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20.000 Histórias Submarinas - Areia & Pólvora #2

Bom dia!

Hoje chega pra você o segundo capítulo de Areia e Pólvora, voando no navio híbrido mais moderno que a frota dos Argo tem a oferecer. (Talvez seja o único navio moderno que a frota tem a oferecer, mas isso é outra história. De verdade.)

Na próxima semana, vem uma News temática falando de um bicho que as pessoas acham que dispensa apresentações, mas que na verdade tem um mundo de surpresas por trás.

Atenção! Essa newsletter pode conter erros de digitação! Por favor, ao embarcar, use o colete salva-digitação!

2 – Uma Argo em seu navio

O Curiosidade estava silencioso demais para um navio. Anabela se deu conta disso quando percebeu que o único barulho que escutava era o ranger da corda que estava puxando. Ela não precisava puxar, o navio tinha um guincho para a função, mas gostava do esforço físico. De noite, quando a exaustão batia, era mais fácil fingir que estava indo tudo bem, que o silêncio da tripulação era normal.

A garota refletida na superfície dos Mares Esquecidos não parecia ter os problemas que ela tinha. A água tingiu em tons de azul sua pele marrom e o cabelo preto liso preso num coque, os óculos de aro redondo brilhavam com o sol, os lábios cheios apertados em concentração. Olhando assim, Anabela parecia o tipo de mulher determinada que queria ser, e quando a garrafa de pistão quebrou o reflexo ao emergir, ela tentou se apegar naquela imagem.

Os marinheiros ajudaram a carregar o cilindro para a mesa montada no convés principal. Ignorando os olhares ansiosos, ela destravou a tampa de pressão, e liberou a coluna de sedimentos na bandeja, com cuidado para não desmanchar as estruturas estratificadas. As cores que viu lhe deram um pulso de adrenalina, que logo procurou conter. Podia ser sua chance, podia ser nada.

— Areia azul? — Josefino perguntou de algum lugar atrás dela — O que deixa a areia azul?

— Vou precisar levar para o laboratório pra confirmar, mas com esse tom… eu chutaria que é cobalto… podemos ter encontrado um depósito.

— E isso é bom?

Se estivesse num ambiente universitário teria sido fácil responder. Nada na natureza era inerentemente bom ou ruim, era uma questão de acaso, de ter dado sorte ou azar dependendo da sua posição na ordem natural das coisas. Ali, com toda a tripulação segurando a respiração em expectativa, a resposta era mais complexa. Depósitos eram sempre interessantes, boas oportunidades de exploração, mas ela achava difícil que um adensamento de cobalto por si só fosse lhe dar o que precisava. Demandaria tempo, entender como, quando, onde e por que o suposto depósito estava ali. O que significava que para os fins da pergunta do imediato, era ruim.

— Já sei, vamos ter que lançar mais garrafas — Josefino disse quando percebeu sua demora em responder. — Podemos usar o guincho dessa vez? Esse monstrengo foi construído pra isso.

Anabela ouviu o suspiro contido na voz dele, e forçou um sorriso como um pedido de desculpas. Fez que sim com a cabeça antes de voltar para a amostra, fugindo de ter que encarar a decepção nos rostos da tripulação.

— Doutora?

— Sim, Josefino?

— Alguma chance dessas substâncias na areia serem explosivas?

Mais uma vez, todos prenderam a respiração. Era uma pergunta justa, dado o histórico de experimentos recentes, o que não evitou que ela se sentisse constrangida. Não havia uma pessoa a bordo que não tivesse sido chamuscada pelo menos uma vez no projeto abandonado na metade da travessia, e Anabela não se orgulhava disso. Palavras supostamente gentis de sua mãe voltaram de repente, fazendo seu estômago afundar.

— Vou colocar como prioridade testar o potencial incendiário das amostras. — Sua voz escapou um pouco mais dura do que considerava justo, talvez estivesse respondendo a Duquesa de Cedro de sua memória.

— Não que estejamos preocupados — Josefino comentou.

Anabela ergueu uma sobrancelha para ele, o que lhe rendeu um sorriso constrangido do imediato.

— Bom, não tão preocupados assim. O sistema de combate a incêndios do navio é muito bom.

— Certo, obrigada pela confiança.

Os uniformes azuis da frota Argo voltaram a se mexer com ordens despachadas por Josefino, enquanto ela buscava um fio mínimo de raciocínio que pudesse seguir sem se perder na listagem de seus fracassos mais recentes. Os últimos cinco meses vinham sendo assim, e ela estava mais do que consciente de que estava ficando sem tempo, de que não poderia manter aquelas pessoas ali para sempre, presas ao seu drama pessoal.

