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20.000 Histórias Submarinas - Areia e Pólvora #8

Hoje, 17/12, chega o último capítulo de Areia e Pólvora do ano!

Foram fortes emoções até aqui, não é mesmo? E apesar de no mundo dos Mares Esquecidos não existir Natal, essa escritora que vos fala comemora essa data e as duas próximas sextas-feiras serão justamente 24/12 e 31/12. Vai ser um descanso curto. E a boa notícia é que logo na primeira sexta-feira de 2022 vai chegar um capítulo novo em folha de Areia e Pólvora, pra essa newsletter começar o ano bem!

Atenção, esse texto foi editado durante o final de semestre. Erros de digitação podem ter ocorrido!

Nos capítulos anteriores

Num ato impensado, Delfim levou Anabela para o Balaena para que pudessem fugir do ataque de Nero em Porto Aveiro. Logo em seguida, Hermes chega ao navio com a notícia que Loani, irmã de Delfim, tinha sido sequestrada, e sugere usar Anabela como moeda de troca, já que Nero tem contas a acertar com a família Argo.

Anabela se torna oficialmente refém dos piratas, e precisa encontrar uma saída enquanto navegam rumo a Ponta Quebrada.

8 - Negociações

Ao menos, não tremeu de medo. Ou foi isso que disse a si mesma enquanto era conduzida de volta para onde tinha acordado com a cabeça dolorida.

O silêncio na cabine ficou carregado quando o capitão se jogou na cadeira e lhe deu as costas, encarando a janela pequena atrás da escrivaninha. A mulher que ele chamara de Dudalina tinha desaparecido por um momento e voltou com um amontado de panos e correntes, parecendo inquieta, quase constrangida. Se Anabela não estivesse tão em choque com a sequência de acontecimentos, e com a prova de que era realmente prisioneira tilintando, talvez tivesse dado alguma atenção aos gemidos baixinhos de Ladrão.

Foi empurrada até uma bacia com água. A mulher colocou ao lado uma muda de roupa que se parecia muito com um de seus próprios conjuntos.

— São suas, sim. Parte do saque do Curiosidade — Dudalina murmurou. — Pode se limpar.

O Curiosidade. Seu navio, o mais novo da frota Argo. Perdido para Nero, de todas os piratas do mundo. Movendo-se como num sonho — ou pesadelo — Anabela esfregou o rosto com a água. Ao seu lado, a contramestre apertava as correntes. Prisioneira de piratas.

— Normalmente... não é... assim. O Balaena... tem um propósito. Nero é nosso maior inimigo e...

A tentativa de justificar a irritou. Teria sido mais fácil se fossem apenas piratas gananciosos, do tipo que os Argo estavam acostumados a lidar. Aquela demonstração de consideração mínima não servia de nada.

— Vocês estão me levando para o maior inimigo declarado da minha família para salvar uma de vocês. Não importa o que vocês são ou deixam de ser, não vai mudar que estão me levando para morrer. — Anabela encarou o cabelo loiro do capitão, ainda com o olhar fixo na janela. A discussão e as provocações na feira tinham ficado para trás. Se sentiu endurecer por dentro. — Eu sei bem o que perder um irmão pode fazer com as pessoas. Então, por isso também, não se surpreendam quando o horizonte for tomado por velas azuis. Talvez vocês consigam resgatar essa pessoa de Nero, talvez até consigam derrotá-lo se usarem um pouquinho de inteligência. Mas não vão escapar do ódio de Castro Argo quando ele descobrir, não existe um lugar do globo onde ele não conseguiria te encontrar. Você sabe disso, não sabe?

Ele não respondeu, e talvez não fosse necessário. Em qualquer outra ocasião poderia ter se preocupado com ter soado como uma garota mimada, apelando para fama da família. Naquele assunto específico, em que mais um Argo estava prestes a morrer nas mãos de Nero, era apenas a verdade e todos ali sabiam.

O coração ficava apertado apenas de imaginar Castro recebendo a notícia, de pensar que poderia ser o empurrão final para seu irmão ser engolido pelo abismo. Não fazia ideia de como aquilo tudo estava acontecendo. Os dois estavam apenas tentando retomar a vida após Gamão, tinham feito uma promessa de seguir em frente. Não era pra sua circunavegação científica terminar em tragédia quando parecia que estavam conseguindo.

Dudalina abriu e fechou a boca algumas vezes. Havia pena em seu olhar, o que mais uma vez incomodou Anabela. Já a consideravam como morta, ou pior. Mas ela não podia se dar ao luxo de sentir pena da própria situação, ou mesmo de Castro. Ainda estava respirando, então ainda podia haver um jeito de sair dali.

