- Luas e Marés
- Posts
- 20.000 Histórias Submarinas - Areia & Pólvora #1
20.000 Histórias Submarinas - Areia & Pólvora #1
Hoje, como vinha falando no twitter essa semana, vai o primeiro capítulo dessa minha história de piratas que fiz pra me divertir. Espero que ela possa divertir você também!
Na próxima semana, voltaremos a newsletter temática, e o tema que eu vou abordar é uma das minhas obsessões mais recentes e que faz parte do romance que estou escrevendo. Eu falo qual é no final dessa mesma news, por enquanto fique com o Capitão Delfim Lucas ;)
Capítulo 1 - Uma pérola doce
Ladrão rosnou com desconfiança e, como sempre, Delfim deu ouvidos ao cachorro, que era mais sensato do que muita gente.
Ele puxou o rapaz de jaleco pela gola, o fazendo derrubar todos os instrumentos e vidrinhos. O cheiro dos químicos desperdiçados preencheu o quarto, piorando o humor tanto do homem quanto do cão.
— Se você é um inútil, vai ser inútil longe daqui — falou entredentes antes de soltá-lo.
O esforço fez o mundo girar, se somando ao jogo do Balaena com as ondas. Com a visão turva, viu o rapaz sair correndo da cabine. O fato de que conseguia inspirar medo mesmo ferido e acamado era um consolo amargo no momento, mas naquele estado era tudo que podia fazer. Bradar e fazer fracotes fugirem, muito impressionante.
Ladrão latiu atrás do médico, manifestando os sentimentos por seu humano, antes de saltar para a cama e se deitar sobre o peito dele. Estava quente demais para ser abraçado por uma montoeira de pelos sujos, mas longe dele espantar o melhor amigo quando era a única companhia que não o pressionaria por nada além de uns afagos.
Delfim acariciou o pelo cinzento cheio de nós, fechando os olhos para ignorar a tontura. Ficaram os dois ali, acompanhando o sobe e desce do navio. Ele não fazia ideia de como eram os pensamentos de um cachorro, mas esperava que os de Ladrão pelo menos fossem mais tranquilos que os dele.
Imagens de baleias-noturnas rondando uma presa antes do ataque dançavam em sua mente. No delírio, ele era a foca prestes a ser estraçalhada e sabia disso, o que na sua opinião era uma grande mudança na ordem natural das coisas. O pai tinha criado os filhos para serem como a baleia, tinha lhe dado o nome do bicho mais esperto dos Mares Esquecidos, sucumbir a ferimentos ridículos não estava nos planos.
Os pensamentos desconexos foram interrompidos quando a cabine foi invadida. Um suspiro irritado o alcançou logo antes da porta ser batida com força, sem receio de causar qualquer incômodo. Isso queria dizer que só podia ser uma pessoa.
— Nós sequestramos um médico só pra cuidar do seu ferimento e você me apronta uma dessas? Gritar com o coitado não vai fazer o ferimento se fechar, seu cabeçudo. Você também precisa deixar alguém entrar aqui e limpar, o sangue seco nos lençóis não ajuda na recuperação.
— Fique a vontade então pra fazer a faxina, já que veio me perturbar.
A resposta que recebeu de Loani foi um soco na perna. Ladrão, o traidor, sequer piscou para ela, ainda confortável sobre seu peito.
— Vai, deixa de frescura. Se está bem para assustar doutores, está bem para se levantar.
Movidos tanto pela frustração quanto pelas mãos enxotando cachorro e homem da cama, os dois se levantaram. Após uma onda de tontura passar, caminhou até a mesa e se deixou cair na cadeira.
Loani sorriu malignamente como só irmãs mais velhas eram capazes de fazer. Delfim franziu a testa para ela, mas era inútil, nunca tinha sido capaz de intimidar aquela criatura.
— Capitão Delfim Lucas, o terror dos Mares Esquecidos, evitando tratamento médico. Quem diria... Mamãe ia morrer de vergonha se te visse agora.
— Eu não evitaria se essas porcarias funcionassem. Só o que todo mundo faz é limpar a ferida e torcer para que seja suficiente. Se mamãe estivesse aqui ela talvez fizesse alguma coisa realmente eficaz.
— Porque limpar é só o que podemos fazer, nosso estoque de remédios esgotou e você acabou de enxotar o médico do último saque. Ou achamos um navio de um hipocondríaco para roubar, ou vamos até uma cidade portuária.
— Para roubar.
— Ou comprar, o que seja. Nós também podemos ir para casa e—
— Não. Não vamos mexer no estoque da ilha, não sabemos quando pode ser necessário.
A irmã suspirou, molhando um pano com água e prosseguindo para limpar o sangue seco do ferimento. Era um corte no braço, comprido, mas não profundo. Quando aconteceu ninguém achou que fosse deixar consequências mais sérias do que arruinar uma das tatuagens, e o braço dele era coberto por elas, não seria a primeira e nem a última que ficaria com marcas de batalha. Dias depois, lá estava ele, se contorcendo de dor quando ninguém estava olhando.
