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20.000 Histórias Submarinas - Areia & Pólvora #3

Bom dia! Hoje é dia de mais um pouquinho de história de piratas, então jogue sua âncora e pare um pouquinho!

Atenção! Essa newsletter pode conter erros de digitação! Por favor, ao embarcar, use o colete salva-digitação!

Nos capítulos anteriores...

Conhecemos o capitão pirata Delfim Lucas, Ladrão (alguns diriam, o verdadeiro protagonista da história) e parte de sua tripulação. Ferido e com o navio em condições terríveis, ele se viu obrigado a recorrer a uma substância perigosa enquanto busca uma solução para problemas maiores.

E conhecemos também a Dra. Anabela Argo, que está viajando o mundo em busca de uma grande descoberta! Ela resgatou um grupo de náufragos dos destroços de um ataque do pirata Nero, alguém que infligiu uma grande dor a sua família.

Quando, e como, esses dois vão se encontrar?

(Aliás, obrigada Arthur Marchetto pela dica de inserir essa parte! Se você não conhece a newsletter do Arthur, recomendo fortemente dar uma olhada e assinar a Ponto Nemo aqui)

3 - Instinto

Anabela ergueu o mapa, tentando fingir que não estava contrariada. A situação demandava que fossem direto para Porto Aveiro, porque precisavam se livrar dela. A situação, naquele momento, andava pelo convés principal do Curiosidade cutucando amarrações e dando batidinhas nas partes de madeira e metal. O Passo dos Melvos teria que ficar para depois.

— Os rodamoinhos e os peixes ainda estarão lá depois de largarmos sr. Hermes e seus companheiros em terra firme.

Márcia estava certa, claro. E ela não conseguiria fazer as coletas em paz com a sensação de que aquele homem estava… fuxicando o navio.

— De repente não precisamos atracar. Podemos baixar uma escada no meio dos ninhos e deixar que façam o caminho até a cidade. — Claro que não era uma sugestão séria, embora ela tivesse certeza que Josefino, pelo menos, acharia uma ótima ideia. Márcia lhe devolveu um sorriso indulgente, e Anabela suspirou. — Bom, os meninos disseram uma vez que Porto Aveiro era uma cidade bonita… um ou dois dias atracados pode ser bom para os ânimos de todos.

— Não para o seu, mas tenha certeza que seu esforço é percebido pela tripulação.

Sentiu que mais uma vez Márcia queria dar uma lição sútil sobre liderança, ou sobre a vida fora dos tubos de ensaio, o que só aumentou sua sensação de que estava falhando. Por mais que apreciasse o que a capitã tinha para ensinar, naquele momento não conseguia se importar. A carta náutica dos Mares Esquecidos e todos os seus segredos ainda não descobertos zombavam de Anabela, o horizonte trazia cada vez mais para perto a noção de que havia navegado mais de meio mundo sem conseguir nada. Aquele conjunto de ilhas e atóis representadas no papel era o último pedaço de mar que tinha para explorar, nas últimas semanas de que podia dispor, e não se sentia nem um pouco mais capaz de entrar para a Academia do que quando partira.

— Algum progresso com a areia azul?

— Não, eu… — Tinha desistido daquela ideia, na verdade, mas estava sem coragem de dizer em voz alta. — Preciso pensar melhor em como trabalhar as amostras. Se eu correr o sedimento pelo ácido, posso perder matéria orgânica que seja útil, ou até mais interessante.

— Pensar melhor não é o que você vem fazendo a viagem toda?

— Você preferiria que eu saísse fazendo as coisas sem pensar?

— Pode ser bom, se o contrário não está funcionando. Instinto é tão bom quanto raciocínio.

— Desse jeito vou pensar que você gostava de me ver explodindo coisas.

— Explosões são, literalmente, o que trouxe o Curiosidade até aqui.

Anabela lutou contra um sorriso; era uma forma de se pensar, mesmo que não fosse suficiente para lhe garantir entrada na Academia. Márcia abriu a boca para dizer mais alguma coisa, mas foram interrompidas por um pigarro. A situação estava lá, do outro lado da carta náutica que ela segurava na frente do rosto.

— Pois não, sr. Hermes?