Decidindo que preferia não enfrentar Nero cheirando a maracujá, Anabela continuou se limpando da melhor forma possível. O cabelo de que sempre cuidava tão bem ao menos poderia ficar apresentável para o que quer que viesse a seguir.

— Todos os seus vidrinhos cosméticos foram confiscados pelas pessoas da tripulação — Dudalina falou depois de um tempo — Muito cheirosos. Nós já roubamos muitas madames, nenhuma nunca teve nada como aquilo.

— Bem... a maioria das madames paga caro por seus cosméticos. Eu faço os meus. — Não soube dizer porque respondeu. Talvez fosse o alívio de se sentir um pouco mais limpa, talvez fosse já um efeito de começar a pensar freneticamente numa saída. Anabela tagarelava quando raciocinava, mesmo sabendo que não contribuía para a imagem de cientista séria.

— Como assim... faz?

— Fazendo. Escolho os aromas, misturo as substâncias. Crio meus sabões e perfumes.

— Você é química.

— Sim, também.

— Também?

— Para entrar na Academia Sorrense de Ciências somos encorajados a estudar a fundo mais de uma disciplina.

— E é isso que você quer, não é? Entrar na sua Academia?

— Acho que sim.

Era seu maior sonho, ganhar o casaco cor de terracota, ser reconhecida entre os pares, finalmente ocupar um lugar ao qual sentiria que pertencia. Ser digna de estar lá era outra história. Estar viva para tentar a admissão também parecia uma possibilidade cada vez mais distante.

O pensamento a fez se perguntar o que um cientista da Academia faria. Que ciência haveria disponível ali para lhe libertar? Salvar, adiar. Ganhar tempo. Nem mesmo a Astrônoma Chefe de Sorra era capaz de controlar o tempo, mas parecia que a tarefa se impunha a Anabela.

— Você não parece muito certa disso.

— E você parece muito curiosa pra alguém que está agindo para me impedir de entrar na Academia!

— Tsc. É o meu mal, ser curiosa. Não é sempre que aparece aqui uma cientista da maior nação cientificista desse lado do mundo.

— Você estudou alguma coisa?

— Formalmente? Não. Ninguém precisa de verdade de educação formal.

Aquilo a fez franzir o rosto. Dudalina a encarou, como se a desafiasse a fazer mais perguntas sobre ela. Não caiu naquela armadilha de conhecê-la, de saber mais sobre aqueles piratas que a descartariam sem pensar duas vezes. Prosseguiu com o banho improvisado e trocou de roupa depois de verificar que Delfim não ia mesmo se virar.

— Eu peguei seus livros do Curiosidade. Todos que consegui. — Dudalina tentou de novo.

— Bom para você.

Ofereceu os pulsos para que ela a prendesse de uma vez. Quanto mais cedo conseguisse paz pra pensar, melhor.

Dudalina fez um ‘tsc’, entendendo o recado. Um franzido semi-permanente parecia ter se instalado em sua testa enquanto a acorrentava num gancho na parede. No mesmo ponto, ela prendeu uma rede de pano esgaçado.

— Eu vou mesmo dormir aqui?

— Provavelmente não é uma boa ideia deixar você nas celas enquanto o imediato não se acalma. — Ela olhou de soslaio para Delfim e depois para Ladrão, que observava a cena com as orelhas caídas. — Não que nada disso seja uma boa ideia, mas… Qualquer coisa você me chama, chefe. E juízo.

E com isso, ficaram os três sozinhos. Anabela, Delfim e Ladrão.

O cachorro se aninhou na cama desarrumada, o tempo todo olhando para ela como se tivessem roubado seu osso favorito. Anabela se jogou na rede, escondendo o rosto nas mãos, recontando todos os motivos pelos quais podia se manter otimista — como não eram muitos, contou duas vezes. A estatística não devia ser favorável, mas Márcia estava em algum lugar lá fora, era só questão de tempo até a notícia alcançar a Ilha de Cedro. E depois mais um tempo até a frota alcançar os Mares Esquecidos. Se Castro estivesse em patrulha, talvez economizasse alguns dias.

O barulho de passos e fricção de roupas interrompeu seus pensamentos. Contra a vontade, ou nem tanto, olhou para o pirata por entre os dedos. O encontrou novamente de costas, dessa vez sem camisa, aproveitando o resto da água da bacia.

Engolindo em seco, encarou o mosaico de tatuagens em suas costas, esticadas sobre músculos bem definidos. Eram desenhos diversos demais para contarem uma única história. Tentou desviar o olhar do caminho do pano molhado, das gotas escorrendo pelas marcas escuras contra a pele encardida de sol — não conseguiu. Quanto mais observava, mais detalhes descobria nas ilustrações, aqui e ali recortadas por uma cicatriz antiga.