A ferida agora era uma mistura de sangue seco e emplasto de remédios deixado pelo médico anterior que não tinha sido enxotado. As veias ao redor começavam a ficar realçadas com um tom roxo visível mesmo sob a tinta escura do desenho de uma baleia-noturna. Loani tirou tudo, revelando a carne viva que se recusava a cicatrizar. Delfim retorceu os lábios para a nojeira, estava cada vez mais sem paciência com a própria fraqueza.
— Vamos só cauterizar isso de uma vez — falou, cansado de procurar alternativas brandas. — Manda Dudalina trazer um massarico e acabamos logo com esse sofrimento.
— Não! Pode ser pior. Não podemos ter certeza que queimar o ferimento vai matar tudo de ruim que está aí.
— A alternativa é deixar a coisa ruim me matar, então.
— Não, cabeçudo!
Sem aviso prévio, Loani virou meia garrafa de cachaça sobre o machucado, lhe dando tempo apenas de se agarrar à cadeira e proferir palavrões que deixariam até piratas mais velhos encabulados. Ladrão cheirou e lambeu um pouco da bebida que caiu no chão, um resmungo do fundo da garganta deixando claro que não compactuava com aquele desperdício.
— Em Porto Aveiro vamos com certeza encontrar alguma coisa que sirva. Aproveitamos e reabastecemos o navio — ela falou, como se os xingamentos não a tivessem interrompido.
— E como você espera que eu ande por aí assaltando navios com o braço nesse estado?
— Bom...
A ardência na ferida havia clareado a mente dele o suficiente para reparar em sua expressão. Só dois anos os separavam em idade, eram tão próximos quanto eram parecidos. Os cabelos loiros dela eram claros, os dele tinham um tom de areia, que ficava mais escuro pela cera que usava para selar os fios grossos em tranças. Os traços do rosto tinham muitas semelhanças, mas o de Delfim tinha uma cicatriz na sobrancelha direita e o nariz mil vezes deslocado e colocado no lugar. Loani tinha daqueles sorrisos que conquistavam multidões, enquanto os lábios dele ficavam semi-permanentes numa linha sarcástica por trás do cavanhaque.
Olhando naquele espelho distorcido, Delfim leu a culpa escrita na forma com que ela mordeu as próprias bochehas, e instintivamente se preparou para o pior. Um Lucas se sentindo culpado, era um Lucas que tinha acabado de fazer coisas do pior tipo.
Hesitando, com uma olhada para a porta da cabine, Loani retirou um frasco transparente do bolso. Várias bolinhas brancas sacolejaram quando ela o colocou sobre a mesa.
— Não. — A palavra saltou dele curta e abrupta. Não podia acreditar no que ela estava sugerindo.
— Sim. — Em teimosia, também eram iguais.
Delfim encarou o vidro cheio de Pérolas de Cassis, o analgésico dos desesperados, ilegal em quase todas as nações do mundo. Longe dele condenar os vícios dos outros, mas preferia manter a mente lúcida, e sabia que Loani também não era de consumir aquele tipo de substância.
— Onde você conseguiu isso?
— Isso é fruto de um saque que fizemos muito tempo atrás. Vinha guardando para emergências.
Conhecer bem a irmã significava saber identificar mentiras, mas ele deixou passar porque duvidava que receberia uma resposta direta se questionasse a origem verdadeira daquilo. Tinha uma suspeita, mas também não era hora de retomar uma briga antiga.
— Meu braço latejando não é uma emergência.
— O capitão do Balaena fora de combate quando todos os navios da área estão sendo acossados dia e noite por aquele insano é uma emergência, sim!
Ele abriu a boca para retrucar, mas uma série de batidas apressadas na porta anunciaram a entrada da contramestre do navio. Loani correu para esconder o frasco, e os dois trocaram um olhar que dizia que aquela conversa ainda não estava terminada.
Dudalina tinha um rosto jovem de pele preta, emoldurado pelos cachos crespos. Ela fez festa para Ladrão assim que entrou, sendo recompensada com lambidas na bochecha, mas tão logo se pôs de pé novamente sua expressão se fechou. Os lábios grossos se apertaram numa linha fina, e as sobrancelhas se contorceram num aviso de que as coisas não estavam boas.
— Bom, vamos saber então como nossa situação vai de mal a pior. Diga. — Delfim massageou o braço dolorido, tentando espantar visões de focas e baleias. Não era o momento de ficar louco.
— Os sacos aéreos estão danificados, o combustível está entrando na reserva. Não vamos conseguir voar tão cedo. — Dudalina cruzou os braços. — Os barris de frutas começaram a mofar, a carne seca acabou, munição em baixa... preciso continuar?
Delfim fechou os olhos. Não era como se já não tivessem passado por aquilo antes, nem sempre os tempos eram bons para quem vivia de predar os ricos, mas nunca tivera um inimigo maior do que as dificuldades da pirataria.
— Hermes mandou alguma notícia? — Loani perguntou.
— Ah, sim, nosso rádio de longo alcance também está quebrado, foi atingido no último ataque. Mas tenho certeza que o imediato está se virando bem na missão dele.