Ao longo do último dia ele tinha se banhado e ganhado roupas novas emprestadas, mas a limpeza apenas acentuou sua palidez incondizente com alguém que trabalhava embarcado. Anabela o observou tentando mais uma vez identificar o que a fazia sentir acuada.

— Eu só queria perguntar, matar a curiosidade… esse navio não é movido apenas pelo vento, não é? — Hermes ergueu o rosto para os sacos aéreos e depois para as velas laterais — O Curiosidade também tem um motor vibrando embaixo de nós.

A resposta de Anabela foi erguer uma sobrancelha. Ele não podia estar falando sério. A CCIE usava navios tão modernos quanto aquele, mesmo que os motores movidos a carbotina do Curiosidade fossem uma inovação ainda desconhecida para o resto do mundo. Seu estranhamento foi percebido, o homem alargou o sorriso.

— Algum problema com a minha pergunta, doutora? — O tom de voz era polido até demais, colocando mais ênfase no ‘doutora’.

— Não. Eu fiquei apenas curiosa.

— Uma cientista deve mesmo ser curiosa, suponho. Muito apropriado o nome do navio.

— O senhor olha em volta como se nunca tivesse visto um navio híbrido antes.

— Mas a doutora deve saber que essa caravela é quase uma obra de arte, não? Não é todo dia que se encontra um navio voador como essa maravilha da engenharia nessas águas.

— Não há navios híbridos nessa parte do mundo?

— Inteiros? Não por muito tempo. — Dessa vez o sorriso nem se alargou nem diminuiu, mas os olhos brilharam.

— Piratas — disse Márcia.

— Precisamente.

— A CCIE não tem um acordo com o Príncipe de Aveiro para proteção? — Anabela se lembrava disso, de Castro tentando lhe fazer decorar todos os portos seguros em que poderia pedir socorro.

— Ter até tem, mas... as águas andam agitadas por aqui. Quando os Argo começaram a expulsar da pirataria no Reino de Sorra, muitos desses bandidos vieram para o norte, encontraram refúgio nos Mares Esquecidos. E agora...

Por um instante o homem perdeu o ar desdenhoso, olhou para o horizonte de forma pensativa. Anabela pensou ver preocupação no rosto dele, mas achou a emoção tão esquisita nele quanto sua curiosidade. O braço direito teve um pequeno espasmo, que ele conteve com a outra mão.

— E agora? — Márcia insistiu.

— Um pirata específico tem tentado fechar as mãos ao redor desse pedaço de mundo, foi ele que nos atacou ontem. Está montando uma frota para si próprio, para manter um território. Se intitula Rei Pirata, esse fugitivo das águas de Sorra.

Nero. Pensar no nome foi o suficiente para trazer de volta emoções das quais Anabela queria distância, a visão da fumaça esverdeada do dia anterior ainda fresca demais. Detestava se sentir inútil, também detestava sentir que seria capaz de fazer coisas horríveis se tivesse a chance, e aquele homem havia despertado tudo isso e mais um pouco quando matara seu irmão mais velho. Nenhum Argo tinha sido o mesmo depois daquela perda, mas as vezes ela temia que a pior transformação tinha sido a sua, como se o melhor de si tivesse sido engolido pelas ondas junto com o Petrel. Castro havia enrijecido, ela se desfeito numa massa disforme e insegura.

Não era um bom momento para chegar à conclusão de que sua viagem, sua circum-navegação tardia, era uma tentativa de recolocar as peças no lugar. Empurrou de novo tudo para longe, focando no problema do presente.

— Nero é feito mais de sonhos de grandeza do que competência, mais cedo ou mais tarde alguém vai dar cabo dele por aqui. — E se o fato não se concretizasse, ela conhecia alguém que estaria disposto a fazer a viagem.

— Doutora Argo, já lutou no mar? — O sr. Hermes olhava para ela com interesse.

— Todo Argo já lutou no mar. — Não era uma mentira completa, já havia empunhado armas ao lado de Castro, mas também era um exagero. Sua maior contribuição para a guerra declarada contra a pirataria depois da morte de Gamão tinha sido outra.

Márcia cruzou os braços para Hermes.

— Já que estamos satisfazendo curiosidades, posso perguntar por onde o senhor navegava quando o Reino de Sorra limpava seus mares da escória pirata?

