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20.000 Histórias Submarinas - Areia e Pólvora #9

 Alguém aí com saudade de 20.000 Histórias Submarinas? Depois de um breve descanso, volto a trazer para sua caixa de entrada os capítulos de Areia e Pólvora e tudo que você nem sabia que existia para saber sobre os oceanos.

Espero que, no meio do maremoto que deve ser 2022, possamos encontrar nosso caminho de volta para a praia. Citando aqui a grande conhecedora dos mares, Dory, “continuem a nadar!”. Mas por enquanto fiquem com o capítulo 9 da sua história de piratas favorita.

Atenção! Uma tempestade de erros de digitação pode ocorrer a qualquer momento, por favor mantenha mãos e pés dentro da embarcação e use o colete salva-vidas.

Nos capítulos anteriores…

Depois de ter sido salva por Delfim, Anabela foi mantida presa para ser usada como moeda de troca para resgatar Loani - irmã de Delfim - das mãos de Nero. Buscando por uma solução, ela descobre que Delfim foi envenenado, e por sorte, ela sabe como fazer o antídoto! Foi uma negociação difícil, mas agora, precisam ir atrás do lugar onde pode encontrar as substâncias necessárias, mas isso pode não ser tão fácil…

9 - Piratas supersticiosos

Sentado em sua mesa, ele estava mais acuado do que um baiacu contra as pedras. Maldita fosse Anabela Argo e maldito fosse Ladrão, o cachorro traidor ganhando carinho na cabeça como se Delfim não estivesse morrendo envenenado tão aos poucos que estava tendo dificuldade de convencer o imediato e a contramestre que precisavam mudar de rota.

— Nós não vamos para os Atóis, você ficou louco? — Hermes bateu as mãos na mesa. — Além de ser o lugar mais amaldiçoado dos Mares Esquecidos, ela com certeza está mentindo!

— A tripulação não vai gostar, chefe…

Dudalina mantinha um olho nele, e outro em Anabela. Sentada na rede onde dormira, ela fingia não prestar atenção na conversa enquanto tentava desfazer os nós impossíveis no pelo de Ladrão. Os óculos tinham escorrido para a ponta do nariz, quase caindo, fazendo com que Delfim quisesse colocá-los no lugar, péssima distração para o momento de discussão.

— Não é possível que ela tenha mesmo te convencido disso! Você está em perfeito estado de saúde! — Hermes continuou, a voz cada vez mais alta. — E mesmo que a ferida esteja te incomodando, é só questão de tempo até cicatrizar. Se for o caso, te arranjamos umas pérolas de Cassis pra segurar as pontas até resgatarmos Loani.

Nesse momento tanto Dudalina quanto Anabela se viraram para Delfim; rostos diferentes, expressões iguais de aviso. Ele não precisava que lhe dissessem que era uma má ideia, apesar de já ter feito escolhas ruins antes.

— Além do mais… quem garante que ela pode mesmo fazer um antídoto depois de catar umas conchinhas na praia? É mais fácil ela te matar com isso.

A garota respirou fundo e apertou os lábios — não que ele estivesse prestando atenção na boca dela — antes de se levantar. Ladrão olhou indignado para o imediato, a causa da interrupção de seu tratamento de beleza.

— Se Delfim não tomar o antídoto, ele vai definhar de dor e fraqueza até Nero estar perto suficiente pra dar cabo dele. Apesar de nesse momento eu ter bons motivos para querer matar todos vocês, os senhores ainda são a alternativa menos pior. Para fazer o antídoto, eu preciso extrair substâncias que nessa parte do mundo só são encontradas nas criaturas marinhas que habitam os Atóis Silenciosos. Se não me levarem lá, o capitão do Balaena vai morrer. — Anabela apertou os olhos, dando um passo na direção de Hermes. — É isso que o imediato quer?

— Eu quero resgatar a mulher que eu amo!

— Não vai conseguir fazer isso com seu capitão debilitado.

— Eu não preciso de um cap— Hermes parou de falar de repente, ficando imóvel, evitando os olhares de todos.

Não importava que tivesse se interrompido, Delfim ouviu o resto do frase. Dudalina mordeu a bochecha, mas não disse nada, apenas lhe encarou de soslaio. A dúvida de um colega de tripulação era tão corrosiva quanto a maresia, e depois de instalada dificilmente podia se livrar dela. Ninguém navegava com quem não se podia confiar para retirar um amigo da água.

— Eu não preciso de uma cria de duque estrangeiro opinando nessa situação — Hermes falou depois de um tempo, mais baixo, ainda não olhando para cima.

