contra um fundo liso de parede. Os tons do fundo mudam de um quadro para outro, em alguns são azuis e em outros amarelos. A quantidade de flores em cada vaso também varia, em alguns têm14 e outros têm 15.

 Na época em que ele viveu era comum pintar natureza morta, vendia bem e todo mundo precisa pagar as contas, principalmente artistas. Muitos pintores escolhiam composições complexas, muitas vezes contra fundos escuros, e muitos deles achavam o girassol uma flor menor, pouco elegante. Vincent, chegou a experimentar arranjos diversos, pintou outras flores antes de se firmar com os girassóis e de fugir dos fundos escuros. Nessa fase, ele abraçou a vibração de amarelo contra azul ou de amarelo contra amarelo. Ele ficou tão associado a essa flor que seu amigo pintor, Paul Gauguin, registrou em um quadro próprio uma cena de Vincent pintando suas favoritas. Gauguin também dizia que os girassóis de Vincent eram os melhores.

Descrição da imagem: Quadro pintado por Paul Gauguin em Arles, 1888 mostrando uma cena de Vincent Van Gogh pintando girassóis enquanto observa um vaso com as flores. O quadro usa tons de amarelo, laranja, marrom e azul.

Descrição da imagem: Quadro pintado por Monet em 1881, retratando um buquê cheio de girassóis e folhagem verde escura em um vaso pequeno e reto sobre uma mesa com toalha avermelhada e fundo variando em tons de rosa e cinza e azul.

Monet também pintou girassóis num vaso, mas num quadro que não alcançou o mesmo destaque na cultura popular, e com uma diferença crucial — os de Monet estão “vivos”, são flores frescas e exuberantes numa cena de natureza morta. Os girassóis de Vincent apresentam sinais de decomposição, são flores que já estavam envasadas há algum tempo (pela minha experiência com girassóis, chutaria em torno de quatro ou cinco dias), começando a murchar. Alguns já completamente murchos e sem as pétalas. Embora ambas as abordagens de Monet e Vincent sejam tecnicamente consideradas como natureza morta (aquela categoria de artes que mostra objetos inanimados ou seres teoricamente sem consciência em cenas com ausência de pessoas), os girassóis de Vincent também são quadros vibrantes e vivos, tanto pelo uso de cor quanto por toda a história do pintor com essa flor. São girassóis imortais. Talvez essa natureza de flores em vaso não seja tão morta assim, no final das contas.

E no final das contas, continuo sem saber o que nos girassóis inspirava nele o sentimento de gratidão, fato é que quando abriu a casa em Arles para abrigar diversos pintores — seus amigos e colegas de profissão, juntos em comunhão com a arte — pendurou os girassóis nos quartos dessa casa. Do jeito dele, da forma que a mente dele funcionava, estava agradecendo pela presença de todos.

E não precisa fazer sentido para ninguém mais.

As flores não precisam dizer a mesma coisa para eu e você.

Voltando

A presença das flores nas artes é bem marcante, e não só em pinturas. A rosa marca o tempo de uma maldição no conto de fadas A Bela e a Fera. Mrs. Dalloway decide comprar as próprias flores  e as usa como referência e metáforas por toda história escrita por Virginia Woolf. No livro Mariposa Vermelha (leia esse livro imediatamente), escrito por Fernanda Castro, todas as personagens têm nomes de planta, e várias são flores: Amarílis, Dália, Rosa(linda), Antúrio, Jacinto.

A tradição de comprar as próprias flores, porém com outras motivações, se mantém na música recente de Miley Cyrus que canta “Started to cry, but then remembered I/I can buy myself flowers”. E já que estamos falando de música, não podemos deixar de lembrar que Geraldo Vandré de uma forma ou de outra acabou falando de flores em Pra Não Dizer que Não Falei de Flores. Florence Welch cantou “Made myself mythical, tried to be real/Saw the future in the face of a Daffodil”.

Não me parece coincidência tantas flores espalhadas pela arte. Alguns elementos falam com a gente, despertam aquele arrepio simbólico que nos fazem gostar e colecionar e perceber e criar. Para cada pessoa pode ocorrer de uma forma única.

Comigo as flores falam de temas diversos, a depender de qual delas está no vaso, porém sempre com uma linha comum de prestar atenção ao presente. Ao contrário das minhas plantas envasadas na terra, os arranjos me jogam na cara a passagem de um tempo mais breve, mais urgente. O período em que posso apreciar aquela combinação de flores, cores e cheiros é contado. O passar dos dias muda os tons e texturas das pétalas e folhas, a beleza se transforma numa outra coisa, outra mensagem e outra arte.