Por um breve instante, Anabela pensou ver a ofensa no rosto dele. Lhe incomodava como tinha vislumbres de coisas escondidas sob a superfície contida da face pálida demais. Lembrou de um verme-de-ostra saindo para espiar por entre as conchas antes de se esconder de novo. Num segundo um franzir de sobrancelhas e crispar de lábios, no outro Hermes sorriu cordialmente para todos como vinha sempre fazendo.

— Um jovem marinheiro mercante na CCIE, subindo na hierarquia com o suor do meu trabalho honesto. — A mentira naquela frase era óbvia, como se ele não estivesse mesmo tentando escondê-la.

Um apito do vigia quebrou o momento. Um silvo longo seguido de três curtos, velas vinham na direção do Curiosidade. Márcia lhe deu um aceno curto e foi para o passadiço, indicando para que dois marinheiros ficassem próximos de Anabela. Hermes também se afastou, se juntando a seu grupo na abalaustrada, olhando o navio que se aproximava e conversando através de sussurros agitados.

Era uma fragata navegando de forma tradicional, galgando as ondas como se fosse um golfinho. O Curiosidade não voava baixo o suficiente para que Anabela percebesse muitos detalhes sobre a embarcação. Suas velas eram azuladas, tirando o melhor que os ventos tinham a oferecer, vinha tão rápida que parecia que saltaria para planar acima do mar a qualquer instante. Se eles também estivessem navegando tradicionalmente, seria uma questão de minutos para que o navio os acertasse em cheio por bombordo.

O som de uma baforada potente veio dos sacos aéreos, expandindo mais os gases e os fazendo subir mais, tirando-os do alcance de possíveis tiros. Anabela quase podia ouvir as ordens de Márcia sendo distribuídas no passadiço.

Com alguma expectativa inominável, provavelmente oriunda da desconfiança que havia se instalado entre a tripulação e os resgatados, todos no convés assistiram o progresso da fragata, imperturbada pelo ganho de altitude. Josefino percorreu o convés principal até alcançá-la, sinalizando para que os marinheiros ficassem atentos.

Todos esperavam alguma coisa acontecer. Anabela chegou a pensar que era exagero estarem tensos daquela forma, encontravam navios no mar o tempo todo. Mas assim que a fragata os alcançou, soube que os instintos de Márcia e Josefino estavam certos. Ágil, ela virou e desacelerou, se colocando diretamente abaixo do Curiosidade, de repente escondida da artilharia do casco.

Anabela respirou fundo e repassou os fatores em ação. Continuavam ganhando altitude, mas havia um limite. Era um híbrido, não um dirigível. O casco por baixo era reforçado, mas se atingissem os propulsores seriam nada além de um balão estilizado no ar. As velas laterais não tinham boa capacidade de manobra e as tradicionais não funcionavam bem com os sacos aéreos inflados, de modo que seriam obrigados a baixar até o mar para poder usar o vento.

— Doutora, por favor, dessa vez vá para dentro — Josefino sussurrou.

—- O que? Não, eu…

No caso de um ataque, sabia que não tinha muita utilidade ali fora, apesar da bravata de momentos antes. Num cenário de batalha, seu melhor posto de combate seria dentro do navio, não importava o quanto por algum motivo aquilo ferisse seu orgulho. Anabela estava pronta para concordar quando reparou no grupo da CCIE.

Hermes estava se inclinando sobre a abalaustrada, tentando enxergar abaixo do navio. Seus acompanhantes o seguravam, e ele agitava um dos braços, como se acenando para a fragata. Josefino bradou algo que ela não entendeu, mas que colocou todos no convés em movimento.

Um marinho apareceu para puxá-la na direção do passadiço enquanto outros correram na direção dos resgatados, os dois grupos entraram em luta corporal. Anabela estava quase na passagem que dava acesso ao convés superior quando se virou e encontrou os olhos de Hermes. Ele sorriu de forma cordial para ela, cordial e desdenhosa.

Um marinheiro avançou em direção a ele e foi encontrado no meio do caminho com um soco. Hermes lhe roubou a arma de cano médio da cintura, e com uma calma que não condizia em nada com a situação, mirou no saco aéreo frontal da proa.

Com dois tiros, o saco aéreo estourou.

