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20.000 Histórias Submarinas - Tubarões, grrrrr

Mais uma semana, mais um pedacinho de mar entre ficção e realidade chegando por aqui.

Os dias tem sido bem cansativos, esse final de setembro está acabando comigo! Mas também preciso reconhecer que tem sido recompensador de muitas formas. O retorno que tenho tido com essa pequena aventura tem sido bastante positivo, de gente encantada com tantas coisas oceânicas, de gente curiosa, de gente feliz por mim. Não vou cansar de agradecer todo mundo que deu uma chance pra esse email cair na caixa de entrada!

Lembrando sempre que erros de digitação são peixes difíceis de capturar! Não estranhe se algum tiver escapado da minha rede.

Tubarões, os vilões que não merecíamos

A minha ideia inicial era fazer uma edição sobre elasmobrânquios em geral, mas aconteceu que eu depois de muito tempo finalmente consegui ler o livro Tubarão, de Peter Benchley, e aí não deu. A coisa toda me consumiu de tal forma que estamos aqui hoje pra falar só de tubarões mesmo.

Então começamos por isso aí que eu disse. Sabia que o filme Tubarão vem de um livro? Pois é.

E segura mais essa:

O filme é melhor que o livro.

Vamos todos respirar fundo aqui porque eu sei que estou correndo um grande risco ao afirmar isso, mas deixem eu narrar a minha breve jornada com Tubarão. Eu peguei o livro pra ler recentemente, já tendo visto o filme algumas vezes ao longo da vida porque como boa oceanógrafa que sou eu adorava reclamar do oceanógrafo do filme, o personagem Matt Hopper. Fui pro livro seca pra encontrar um oceanógrafo mal representado, ou pelo menos cheio de ciência controversa. Bom... eu encontrei outras coisas que, para o meu gosto, são piores.

Pra ser justa, eu devia ter sido alertada pelo que o autor fala bem no finalzinho de sua introdução, escrita em 2005 para um dos relançamentos do livro. (Aqui uma breve cronologia, o livro foi lançado em 1974, as conversas sobre o filme começaram em 1973: de alguma forma Peter Benchley conseguiu vender os direitos de seu romance de estreia ainda não lançado para um estúdio de cinema, conseguiu participar da escrita do roteiro do filme, e ainda deu a sorte de ir parar na mão de Spielberg. Se alguém souber do segredo, compartilhe com a gente.)

E é isso. Eu li e descobri pra vocês.

O filme não tem o romance, nem a máfia, e ele é melhor por isso. Talvez alguém por aí que tenha gostado mais do livro, cada um com seu cada um. Meu problema foi que o livro é AMERICAN. As preocupações dos personagens são machistas e preconceituosas e AMERICANS. O “romance” mencionado, é um casal cujo casamento está em crise e assombrado pelo fantasma da traição. A máfia se reduz a uns caras matando animais de estimação inocentes em nome do bom e velho capitalismo selvagem. No combo tubarão + romance + máfia, a animação Espanta-Tubarões tem uma história bem mais amarrada (mesmo que seja bem menos ancorada na realidade).

Aí você me pergunta: mas e o tubarão de Tubarão, Lis?

Bom, o tubarão no livro aparece até menos do que no filme, porque a história fica dando voltas e voltas em cima da crise matrimonial do xerife. Preciso reconhecer que cientificamente falando, o livro acerta um pouco mais que o filme, mas não tanto que compense todo o resto. O filme concentra de maneira mais objetiva o verdadeiro tema por trás da história, que é: quando as pessoas precisam fazer uma escolha difícil em relação ao mundo natural, elas vão escolher o que o dinheiro mandar. A grande questão não é o que fazer com o tubarão, e sim se as praias da cidade devem ser fechadas por segurança ou se devem permanecer abertas porque a cidade depende economicamente do turismo. (Hm... essa frase poderia ser escrita sobre muitas questões ambientais da atualidade, não é mesmo?) De verdade, vá ver o filme em toda sua qualidade hollywoodiana, e pode deixar o livro pra lá.

Até porque, convenhamos, foi o filme que pegou o tubarão-branco e colocou o bicho no imaginário popular em larga escala como algo a ser temido. Antes do filme ele já tinha seu lugar no medo humano, o próprio autor fala um pouco sobre como não queria que o livro fosse apenas uma história sobre um tubarão comedor de gente, mas o poder do blockbuster massificou uma consciência que antes era mais restrita ao litoral. Os tubarões oficialmente viraram monstros terríveis.