Era injusto que vilões fossem atraentes. Era igualmente insano estar reparando em tais atributos físicos quando devia estar procurando por uma solução.

Ele estremeceu ao tocar o braço. Foi então que Anabela se deu conta do corte rasgando a tatuagem de uma baleia na parte superior do braço, bem abaixo do ombro. Com um estalo, sua mente começou a trabalhar. O limpar do ferimento revelou que quase nada de cicatrização havia ocorrido, veias escuras e inchadas nas extremidades delatavam a origem do problema.

Tentando manter a calma, procurou não ficar empolgada demais com a ideia que se descortinava. Ele era inimigo de Nero, era natural que tivesse caído numa das armadilhas favoritas dele.

— Você foi envenenado — disse em voz alta, torcendo para que o coração acelerado não fosse ouvido. Ela tinha uma chance.

Delfim estancou os movimentos, se virando de vagar para observá-la. Havia desconfiança na expressão dele, e também um pouco de surpresa. O maldito não fazia nem ideia da morte lenta que estava encarando.

— Você foi envenenado por Nero. — Dessa vez não conseguiu controlar, um sorriso triunfante começou a escapar.

Franzindo o cenho, ele olhou dela para o machucado, voltando a limpar.

— Imagino que você tenha o direito de ficar feliz com isso, se for verdade — ele resmungou.

Um plano razoavelmente absurdo surgiu, tomando os contornos daquela tatuagem arruinada. Se ele queria negociar com Nero para ter sua irmã de volta, agora Anabela tinha algo tão valioso quanto que poderia negociar com Delfim também.

— E como você sabe? — ele perguntou depois de um tempo.

— Boa parte da carreira de pirataria de Nero foi nos mares sorrenses, lutando contra a frota Argo.

— Eu sei. — Delfim revirou os olhos. — Da próxima vez matem o indivíduo antes que ele fuja pra cá.

— Nero usa veneno nas armas, a tripulação também. É um veneno lento, porque ele gosta de enfraquecer seus inimigos. Ele os fere com o veneno, e espera. O veneno impede que a ferida se cicatrize, e enfraquece o corpo até que finalmente a pessoa fica com o sistema imune tão enfraquecido que cai vítima de outras doenças ou que se torna presa fácil para o próprio Nero. Ele faz isso porque não gosta de danificar os navios, os prefere inteiros para fazer a própria frota.

— Ele usava isso contra vocês?

— Matou muitos dos nossos. O melhor dos nossos. — A última parte saiu mais fraca, o tom chamando a atenção do capitão.

Ele deixou o pano de lado, andou devagar pela cabine com uma expressão pensativa, se equilibrando com o balançar suave do navio. Contra a própria vontade, Anabela se pegou atenta a seus movimentos ao pegar uma camisa e cobrir o mural de tatuagens.

Não tinha como saber que tipo de pessoa Delfim era, porém lhe ocorreu que independente do que fosse, eles tinham um inimigo em comum. Só precisava fazê-lo perceber isso. Naquele momento, refém num navio nos Mares Esquecidos, podia ser uma boa aliada se não conseguia ser uma oponente de peso.

Ele pegou um vidro cheio de bolinhas brancas dentro, e se colocou de pé num salto, assustando homem e cachorro. Ladrão latiu, se colocando entre ela e a mesa.

— Você está combatendo o veneno com isso?

— Você também sabe o que é isso, então? — ele perguntou parecendo frustrado.

— Claro que sei. Pérolas de Cassis. Seu componente principal é um analgésico forte, com outras substâncias direcionadas a dar energia e ânimo. Substâncias que viciam. Está explicada sua instabilidade quando lutamos, se você toma—

— Eu não tomo. Foi só uma. — Então suspirou. — O efeito já está passando.

— E agora está cogitando tomar outra?

— Não vejo outra escolha. Mesmo que mais nada de muito grave aconteça, eu preciso estar forte e lúcido para encarar Nero. Nada que tomei até agora fez melhorar. E pelo que você me conta, nem vai.

— Se continuar tomando as pérolas, não vai continuar lúcido por muito tempo. Junto do veneno, ela vai te enfraquecer. Você já deve estar mais cansado que o normal.

— E o que a madame sugere? Não é como se houvesse um antídoto.

— Existe sim.

Os dois se encararam. Anabela se aproximou o tanto que a corrente permitia, precisava fazê-lo acreditar.