Os óculos escorreram pra frente com o suor, a deixa para lembrá-la que tinha que se concentrar. A amostra podia ser nada, mas também podia ser sua chance. A faixa grossa de areia azul que chamava mais atenção estava no meio, mas tinha cinco camadas de cores variadas, um testemunho de uma história geológica complicada na região. A ideia veio chegando aos poucos, pinçada com os grãos individuais que foi separando para analisar na lupa e testar com os ácidos, até perder a noção do tempo. A formação dos Mares Esquecidos seria um projeto ambicioso, mas talvez chamasse a atenção da Academia.

— Sinto que estou prestes a interromper o começo de uma ideia genial.

Anabela deu um pulo com o susto, derrubando a pinça e alguns grãos. Por alguns segundos pavorosos, ficou encarando a amostra para ver se tinha estragado a estrutura da coluna, até se dar conta de que Márcia estava rindo dela.

— E se eu estivesse com um ácido na mão?!

— Você nunca manuseia os ácidos sem luvas.

A capitã Márcia Margil sorriu, cruzando os braços. Embora os anos não tivessem deixado muitas marcas no rosto de pele preta escura, o moicano com alguns fios acinzentados entremeados no preto denunciavam sua idade suficiente para tê-la carregado no colo, e para não levar os dramas de Anabela a sério.

— Eu podia ter desmanchado as camadas de sedimento…

— Eu sinceramente não faço ideia do que aconteceu com aquela menina arrogante que andava pelos meus conveses dizendo que era a pessoa mais inteligente do mundo, mas eu estou com muitas saudades dela.

— Ela explodiu experimentos demais e foi forçada a encarar a própria falibilidade.

Márcia gargalhou, e apesar de ser o motivo da graça, Anabela se sentiu um pouco melhor. Algumas vezes era bom não ser levada a sério.

— Ainda bem que você decidiu seguir o rumo da ciência, garota, você seria uma capitã insuportável. A Argo mais dramática da história da navegação moderna.

— Os Argo não precisam de uma navegadora medíocre.

— Você é uma navegadora decente, mas você não quer ser só boa o suficiente em alguma coisa. Você quer ser uma cientista de excelência da Academia, então acho uma boa ideia você parar de olhar pro seu montinho de areia-

— É uma coluna de sedimentos estratificados.

— … sua pilha de areia como se ela fosse uma montanha que você não pode escalar. Você e Castro fizeram uma promessa, não fizeram?

A voz de Márcia tinha sido gentil, mas não deixou de cutucar a ferida mal cicatrizada que ela vinha fingindo que já estava curada. Aquela expedição também era por Gamão, de certa forma. A pinça tremeu, mas Anabela firmou a mão e continuou separando os grãos.

— Você não veio aqui só pra fazer esse discurso, veio?

— Não, vim pedir permissão para desviarmos um pouco da rota. O monitor de rádio captou alguns ruídos, não sabemos o que é, mas pode ter sido uma tentativa de pedido de socorro. Acho que seria bom expandir o perímetro e verificar.

Socorro no mar era sagrado até para quem não tinha fé, não havia questionamento.

— Claro. Por que você veio me perguntar?

— Não é porque você deixou de ser minha aluna em navegação que eu vou deixar de te ensinar sobre tomar decisões.

— Então foi um teste.

— Foi um lembrete que a vida não está na sua bandeja de sedimentos estáticos.

— Estratificados.

Márcia sorriu e piscou um olho.

Os sacos aéreos foram inflados, e logo o Curiosidade subiu. O ânimo da tripulação mudou tão logo a parte científica deu lugar à navegação e marinharia, a possibilidade de um resgate os deixou mais atentos, mais bem dispostos. Assistir a mudança fez Anabela se sentir um pouco pior. Aquela tripulação sob o comando de Márcia tinha apenas os mais experientes, alguns tinham feito a circunavegação com Gamão — a mais rápida da história — e com Castro — a maior de todas. Agora estavam obrigados a fazer a viagem mais demorada do mundo porque ela não conseguia uma descoberta científica que valesse a pena.

No ar, o Curiosidade era ainda mais rápido, os propulsores a vapor de carbotina sussurrando sob o vento como só o mais moderno navio-híbrido do Reino de Sorra era capaz. Ganharam altitude o suficiente para voar com os albatrozes e petréis. As aves atravessaram o convés como se o espaço fosse delas, grasnando de vez em quando, mas Anabela não teve tempo para observações ornitológicas. O apito do vigia soou, logo todos viram a fumaça esverdeada, e um segundo alarme sonoro colocou a tripulação em modo de combate. A voz de Márcia ressoou pelo fonoclama do navio, dando ordens que ela não conseguiu ouvir.

