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20.000 Histórias Submarinas - Areia e Pólvora #7

Os leitores mais atentos talvez tenham percebido que semana passada não teve newsletter. A verdade é que sucumbi ao cansaço de muitas frentes de trabalho abertas ao mesmo tempo, mas faz parte, sempre soube que era uma possibilidade.

Muitas coisas legais aconteceram em novembro, e o mês de dezembro está finalmente trazendo alguns textos meus em revistas online que eu queria muito que chegassem ao público! Semana que vem espero conseguir falar um pouco deles e da oceanografia por trás de dois escritos especiais pra mim.

Então, sem mais demoras, fiquem com a continuação de Areia e Pólvora, que agora entramos num ponto onde não tem mais volta pra nenhum dos protagonistas!

Atenção, esse texto foi editado durante o NaNoWriMo e em final de semestre. Erros de digitação podem ter ocorrido!

Nos capítulos anteriores...

Enquanto Hermes e Loani levavam o Curiosidade, recém-capturado, para Ponta Quebrada, Delfim perseguiu Anabela até Porto Aveiro para resgatar Ladrão. Ele não imaginou que fosse acabar resgatando a própria Argo, salvando sua vida e logo em seguida a levando para longe enquanto o pirata Nero lançava um ataque surpresa sobre a cidade. Com um ferimento no braço que não cicatriza, uma ameaça como Nero e um cachorro que parecia gostar bastante de Anabela, talvez decisões difíceis tenham que ser tomadas...

7 – Problemas bonitos e verdades doloridas

Delfim foi listando os problemas que tinha enquanto o bote era içado de volta para o Balaena. O efeito da pérola de Cassis passava, trazendo de volta a dor insuportável no braço. Capitão Nero atacando a maior cidade dos Mares Esquecidos, levando a cabo os planos insanos de dominar a região. Uma Argo desacordada nos seus braços. Ladrão gostando dela e tentando lhe entregar uma machadinha.

No momento, não tinha certeza da ordem de urgência de cada um dos problemas, mas a expressão surpresa de Dudalina quando o viu subir a bordo carregando Anabela foi indicação suficiente.

— Nos tire daqui e depois venha me ajudar — resmungou para a contramestre, fingindo não ver nem os olhares curiosos da tripulação nem o balançar de rabo feliz do traidor que chamava de cachorro.

O navio já estava em movimento quando a levou para a própria cabine, se sentindo cada vez mais um idiota. Não tinha obrigação nenhuma com ela, não devia tê-la trazido. Se o Estrela Sangrenta não estivesse tão próximo, daria a volta e a devolveria para a própria tripulação. Aquilo tinha sido um enorme erro de julgamento.

Um erro bonito, com cheiro bom e cabelos escuros espalhados no travesseiro como se quisessem tomar conta do espaço, enquanto os óculos escorregavam pelo nariz levemente empinado. Talvez existissem erros piores a serem cometidos, afinal de contas. Não era como se a garota estivesse em condições de feri-lo.

— Você vai me contar o que aconteceu ou eu posso ir direto pra parte de falar que isso foi uma loucura sem tamanho? — Dudalina disse entrando sem bater — Uma Argo! A Argo, na verdade. Ela não é uma qualquer! O irmão dela vai vir pra cá igual uma baleia-noturna cheia de fome!

— Eu sei.

— Sabe mesmo, chefe? Ou tem alguma outra coisa acontecendo pra dificultar seu raciocínio?

Delfim a encarou de soslaio, e encontrou a contramestre de braços cruzados. Dudalina era astuta demais, era só questão de tempo até perceber que havia consumido uma droga e planejava consumir mais. Naquela confusão toda nem conseguira pensar em buscar um remédio para o braço em Porto Aveiro, e não estava com disposição para uma segunda discussão sobre outro erro que tinha cometido.

Estava na hora de usar a cabeça, não podia continuar a tomar decisões impensadas. Uma força como a de Nero não seria combatida com impulsividade, nem com mulheres bonitas desmaiadas.