— Quando Castro assumiu o comando da frota e deu início às caçadas, ele capturou navios aliados de Nero. Ele capturou o cientista que o acompanhava, e com ele encontramos muitos frascos do veneno que ele usa. Pude estudar o veneno, conhecer seus componentes, e criei um antídoto. Toda a frota Argo tem frascos dele no estoque médico.

E era aquela sua maior contribuição para a batalha contra a pirataria que Castro havia começado. Poucas vezes tinha pego em armas, nada que justificasse dizer que lutara. Mas, havia ajudado a salvar vidas.

— Quer dizer que no Curiosidade...

— Tinha alguns, sim. Se seu amigo não tivesse perdido meu navio, poderíamos estar navegando ao encontro dele agora. Ou não, já que provavelmente vocês ainda estariam muito ocupados planejando em como me usar para tirar dinheiro da minha família ao invés de terem conversas amigáveis comigo.

Delfim grunhiu, deixando a cabeça cair para trás. Aquele era o momento de oferecer uma barganha, de negociar sem piedade.

— Mas, é possível produzir mais. Artesanalmente, claro, em pouca quantidade... só o suficiente para você.

A expressão dele era um misto de desconfiança e curiosidade, de novo ela pensou como era injusto que aquele homem fosse bonito. Num momento estivera por cima dele enquanto ele gargalhava, no outro estava barganhando por sua vida.

— Você não estaria disposta a simplesmente fazer o antídoto para mim.

— É claro que não. Agora, você está disposto a negociar Nero

— Para salvar minha irmã.

— Para comprar um pouco mais de tempo. — Anabela rebateu, sentindo cada vez mais confiança de que podia convencê-lo. — Você sabe que mesmo que ele lhe entregue sua irmã e se satisfaça comigo, é só questão de tempo até ele avançar sobre você mais uma vez. Talvez até sequestre ela de novo. E aí você vai fazer o que? Invadir Sorra com o Balaena para sequestrar outro Argo para tentar uma nova barganha? Nero já fechou a rede ao seu redor, você só está nadando sem ver enquanto o cerco se aperta.

— Como uma foca perseguida por baleias noturnas...

Excelente metáfora, gostaria ter pensado nela para o próprio discurso. Não tinha certeza de todos os fatos, estava fazendo suposições a partir do que havia conseguido entender da situação pelas conversas, porém, a julgar pelo olhar dele, parecia estar próxima da verdade.

Delfim queria aceitar o acordo, percebia no jeito com que a encarava. Ele engoliu em seco, chamando atenção para o conjunto de estrelas tatuado na garganta. Era a constelação que marcava a direção sul, o caminho para Anabela voltar para casa.

— Em Porto Aveiro, quando não deixou que eu caísse... você já estava pensando nisso? Em me entregar a Nero?

— Eu posso ser um bandido, moça, mas até eu sou incapaz de cometer uma crueldade como essa sem razão nenhuma — ele disse entredentes. — Esse infeliz chegou aqui com ideias insanas de ser rei e desde então só faz atormentar a mim e os meus.

— Então, se você está disposto a negociar com alguém como Nero, por que não negociar comigo?

Ele bufou.

— Deixa eu adivinhar, o antídoto em troca da sua liberdade? Não sei se é uma boa troca, você nem tem como provar que está dizendo a verdade.

— O antídoto em troca de eu mandar uma mensagem para minha família.

Delfim gargalhou sem humor algum, puxou cartas náuticas sobre a mesa a esmo.

— Ah, ótimo. Assim, se Nero não me matar, o seu irmão dá conta do serviço.

— Quem se colocou nessa situação foi você. Castro vai vir de qualquer forma. Melhor ele vir direto para um lugar onde possa me resgatar do que ficar navegando por aí abatendo as bandeiras piratas que encontrar, não? Além disso, você não vai conseguir resgatar sua irmã com o braço desse jeito, se drogando com as pérolas.

Tempo. Só queria tempo. Contando os dias que precisariam para reunir as substâncias para o antídoto, e possíveis oportunidades de escapar, suas chances aumentavam.

— Então, o que me diz, Capitão Delfim Lucas? Se você fizer isso, vai estar fugindo ao padrão que Nero espera que você siga, de tomar ações desesperadas. Vai parar de ter seu tempo contado pelas armadilhas dele. Que tal deixar de ser a foca, e passar a agir mais como a baleia?

Quando Ladrão latiu balançando o rabo, Anabela teve certeza de que pelo menos um deles tinha conseguido convencer.

CONTINUA...

Nos próximos episódios...

Falar é fácil, difícil é navegar por aí até encontrar todos os ingredientes para um antídoto, e se as condições climáticas não resolverem ajudar... tudo pode acontecer, não é mesmo?

Um abraço e boas festas para todo mundo que está lendo e suas pessoas queridas!