A visão a levou para um passado não tão distante, quando toda a Ilha de Cedro fora colocada em alerta. Estivera trabalhando na praia no dia, levantando a cabeça de vez em quando para observar o Petrel patrulhando no horizonte. A fumaça e o navio despencando para o mar não fizeram sentido quando ergueu os olhos por acaso, e desde então o mundo passara a ter menos lógica.

Não havia uma explicação razoável para Gamão não estar ali, enquanto o rastro daquele maldito brotava no meio de sua circum-navegação.

— Eu não acredito que essa escória fugiu pra cá!

Josefino brotou ao lado de Anabela, a arrastando para o presente puxando pelo braço na direção da cabine do passadiço.

— Pode me deixar, Josefino.

— Doutora, essa é a marca de um ataque de Nero!

— Sim, eu estou ciente — ela falou entredentes.

— Doutora, assim que verem a nossa bandeira vão nos atacar!

Ela puxou o braço de volta, enfiou tudo lá dentro daquela caixa bem fechada que usava pra seguir em frente sem ter que tropeçar na bagunça dos próprios sentimentos. Talvez não fosse feita do mesmo material de lendas que o resto da família, mas se recusava a se acovardar, a ceder aquele pedacinho de espaço para o luto.

— Se eles fugiram meio mundo pra cá, assim que verem a nossa bandeira vão correr. Castro não vem limpando os mares sorrenses pra eu me esconder no passadiço. — Sentiu uma pontada de orgulho da firmeza da própria voz, já puxando a luneta.

A fumaça vinha de um ponto na água, escondendo partes do cenário que todos sabiam que iriam encontrar. Pedaços de sacos aéreos e velas boiavam em meio a partes do casco, barris com as letras CCIE subiam à superfície.

— Era um navio mercante das Ilhas Esmeraldinas — ela disse —, tem a marca da Companhia de Comércio.

— Não é do feitio de Nero deixar a carga para trás...

— Talvez tenha nos avistado e fugido.

— Não acredito nisso também. Nós é que devíamos virar e partir, o navio está pesado e nossa capacidade de manobra reduzida.

Fazia sentido, ela sabia disso, mas seu estômago se revirou diante da ideia de fugir por causa daquela fumaça. Anabela podia não ser o orgulho da navegação da família, mas sabia brigar sobre um convés se fosse necessário, tinha dentro de si um pedaço duro de alguma coisa disforme surgida no dia em que perdera Gamão.

Um novo apito precedeu o aviso do vigia.

— Sobreviventes!

— Lancem os botes! — Anabela gritou antes que Márcia pudesse dar qualquer ordem pelo fonoclama — E chamem o Dr. Mousinho!

— Doutora, eu não acho que—

— Tenente Josefino. O senhor navegou com Gamão, não navegou?

— Sim, senhora.

— O que ele teria feito?

— O Capitão Argo… teria efetuado o resgate.

— Então não sei por que o senhor acha que eu não faria o mesmo. Fique tranquilo que se Nero estiver por perto a minha capacidade de explodir coisas já foi bastante comprovada.

O navio manobrou e se colocou por cima dos destroços. Alguns poucos homens e mulheres se agarravam a qualquer coisa que flutuasse, olhavam para cima e sacudiam os braços. Um homem nadava até o grupo trazendo um outro que parecia estar ferido, ele fez sinal para que esperassem e mergulhou, desaparecendo até voltar com mais uma pessoa ferida.

Anabela foi receber os resgatados enquanto eram colocados para dentro de bordo, com Josefino acompanhando de perto com a mão no cabo da arma na cintura como se o grupo pudesse fazer alguma coisa além de molha-la.

O homem que nadara pelos companheiros feridos parecia ser o líder, os demais se amontoaram ao redor dele como se estivessem sendo cercados. Ele era largo e forte, com uma expressão quase tão mal encarada quanto Josefino, apesar de ser bem mais jovem e muito mais pálido. As roupas pareciam uma versão surrada do uniforme dos mercantes da CCIE, contrastando com o cabelo castanho mal cuidado e mal cortado.

— Olá. Bem-vindos a bordo do Curiosidade. Uma sorte estarmos passando por aqui, não há outras embarcações na região que pudessem resgatá-los.

— Sorte — o líder disse, como se ainda estivesse em dúvida. Ele observou o convés, encarou a tripulação. — Estamos presos?

— Vocês fizeram alguma coisa para serem presos? — Josefino disparou.

Anabela suspirou, erguendo uma mão para silenciar o imediato.

— Não estamos atrás de capturar prisioneiros, estamos apenas viajando. Avistamos um naufrágio de longe e fomos prestar socorros. O senhor...