— Eu também não preciso de um imediato explosivo que fala sem pensar. Nós vamos para os Atóis Silencioso, e quem não quiser pode se sentir a vontade para deixar o navio. — Delfim se pôs de pé, encarando imediato e contramestre para deixar claro que não havia espaço para discussão. — Dudalina, consegue lidar com os medrosos?

Ela suspirou.

— Deixa comigo, chefe. Então, Atóis, aí vamos nós… Nunca pensei que veria o Balaena numa expedição científica, quem diria. Vamos logo lidar com isso, então.

A contramestre puxou Hermes pelo braço, que se deixou levar sem mais palavras. Ao cruzar a porta, contudo, balançou a cabeça com a boca contorcida, encarando Delfim com uma emoção que leu como desprezo.

— Você tem que tomar cuidado com esse seu imediato — disse Anabela depois que ficaram sozinhos de novo.

— E esse conselho é de graça? Não vai querer negociar nada em troca? — resmungou massageando o braço dolorido.

— Obviedades não são boa mercadoria. As coisas que só eu sei, e vocês não, são muito mais valiosas.

— E você sabe de tudo.

Delfim revirou os olhos, caindo sentado de novo. Braço dolorido, desconfiança do imediato, Loani raptada, cientista bonita. Eram problemas demais para lidar, e a presença de Anabela conseguia tornar todos eles pior.

— Tem uma coisa que eu não sei…

Suspirando, ele ergueu uma sobrancelha para ela, esperando a continuação. Anabela tinha o cenho franzido — os óculos ainda fora do lugar, qual era o problema dela? — encarando a porta fechada.

— Por que alguém teria medo de ir para os Atóis?

— Você não sabe mesmo?

Foi a vez dela esperar, aos poucos a curiosidade surgindo no olhar. A expressão fechada da noite passada tinha dado lugar à contemplação pensativa de manhã, e no momento Anabela o observava sem medo. Tanto um alívio quanto um suplício, porque a vida dela ainda estava em risco. Antídoto ou não, Delfim ainda a levaria para Nero depois.

— Por causa da maldição.

— Oi? — ela perguntou com um engasgo de riso, dessa vez mordendo a boca como que para evitar rir.

Consciente do quão tolo aquilo pareceria para uma cientista, Delfim começou a ajeitar as cartas náuticas e os desenhos em sua mesa apenas para não precisar ver o deboche no rosto dela.

— De acordo com a lenda, Santa Ahaia prendeu no fundo dos Atóis os espíritos daqueles traíram os Santos Exilados. Ali os mortos dormem, e se são acordados, capturam as almas de quem os despertou.

Por alguns segundos, o barulho dos papeis preencheu a cabine. Desconfiado, ele a espiou pelo canto do olho. Anabela ainda mordia a boca. Bem, ele poderia morder aqueles lábios por ela, se fazia tanta questão.

— Não vai rir?

Ela sacudiu a cabeça, apesar de um sorriso começar a despontar contra a armação. Talvez aquela fosse sua punição, a achar cada vez mais bonita sabendo que seria o responsável por sua morte.

— Você quer rir.

Anabela inspirou e suspirou.

— Não vou rir. Nem vou fazer comentários sobre superstições bobas.

— Muito nobre da sua parte.

Assim que ela voltou a se sentar na rede, Ladrão apoiou a cabeça em seu colo de novo, a língua para fora e as orelhas relaxadas. Delfim não se lembrava de jamais ter invejado o próprio cachorro, mas parecia haver uma primeira vez pra tudo e ficar ali observando a cena não contribuiria em nada para a própria sanidade. Seria um dia e meio de viagem até os Atóis, se continuasse a ser atormentado daquela forma, talvez ele precisasse se jogar no meio dos mortos para não fazer uma enorme besteira de consequências catastróficas.

— Eu vou lá em cima, ajudar a elevar a moral da tropa.

— Contra os mortos dorminhocos.

Foi a vez dele lutar contra um sorriso. Com certeza sorrir para a mulher que se estava levando para morrer devia contar como pecado imperdoável na lista dos santos, e ele não precisava piorar a própria situação com o divino quando estava prestes a explorar um lugar amaldiçoado. Ter aquele tipo de pensamento enquanto a própria irmã estava em perigo era ainda pior.

— Ei, você, traidor. Vem comigo?

Ladrão balançou o rabo para ele, mas não se moveu. A visão de Anabela escondendo mais um sorriso foi demais, e Delfim se apressou em sair da cabine. Assim que fechou a porta, ouviu a gargalhada. Um som limpo, que se infiltrou pelos poros da pele como as ondas cobrindo a areia da praia, e o acompanhou pelo resto do dia junto da culpa.