Talvez elas não sirvam mesmo para nada, a não ser ficarem eternizadas em obras que um bocado de gente por aí também diria que não serve para nada.

O quadro na parede, o livro na estante, a música nos fones de ouvido... as pessoas se rodeiam de pequenos pedacinhos de beleza (em suas múltiplas facetas de gosto e de significado) que duram apenas pelo momento em que as apreciam, os arranjos de flores não são tão diferentes disso. Duram pouco até serem eternizados pelo significado que recebem.

A beleza, como um todo, caminha sempre nesse fio da navalha. Pode pender para algo que movimenta uma indústria forte e lucrativa e paranoica, ou para dialogar com questões íntimas e importantes para um indivíduo, ou ser descartada como uma futilidade da vaidade que deve ser ignorada em favor de virtudes mais nobres e verdadeiramente produtivas…

Como ousamos gostar de coisas que não tem serventia? Que são efêmeras?

“Lis, você só falou isso tudo porque você tem nome de flor!”

Talvez, nunca saberemos...

Talvez eu só goste de ganhar flores, e tenha passado a comprar as minhas próprias flores porque em algum momento eu tenha percebido que não preciso esperar presentes. Buscar as coisas que gostamos, nos rodear delas, pode ser um caminho para muitas descobertas e novas criações. Se para você que está lendo as flores não tem esse efeito talvez valha pensar no que tem e em como ter mais disso na sua vida, sem se privar do que te inspira.

NOVIDADES

Então, eu vou lançar um livro. Um romance. Se você perdeu o burburinho das redes sociais, pode conferir aqui e aqui como foi o anúncio. Vai sair pela Editora Rocco, uma casa editorial dos sonhos, e mal tenho palavras para descrever o quanto estou animada.

Não tenho certeza do quanto eu posso falar sobre isso por enquanto, embora a sinopse já diga um bocado sobre o que você vai encontrar nesse romance sobrenatural de moral altamente questionável. Até o lançamento (que também não sei dizer também exatamente quando vai ser), vou divulgando por aqui e nas minhas redes novidades e pistas e quem sabe até algumas frases soltas sem contexto? Ao longo dos últimos meses eu deixei bem claro que estava trabalhando num projeto com lobisomens, talvez eu tenha espalhado outras dicas pelos meus perfis...

Eu também tenho uma outra novidade de escritora que não sei quando vou poder contar, mas acho que deve ser divulgada ainda esse ano. Fiquem de olho. Tem a ver com peixes e naves espaciais, mais ou menos.

COISAS QUE A MARÉ TROUXE

Eu vejo sessões como essa em newsletters de colegas que admiro, e resolvi incorporar no finalzinho de Luas & Marés pequenas sugestões de coisas que eu gosto e talvez outras pessoas possam gostar também. (Além de tudo que eu já comentei ao longo dessa edição)

  • Feirinhas: sou muito adepta de feirinha, sempre acho alguma roupa ou acessório que combina com o meu estilo e me sinto bem contribuindo para um comércio mais focado em pequenos empreendedores. Dias 27 e 28 de abril vai ocorrer a feira do Mercado, organizada por estilistas independentes, e com um pouco de tudo acontecendo. Comidinhas, tatuagens flash, oficinas de desenho... Vai acontecer naRua do Pinheiro, 10 - Flamengo, pertinho do metrô do Largo do Machado no Rio de Janeiro.

  • Griselda: em algum momento do último mês terminei de ver essa série da Netflix. Griselda foi uma chefona colombiana do tráfico nos EUA. La Madrina. A série deu uma resumida em alguns acontecimentos, mas até onde vi pareceu um bom resumo da vida dela. Ainda não tenho certeza se melhorou ou piorou a imagem dela, mas gosto de histórias de mulheres trambiqueiras. É uma série relativamente curta, dá pra ver bem rápido.

  • Wonderbook: para quem escreve ou quer aprender e se aperfeiçoar em escrita (principalmente a ficção imaginativa), esse livro do Jeff Vandermeer é muito bom. Não está traduzido para o português, infelizmente, mas se você consegue se virar bem no inglês vale a pena ficar acompanhando até aparecer uma promoção e comprar lá de fora. Volta e meia ele fica em promoção, eu comprei em uma e dias depois uma amiga conseguiu mais barato ainda.