— Vamos navegar um pouco para leste. Quando tivermos certeza que o maldito foi embora, trazemos ela de volta — disse, tentando ignorar a própria insatisfação com a ideia. Olhava para a garota e via, além das características físicas atraentes, a cabeça de Ladrão apoiada no colchão do lado da mão dela, o rabo balançando.

— Também acho que é o melhor a fazer.

— Ótimo.

— Ótimo.

Dudalina apertou os olhos, chegando mais perto.

— E você vai deixar a… convidada… aqui na sua cabine?

Delfim suspirou, indo para a mesa procurando uma distração. Precisava ocupar a mente com qualquer outra coisa.

— Por que, Duda? Se achou ela bonita pode levar pra sua cabine também.

Foi a resposta errada, provavelmente tinha acabado de confirmar tudo que Dudalina devia estar pensando. Ela riu, relaxando o suficiente para se sentar na frente dele.

— Madames sorrenses não fazem meu tipo.

— Ela não é tão madame assim… no mínimo deve ser tão inteligente quanto você.

— E é mesmo. Eu dei mais uma olhada nos cadernos enquanto vocês brincavam de pique-pega… Você percebeu que o Curiosidade usa um outro combustível que não carvão? Pois então… quem inventou o combustível foi ela.

— Isso parece um pouco mais que só ser inteligente…

Dudalina fez um gesto de pouco caso com a mão.

— No caderno ela chama de carbotina, não faço ideia do que seja. Espero que ela acorde com vontade de conversar.

— Eu não contaria muito com isso…

— E essa sua impressão tem a ver com o fato de vocês dois estarem sujos e cheirando a maracujá? E com esse galo na sua testa?

— Mais ou menos.

Tinha a ver como a expressão dela mudara ao longo da discussão na feira. Primeiro, estivera brava com ele pela loucura até se lembrar que, tendo salvo a vida dela ou não, estavam em lados opostos. E depois, à menção de seu irmão, uma mistura indecifrável e turbulenta vibrara por trás dos óculos logo antes de sua expressão se fechar.

Era possível que tivesse se deparado com assuntos mais complexos do que um simples saque de navio ao cruzar o caminho de Anabela Argo. O mais prudente seria despejá-la de volta na Ilha das Aves tão logo fosse seguro e se manter longe das rotas daquela família, e também daquele reino. Por mais que a imagem dela em sua cama fosse tentadora, não estavam em condições de brincar com forças mais perigosas que Nero.

Se um único pirata com sonhos de grandeza já era uma ameaça à liberdade nos Mares Esquecidos, o que fariam os governantes de Sorra quando sua nobreza navegadora voltasse os olhos para o norte? Resgatar uma cientista inteligente o suficiente para inventar um combustível poderia se transformar em expedições exploratórias, colonizadoras, taxas de comércio e tributos e pobreza.

— Há reféns que valem o esforço do dinheiro, outros… melhor deixarmos em paz — disse Dudalina, traduzindo seus pensamentos. — Admire-a o quanto puder agora, chefe, mas não podemos brincar com esse perigo.

Delfim estava prestes a responder quando ouviram o apito de alarme do vigia. Uma onda de desânimo o percorreu enquanto trocava um olhar com a contramestre. Não era possível que mais alguma coisa tivesse acontecido, parecia não conseguir navegar algumas milhas antes de esbarrar num novo problema. Estava com cada vez menos água pra manobrar e não havia nada pior que isso para um marinheiro.

Já no caminho para o convés superior, uma fome estranha o arranhou por dentro. Não era por comida, era por mais energia, por se sentir imbatível como o casco do Balaena quebrando as ondas. Cada passo parecia aumentar a exaustão, a dor no braço ficava pior. E havia uma solução imediata, mesmo que temporária.

O vidrinho ainda estava no bolso do casaco. Uma pérola não faria seus inimigos sumirem, mas poderia lhe deixar forte o suficiente para resistir, pelo menos até o ferimento fechar, ou até devolver a garota…

— Não. — Dudalina tocou seu braço, impedindo a mão que ia até o bolso. — Não vale a pena, chefe.