— Hermes.

— O senhor Hermes prefere que o baixemos de volta? Estão aguardando alguém, talvez?

— Não... não. Me desculpe os modos grosseiros. — Hermes olhou para seus companheiros, fazendo um sinal com a mão que os fez relaxar aos poucos. — Estávamos transportando nossa mercadoria quando fomos atacados. Nós lutamos, mas parte da minha tripulação se revoltou e se juntou aos piratas. Eles levaram tudo que conseguiram e tocaram fogo em tudo. Estamos todos apenas cansados e desconfiados de nossa própria sombra, me desculpe.

— Uma tripulação revoltosa que preferiu incendiar o navio ao invés de tomá-lo para si? — A voz de Márcia os alcançou.

A aparição da capitã os resgatados agitados, uma mulher chegou a apontar para o moicano, tradicional da família Margil.

— Que navio é esse?

Era um dia quente demais para ter calafrios, mas Anabela não conseguiu evitar. Não gostou da forma que ele olhou pelo convés.

— Esse é o Curiosidade. Eu sou a capitã Márcia Margil, essa é Doutora Anabela Argo, e o senhor Hermes sem sobrenome acabou de contar uma história deveras estranha.

Os resgatados arregalaram os olhos, alguns sussurraram entre si. Anabela sabia que Márcia tinha feito de propósito, mas não achou que as palavras surtiram o efeito desejado. Elas vinham encontrando reações de espanto durante toda a viagem, já estavam acostumadas a serem encaradas nos portos. Mas o brilho no olhar de Hermes não parecia ser de admiração.

— Argo... da Ilha de Cedro, em Sorra? Nossa... nunca pensei que encontraria uma dupla Argo e Margil desse lado dos Mares Esquecidos! É uma grande honra! — Hermes se adiantou e fez uma mesura exagerada, seu rosto parecendo mais amigável. Ou tentando parecer mais amigável. — Não sabia que Sorra estava em expansão territorial.

— Não está. Estamos apenas de passagem — Márcia respondeu em tom seco.

— Bem, é uma pena. Essas águas estão vendo um aumento cada vez maior da pirataria, e ouvimos falar que o Capitão Castro Argo tem feito um ótimo trabalho nesse sentido… Mas, para onde estão indo então, se me permite perguntar?

— Rumo a Porto Aveiro. Somos aguardados pelas autoridades locais — Márcia disse, encarando-o.

Não eram aguardados por ninguém, mas longe de Anabela de contradizer a capitã naquele momento. Não achou que tampouco os náufragos tivessem acreditado.

— Excelente! Se puderem nos dar uma carona, em Porto Aveiro poderemos fazer nossa denúncia às autoridades portuárias locais. O Príncipe de Aveiro anda extremamente desleixado quanto às suas fronteiras marítimas, se vocês querem saber. Talvez encontrar um navio sorrense comandado por uma Margil lhe coloque um pouco de senso na cabeça.

Houve alguns instantes de silêncio. A postura de Hermes e seus companheiros havia mudado de desconfiada e tensa para relaxada e com expectativa, enquanto a tripulação do Curiosidade ficara mais alerta.

Ao redor deles, a fumaça de Nero começava a se dissipar, mas o cheiro ainda era forte o suficiente para martelar memórias doloridas, para trazer de volta ódio e a determinação por promessas a serem cumpridas. Por alguns segundos, Anabela se sentiu fortalecida, uma Argo em seu navio.

E não era como se pudesse jogá-los de volta ao mar, ou como se náufragos esfarrapados pudessem subjugar um navio da frota Argo.

— Bem, logo chegaremos a Porto Aveiro. Por favor, venham se limpar. Temos água e comida, um médico cuidará de seus feridos — Anabela disse, tentando espantar a sensação estranha que havia se instalado.

— Muito obrigado, senhorita Argo. — Hermes sorriu, seu sorriso não alcançando os olhos.

— Doutora Argo. — Josefino o corrigiu.

— Doutora Argo... — Hermes repetiu, o sorriso ficando um pouco maior. — Realmente, muita sorte a nossa vocês estarem passando.

E nas próximas edições...

E por hoje é só! No próximo capítulo, a previsão do tempo para os Mares Esquecidos não é muito boa. Grandes probabilidades de latidos e xingamentos no ar e na água, com chances de pancadas de verdade.

E na semana que vem... duuuunnnn duun…duuuunnnn duun… duuunnnnnnnn dun dun dun dun dun dun dun dun dun dun dunnnnnnnnnnn dunnnn

Nossa, é quase como se um grande predador estivesse prestes a atacar!

Fiquem de olho no mar até lá.