*

Dormir uma segunda noite na mesma cabine que ela tinha se mostrado uma tarefa impossível, com o cheiro de Anabela viajando pelo espaço fechado a cada balançar do navio. Cada vez que pensava em se virar pra dar uma espiada em como estaria na rede, o pensamento incômodo de Loani indignada por ele estar pensando em mulher enquanto ela era prisioneira o cutucava quase como um beliscão. Realmente, ele era o pior dos piores, principalmente pelo que estava disposto a fazer com a cientista depois. Foi assim que viu o sol nascer do alto do mastro principal, desenhando uma garota com óculos de aro redondo e seu cachorro, já que não sabia bem mais com quem Ladrão estava naquela história.

A tripulação se movimentava no maior silêncio possível. De cima, viu os marinheiros que costumavam lavar o convés cantando trocarem olhares preocupados quando um balde caía. O vigia no mastro de través segurava o apito com as duas mãos, o olhar fixo no leste. A cada estalar da madeira, alguém se sobressaltava. Lhe comovia ver que estavam dispostos a seguir em frente apesar do medo, mas Delfim sabia que uma forma ou de outra aquela aventura iria lhe custar, precisaria compensar a tripulação de alguma forma depois. Uma parada em Porto Baleeiro ou um dia de licor liberado.

Quando as formas circulares apareceram no horizonte, viu Dudalina trazer Anabela pelos pulsos amarrados. As duas pararam perto do timão, apontando para a carta náutica enquanto conversavam. Quem passava por elas lhes lançava olhares horrorizados por estarem falando em voz alta, apesar de alguns relaxarem ao verem a contramestre se comportando normalmente.

Ladrão as deixou e foi farejar a base do mastro onde ele estava. O ingrato, pelo menos, balançou o rabo. E latiu com a língua pra fora.

O som foi carregado pelo vento, reverberou junto da madeira e das velas, congelando a tripulação. Até Dudalina parou, olhou preocupada para o horizonte. Delfim não acreditava com a força da fé nas lendas, mas também preferia não dar margem pro azar, então de sua posição avantajada, observou os Atóis depois de trocar um olhar com o vigia.

Eram três enormes círculos de areia, o mar no centro deles de um azul quase roxo de tão profundo. Na parte de fora, alguns recifes de coral conectavam as partes de areia em padrões aleatórios. Não havia um albatroz que fosse, um golfinho ou baleia-anã na região. Até o mar parecia se acalmar em expectativa pelo que aconteceria.

No caso, nada.

Por um bom tempo ninguém se moveu, apenas encararam o horizonte, esperando. E nada. Aos poucos, um suspiro de alívio coletivo percorreu o convés. Delfim revirou os olhos, e desceu, fazendo um carinho meio puxada de orelha em Ladrão.

— Bom dia, chefe. Daqui a pouco estaremos no ponto máximo de aproximação pra descer um bote, a área dos Atóis em si é muito rasa pro nosso calado. Tive que pegar também algumas máscaras de mergulho que saqueamos do Curiosidade.

Ele assentiu em silêncio, evitando olhar para Anabela.

— Só vamos precisar decidir quem vai com ela.

— Não me diga que a doutora madame não dá conta de remar um pouco. — A voz de Hermes veio num sussurro. O imediato, assim como muitos outros, estava andando descalço para evitar o barulho de botas no convés.

— Posso remar o dia inteiro, e posso fazer a coleta toda sozinha também, mas vai demorar mais se for assim. Vocês querem passar o dia inteiro na beira do local de descanso dos mortos amaldiçoados?

Delfim encarava a carta náutica, mas ouviu o sorriso nas palavras sarcásticas. Quase levantou a cabeça para vê-la sob o sol da manhã, para mergulhar um pouco mais fundo naquela agonia de estar fascinado pela prisioneira que estava negociando uma cura em troca de uma chance.

— De forma alguma você vai sozinha, não duvido que esse seja um plano seu para escapar — Hermes sussurrou.

— E quem vai me ajudar a fugir? Os mortos? — Anabela devolveu com a voz em tom normal. — Ou acha que eu tenho algum poder mágico cedido pelos santos?

— Não me surpreenderia se você fosse um demônio enviado para nos testar.

A resposta dela foi uma gargalhada. Uma nova onda de pavor percorreu o convés, porém dessa vez Delfim ergueu o rosto para olhar para ela. Vê-la rindo, os óculos finalmente no lugar, era muito mais impactante do que ouvi-la por trás da porta.

— Eu vou com ela.

Hermes e Dudalina arregalaram os olhos. Anabela parou de rir, mas Delfim não entendeu o que expressão dela queria dizer, parecia uma máscara de neutralidade.

— Não, chefe, não acho uma boa…

— Até você, Duda? — perguntou com frustração. — Você não é a cabeça racional a bordo?