O Curiosidade foi puxado pela gravidade e empurrado pelo jorro de gás escapando. A proa emborcou para frente por causa do peso mal distribuído pelos sacos aéreos restantes, voando para frente e para baixo, desequilibrando todos a bordo.

Alarmes e a voz de Márcia rugiram no fonoclama. Hermes e seus companheiros lutavam com a tripulação, e Anabela ainda tentava recuperar o equilíbrio quando viu os ganchos surgindo pelo bico da proa. Ela precisava alcançar o passadiço, mas subir as escadas agora tinha se tornado mais difícil.

De início, nenhum invasor apareceu, mas rebocando também o peso extra, o Curiosidade desceu mais ainda. A estibordo, as pontas dos mastros da fragata surgiram enquanto ela saía de baixo do navio e o puxava, desnivelando mais ainda o convés.

Hermes e seus companheiros mal pareceram sentir a manobra. Saltaram para os mastros sabendo que a tripulação não teria coragem de atirar na direção dos outros sacos aéreos. Anabela se forçou a dar as costas para eles, tentando escalar a escada pelo corrimão. Medo, ansiedade, choque, tudo passava por ela em ondas, a obrigando a aceitar que aquilo estava mesmo acontecendo. O que seus irmãos fariam?

— Soltar as velas! Recolher sacos aéreos! — veio a voz de Márcia pelo fonoclama.

O barulho do propulsor a carbotina cessou logo em seguide. Anabela sabia o que aquilo queria dizer. Tinham sido forçados para o mar, então a capitã tinha decidido lutar. O Curiosidade não tinha tantos canhões quanto um navio de patrulha, mas não era inútil. Uma vibração sob seus pés e mãos lhe informou que a artilharia estava apenas aguardando entrar no ângulo de tiro.

Ela se preparou, logo estaria na horizontal de novo. Quando o casco bateu na superfície do mar, viu de relance o nome da fragata. Balaena, o nome antigo das baleias-noturnas. Então aqueles piratas se achavam os maiores caçadores de todos os oceanos? Era uma afronta. A raiva substituiu o medo, não precisava se perguntar o que Castro faria.

Eles ainda estavam com o resquício de impulsão dos motores aéreos, mas a proa ainda estava presa pelos ganchos ao mesmo tempo que o navio inimigo estava desacelerando. Na disputa de movimentos com direções opostas, o Curiosidade e o Balaena giraram ao redor um do outro até ficarem de frente. As artilharias começaram a trabalhar, e a invasão começou. Josefino conduziu a tripulação para a proa, de encontro aos piratas.

Anabela estava procurando uma arma que pudesse usar quando o viu pela primeira vez.

Ele não era alto, mas parecia um gigante com seus ombros largos e os cabelos cor de areia dourada balançando ao vento sobre o casaco escuro comprido. O cavanhaque loiro não fazia nada para esconder um sorriso arrogante, satisfeito diante do progresso abordagem. A mão direita, toda tatuada, segurava uma pistola-espada.

Por alguns instantes o homem ficou parado na proa, não parecia ter pressa de se juntar à luta. Então Hermes foi até ele, o puxando para um abraço. Os dois trocaram palavras apressadas, antes de se virarem ao mesmo tempo e atirarem.

Anabela demorou para entender que foi o corpo de Josefino que caiu diante dos disparos, sumindo de vista por trás das outras pessoas em luta.

Não chegou a ouvir os tiros, mas a queda do rapaz foi como o Petrel caindo de novo. Alguma coisa dentro dela estalou e saiu do lugar, uma engrenagem sua, talvez a última que ainda viesse funcionando direito. Mal reconheceu a própria voz no grito de raiva, de luto enjaulado.

Parou de procurar uma arma, e sacou a faca escondida na bota que Castro sempre dizia para carregar. Uma voz interna, abafada pelos ruídos da luta, lhe avisou que não estava pensando direito, mas a ignorou. Instinto era tão bom quanto raciocínio.

Nas próximas...

No próximo capítulo de Areia e Pólvora teremos o encontro mais aguardado! Sim, justamente, o de Anabela e Ladrão, o resto vocês vão ter que esperar para ler.

E para a newsletter de semana que vem... estou pensando aproveitar o clima de dia das bruxas...