Ou, era o que Delfim esperava. Precisava. Ansiava. O imediato era um amigo de infância, e já vinha querendo comandar o próprio navio, mas a verdade era que o momento que viviam exigia a separação. Eles precisavam de uma frota, de golfinhos de briga dispostos a manter o território, e se a união voluntária entre os piratas dos Mares Esquecidos não andava muito em voga, teriam que montar uma eles mesmos.
— Mas como Hermes vai nos encontrar sem termos comunicação? Dudalina, você tem que fazer do rádio a sua prioridade.
— Não. — Delfim interrompeu a irmã — A prioridade nesse momento é flutuar, voar, navegar e combater. Fique tranquila que seu amante é crescido e sabe se virar, é só questão de tempo até ele achar a nossa localização ou nós o acharmos.
— Ou de Nero esbarrar com ele — Loani resmungou, retorcendo o pano nas mãos.
Delfim encarou Dudalina, que chegou a abrir a boca, mas ao invés de falar mordeu os lábios; eles trocaram um olhar concordando. Não adiantava ter um rádio funcionando se não tivessem condições de responder a possíveis chamados. Hermes, se estivesse ali, com certeza seria da mesma opinião.
— Vou trabalhar nos reparos com os recursos que temos — Dudalina disse — mas precisamos de suprimentos. Até onde eu sei, nenhum navio amigo está na região. Precisamos de um saque pra ontem.
— Da última vez que encontramos com o Caveira, Gaguinho disse que um navio sorrense estava na região...
— Ninguém viu ainda, mas se é de Sorra, certeza de ser rico. — Dudalina deu de ombros.
— E bem guarnecido. — Acrescentou Loani. — Se esse navio ainda estiver por aí, é porque não foi atacado. Ninguém atacaria um navio sorrense sem um bom motivo.
— Eu diria que nós temos um, ou vários, todos relacionados a sobreviver. De qualquer jeito, não podemos navegar a esmo pela água igual a um pato cansado. O que precisamos pra voar?
— Eu adoro seu otimismo com a vida, chefe! — Dudalina sorriu — Precisamos de um navio novo ou de um milagre, e até onde eu sei ninguém aqui é bom de reza.
Não era mesmo. Delfim não tinha nada contra os santos, ou contra as maldições que eles colocavam nas pessoas, mas tinha certeza que nenhum poder superior perderia seu tempo com um ladrão rebelde como ele. Além disso, preferia não ter dívidas que não pudesse pagar em igual medida, devolver o favor divino normalmente requeria muito mais esforço do que estava disposto a fazer.
Mas um navio novo também estava fora de cogitação.
— A todo pano para Porto Aveiro, se no caminho encontrarmos alguma coisa que nos sirva de presa, interceptar. — Ele deu a ordem, se sentindo menos incapaz por ter um rumo definido. E então pensou melhor sobre os santos, porque não estava em condições de fazer mais inimigos. — Mas quem quiser rezar pelo milagre, pode.
A gargalhada da contramestre enquanto se retirava o fez se sentir um pouco melhor porque conhecendo Dudalina, sabia que ela daria um jeito de superar os santos. Mal a porta havia se fechado, Loani já estava com o frasco de pérolas de Cassis estendido.
— Loani...
— Você ouviu Dudalina, nossa situação é péssima e estamos sem imediato. Uma por semana, deve bastar. Use o casaco e mantenha o corte escondido enquanto isso. — Sua voz estava dura com uma emoção que ele não conseguiu identificar. — Se você tomar cuidado, não vai se viciar. A fama é bem pior do que os efeitos reais.
Mil perguntas atravessaram a cabeça de Delfim, a maior delas girando em torno de como exatamente a irmã de repente sabia tanto sobre Pérolas de Cassis. Aquilo parecia uma ideia horrível; também parecia que era uma de poucas escolhas. Na pior das hipóteses, daria de cara com Nero sob o efeito da droga e seria um oponente bem difícil de matar.
O gosto era tão doce quanto a esperança de que ficaria tudo bem. O sabor lembrava a água de coco que seu pai lhe dera tantos anos antes quando chegaram no que seria uma nova casa, uma nova vida. Uma promessa maravilhosa, mas que precisava ser mantida com sangue. Sentindo os efeitos quase que imediatos, Delfim se apegou no ódio para não se deixar levar pela ilusão de força que chegava enquanto a dor ia embora. Ele era a baleia, não a foca.
Não haveria reis nos Mares Esquecidos enquanto o Balaena navegasse.
Então... nas próximas news:
No próximo capítulo, encontraremos Anabela e... um náufrago?Enquanto ele não vem, pode me falar se gostou desse começo de história? Se não gostou, seja gentil, Ladrão está bem aqui do meu lado. Brincadeira. Ou não.
Se você perdeu algumas coisas legais que eu falei sobre a história, pode deixar que eu vou continuar falando sobre ela no Twitter! Em breve, algumas curiosidades sobre a minha escolha de nomes.
Além de ficar arquivado na página da news, todos os capítulos também estarão no meu blog, pra você ler e reler sempre que quiser, indicar para amigos amantes de navios voadores.
A próxima newsletter vai ser temática sobre... faróis! Tudo começou com uma ida na praia e... na próxima edição eu falo mais.