— Sim, mas a tripulação precisa de você aqui. E tem o problema do seu braço.

— Também precisa de você aqui, não acho que Hermes seja uma boa opção e Ladrão não rema. Ninguém mais teria coragem, então… vou eu. Além disso, eu sou o mais interessado na missão, não sou?

Não houve mais discussão, meia hora depois estavam os três num bote. Delfim e Anabela remando um de frente pro outro, Ladrão sentado entre os dois balançando o rabo. Se no Balaena estivera tenso pela iminência de uma possível maldição, no bote o problema era estar sozinho com ela sem nenhum observador julgador. O braço doía com os movimentos repetitivos, e foi nisso que se apegou para não se deixar levar.

A verdade era que não tinha levado a sério a afirmação sobre remar o dia inteiro, mas ela não dava sinais de que o esforço a incomodava. Com a cabeça o tempo todo inclinada para fora, Anabela observava o fundo cristalino com uma curiosidade ávida. Peixes de cores vivas e de tempos em tempos um tubarão saíam do caminho do bote, liberando a vista para corais, ouriços e caranguejos.

— É bonito aqui — ele disse.

— Bonito? — Anabela riu de novo, dessa vez sem fôlego. — Estamos navegando sobre um tesouro vivo. Eu poderia fazer carreira na Academia só com amostras daqui. Espécies nunca descritas, substâncias desconhecidas, processos geológicos…

— É por isso que você estava navegando nos Mares Esquecidos, não é? Dudalina viu nos seus cadernos que você está tentando entrar na Academia.

— Tentando não. Ainda nem tentei. Antes preciso de uma descoberta ou invenção significava para provar o meu valor como cientista.

— E todas as coisas que você já fez não são suficientes? Precisava dar a volta ao mundo?

— Precisava.

A expressão dela mudou, ficou mais grave. Duvidava que a tal aprovação fosse o único motivo. Ladrão se aproximou do rosto dela, e lambeu a bochecha. O sorriso voltou, ainda que triste.

— Espero que você encontre o que procura.

As palavras saíram sem querer, enquanto invejava o cachorro, lhe renderam um olhar incrédulo.

— Se eu sobreviver a você e seus amigos, e a Nero.

— Em vez de irmos até ele, estamos remando em meio aos espíritos dos mortos porque você me convenceu de que isso vai me deixar vivo, não estamos?

Anabela suspirou. Remaram até o atol mais próximo onde a areia se elevava acima da água, e encalharam o bote. Ladrão saltou para fora e começou a investigar o lugar, andando com as patas dentro da água.

— Você acredita mesmo nessa lenda? — pegando os baldes e redes que tinham trazido.

— Acredito que até me provarem do contrário, qualquer coisa pode ser verdade, e não vou provocar o divino sem motivo.

— Mas o que você acha que vai acontecer quando mergulharmos ali? Vamos encontrar mortos acorrentados no fundo?

— É diferente, porque—

Ladrão começou a latir, encarando algo embaixo d’água. Todos os músculos de Delfim se tensionaram, puxou Anabela para trás.

Mais uma vez, nada aconteceu. Ladrão latiu e rosnou, a superfície do mar continuou imperturbada. Uma brisa leve ressaltava o vazio do lugar, não trazia nenhum grasnado de ave ou o som de ondas quebrando ao longe.

— Eu não gosto disso.

Anabela revirou os olhos.

— Não gosta do mar em perfeitas condições de mergulho?

Ela pegou uma máscara com visor de vidro contínuo e tira de couro para prender atrás da cabeça, anexa a ela vinha um tubo curvo.

— Sabe usar uma dessas?

— Eu sei, mas por que não começamos do outro lado?

— Porque temos mais chance de encontrar tudo o que eu preciso na parte de dentro. Sabe, os Atóis são uma formação geológica de milhares de anos-

— Os milhares de anos em que os santos caminharam entre nós?

— Os milhares de anos necessários para que os processos térmicos da crosta e o intemperismo agirem sobre-

Ladrão ganiu de repente, mas quando se viraram, ele já não estava mais lá.

— Filho dum ouriço…

Continua….

Nas próximas edições

 Ladrão, pra variar, causou uma confusão das boas. No próximo capítulo, Anabela e Delfim terão a dupla missão de salvar o personagem principal da história e encontrar tudo o que ela precisa para fazer o antídoto. Será que existem mesmo espíritos aprisionados no fundo?

Alguém aí com saudade dos textos oceanográficos? Semana que vem quem sabe até onde as correntes marinhas podem nos levar? Aliás, o que é uma corrente marinha?

Um abraço, e o melhor 2022 possível para todes nós!