Muitos filmes num cenário exclusivamente marinho usam de alguma forma o tubarão como vilão. Desde a Pequena Sereia ao Megalodon. Aqui é legal citar que o Espanta-Tubarões e Procurando Nemo foram muito bons mostrar uma visão diferente, brincando com a ideia de que nem todos são carnívoros “malvados” e até mostrando outras espécies, mas eles também partem do princípio do tubarão-branco ameaçador.

E chegamos num outro efeito do tratamento cinematográfico dado aos tubarões no cinema além da vilanização, que é a simplificação exagerada de todo o grupo taxonômico. O tubarão que normalmente aparece em tudo é o tubarão-branco, Carcharodon carcharias, mas tem muitos outros que não tiveram, ou tem muito pouco, espaço na ficção. Existem cerca de 500 espécies dentro do grupo Selachimorpha, a subdivisão da classe Elasmobranchii ao qual os tubarões pertencem. (E aqui não estamos nem incluindo as raias, que pertencem a subdivisão Batoidea, mas que são os parentes próximos.) Sinceramente, acho que podemos fazer melhor do que isso, acho que podemos ir além da figura da arcada aberta cheia de fileiras de dentes.

Já é um estereótipo nos filmes e desenhos, a placa de carro saindo da boca de um grande branco, e realmente objetos inusitados são encontrados em estômagos de tubarão. Mas por que ninguém fala das três espécies de tubarões que se alimentam de plâncton, por exemplo? (A título de curiosidade: Cetorhinus maximus , Megachasma pelagios e Rhincodon typus, esse último o querido tubarão-baleia) São o mais perto do vegetarianismo que um tubarão da vida real chega — por mais que Lenny de Espanta-Tubarões e Bruce de Procurando Nemo sejam engraçados, eles estão bem longe do que é possível para um tubarão-branco.

Em tempos mais recentes, o extinto Megalodon (Otodus megalodon) andou ganhando espaço, um monstro hollywoodiano de proporções ainda maiores dando descanso ao tubarão-branco (que aliás, é cinza, mas não me pergunte). Também temos a belíssima exceção de Destiny, a tubarão-baleia de Procurando Dory. Se você lembrar de mais algum, me fala?

Como oceanógrafa, eu não consigo me livrar da responsabilidade de representar as criaturas marinhas de forma justa num mundo que, em grande parte, as enxerga quase sempre como produtos, recursos. Não acho que a ficção precisa ter o rigor científico, mas acredito que as histórias podem ser usadas para passar outros pontos de vista, outras espécies, outros papéis para os vilões.

Quase ninguém lembra — ou sabe — que tubarões são, também, comida. Num sentido mais amplo na natureza, podem ser presas de orcas ou de outros tubarões maiores. No mundo antrópico, são um dos grupos mais ameaçados pela pesca excessiva, tanto para consumo direto como dano colateral da exploração de outros peixes.

O prato talvez mais famoso, seja a sopa de barbatana de tubarão, em que as nadadeiras dorsais são utilizadas. A captura muitas vezes acontece com o requinte de crueldade de pegar o tubarão, cortar a barbatana com ele ainda vivo, e depois lança-lo de volta ao mar, onde ele não terá como sobreviver. Aqui no Brasil não está no nosso hábito de consumo em larga escala como outros peixes, mas recentemente muitas pessoas ficaram chocadas ao descobrir que comem tubarão: cação é um tubarão.

Cação quase sempre é o nome comum de um tubarão que tem hábito de vida bentônico, ou seja, que nada rente ao fundo marinho e é encontrado normalmente perto de recifes ou ambientes rochosos. Eu disse quase sempre porque não se enganem, é prática comum pegar qualquer peixe e colocar na etiqueta o nome de um outro peixe com que ele é parecido. Testes genéticos mostram que muitos peixes que compramos já cortados no mercado na verdade pertencem a espécies diferentes da anunciada (chegando perto do Natal ou da Páscoa alguém me lembre de falar de bacalhau!), portanto grandes chances de vários elasmobrânquios associados ao fundo serem consumidos como cação.

Talvez seja difícil conceber os tubarões como vítimas. Ao contrário dos cefalópodes que eu trouxe lá na primeira newsletter, os tubarões despertam medo não pelo fator desconhecido, mas justamente porque sabemos que são reais, sabemos que incidentes entre tubarões e surfistas acontecem. Mas, por uma série de fatores estão também entre os animais sob maior risco — os grandes predadores são sempre muito difíceis de preservar, sentem os efeitos não só do que é feito diretamente a eles, mas também ao que ocorre ao longo de toda a teia alimentar.

O medo aos tubarões, em algumas ocasiões desconta em animais que não tem nada a ver com a história. Existe uma espécie de cetáceo, o cachalote-anão, que é bem pequeno e tem marcas na lateral do corpo que fazem com que se pareçam um tubarão. Se você acha que já mataram espécimes de Kogia achando que eram tubarões, você acertou.

Acho que o mais quero falar nessa edição não é apontar onde e como a ficção existente errou ou acertou sobre tubarões, mas sim sugerir outras representações para esses animais. O primeiro parágrafo que Peter Benchley escreveu até que é bastante preciso, cientificamente falando:

O gigantesco peixe movia-se em silêncio pelas águas da noite, empurrado pelos toques curtos de sua cauda em formato de meia-lua. A boca abria-se o suficiente para deixar passar um jato de água por suas guelras. Havia um outro discreto movimento: uma mudança eventual do curso, aparentemente sem sentido, feita por um leve levantar ou abaixar da barbatana pelo peito — como um pássaro que muda de direção abaixando uma asa e levantando a outra. Os não enxergavam no escuro e os outros sentidos não emitiam nada de extraordinário ao cérebro pequeno e primitivo. O peixe deveria estar dormindo, exceto pelo movimento ditado por incontáveis milhões de anos de continuidade instintiva: à falta de bexiga de flutuação, comum a outros peixes, e de aletas móveis para liberar a água carregada de oxigênio por entre suas guelras, ele só sobreviveria caso se movimentasse. Uma vez parado, afundaria até o fundo do mar e morreria por asfixia.

Peter Benchley, tradução de Carla Madeira

Ótimo. Realmente são peixes, realmente respiram de baixo d’água e precisam que água corra por suas fendas branquiais, realmente não têm a bexiga para auxiliar na flutuação (fazem isso através de um óleo no fígado, um produto bastante valioso, inclusive), e mais uma infinidade de características muito interessantes. (Já falei que eles são peixes cartilaginosos? Eles não têm ossos!) Mas logo em seguida todas as coisas curiosas são abandonadas e o tubarão vira um assassino sem nenhuma explicação. Bom, acho que podemos mais e podemos melhor, mesmo em histórias de terror/horror/ação. O mundo está cheio de tubarões: grandes e pequenos; predadores, filtradores e carniceiros; habitantes das zonas abissais, de recifes de corais, e dos grandes desertos oceânicos... por que precisamos exaltar esse único aspecto relacionado a poder e agressividade?

Deixo vocês com essa pergunta, e com um convite para me mandarem sua histórias não-convencionais sobre esses peixinhos. Repitam comigo: os tubarões são amigos, não comida!

Novidades

Setembro, como eu disse lá em cima, foi um MÊS, com muitos altos e baixos. Entre os altos, eu tive a honra de ser convidada para contribuir com a Revista Pretérita! O meu artigo “Das baleias de Melville e Verne à caça esquicida no Brasil” vai sair na segunda edição da revista, junto com contos de ficção histórica centrados em corpos d’água, escritos por pessoas maravilhosas. O trabalho da Pretérita é lindo, e fiquei muito feliz de participar! No site deles vocês encontram a primeira edição de graça. Fiquem atentos para o lançamento.

E também, nessa segunda-feira sai uma ficção relâmpago minha pela Faísca Mafagafo. A Faísca também é em formato de newsletter, e gratuita! Você pode assinar essa belezinha aqui e receber ficção curta de qualidade toda semana!

E na semana que vem, temos o terceiro capítulo de Areia e Pólvora, por aqui mesmo. Aliás, pra ajudar quem está acompanhando a história, na semana que vem junto do capítulo 3 você vai receber um mapa dos Mares Esquecidos! O que será que vai acontecer no caminho para Porto Aveiro?