— Como…

— DELFIM!

A voz de Hermes a bordo do Balaena nunca parecera tão errada. Calafrios se juntaram ao buraco aberto dentro do estômago, exigindo uma dose de força, de energia.

Correram os últimos degraus até o convés superior. O imediato e mais quatro da tripulação que fora com o Curiosidade estavam lá, encharcados, feridos. Nada do Curiosidade à vista, nem de Loani. Enquanto tentava se preparar para o pior, a pérola continuava a atacar sua razão, a ferida latejava e a fome se transformava em raiva.

— Fomos atacados — Hermes falou, se deixando cair no convés.

— Não me diga — Dudalina resmungou, usando sarcasmo para esconder a preocupação estampada no rosto.

— Nero. Desceu de uma nuvem de chuva e nos encurralou por cima. Usou o próprio peso para nos prender, quase pousando sobre nós. Claramente não queria afundar o navio.

— Eu não me importo com o navio! E minha irmã? — Algumas vezes Delfim queria espancar o imediato por coisas como aquela. Colocar Loani em segundo plano quando ela nitidamente o colocava em primeiro sempre fora um sinal de um péssimo relacionamento que ele não se sentia confortável para se intrometer. Mais um erro de julgamento. Em que mundo Hermes poderia achar que ele queria saber sobre o maldito navio antes de saber da irmã?

A expressão do imediato foi de envergonhada para raivosa, as mãos se fechando em punhos. Delfim quase desejou que brigassem, também queria bater em alguma coisa e o idiota que tinha perdido Loani era uma ótima opção.

— Nero a capturou junto do navio. Ele-

— E você a deixou para trás?!

— Ele viu o Balaena saindo de Porto Aveiro, e nos jogou. Ele quer-

— Seu imediato incompetente realmente perdeu o navio que vocês acabaram de roubar de mim?

Delfim fechou os olhos, inspirando para não perder o controle. Os problemas da lista não apenas aumentavam em número como também interagiam entre si.

Anabela estava parada no topo da escada que dava acesso ao convés inferior, o rosto sério e determinado como se não estivesse sozinha num navio pirata. Bonita, inteligente, corajosa e chegada num péssimo momento. Delfim amaldiçoou a garota em silêncio, e Ladrão parado ao lado dela.

O comentário causou uma erupção em Hermes, de um salto se ergueu e avançou. Delfim o conteve num reflexo, prestando atenção apenas no tremor que passara e desaparecera do rosto da Argo.

— Você vai defender essa escória aristocrata?! — Hermes gritou.

— Não foi a escória aristocrata que deixou minha irmã cair nas mãos de Nero. — respondeu com frieza, o jogando contra a murada do Balaena.

Um suspiro coletivo percorreu a tripulação. Delfim não se importou. Pelo canto do olho, viu Dudalina se colocando entre Anabela e os outros. Ladrão estava com as orelhas em pé, atento. Ao menos, não era o único ali a pensar que não deviam ferir a garota.

— Eu não a deixei para trás... Delfim. Ele veio do nada, por cima. Loani foi uma das primeiras que eles pegaram. Acho que já estavam planejando há um tempo. Antes de nos soltar, Nero deu um aviso. Disse que se quisermos Loani de volta, temos que fazer o pacto de lealdade com ele. Não vai devolvê-la enquanto não nos submetermos.

Dudalina começou a xingar de repente. Com o susto, Ladrão juntou seus latidos à mistura. O olhar de Hermes era um misto de culpa e de desespero, deixando claro o que pensava.

— Nem pensar! — Dudalina exclamou, olhando dele para Delfim. – Chefe, se o Balaena se submeter a ele acabou, os Mares Esquecidos não serão mais um território livre. O que temos que fazer é enfrentar esse maluco! Se o Balaena desistir, os outros capitães vão também.

— Nós precisamos resgatar Loani! — Hermes exclamou — Não importa o que precisemos fazer. Nós somos piratas, não precisamos ter escrúpulos com promessas.

— E você acha que Nero é burro desse jeito? Deixa de ser tonto, Hermes! — a contramestre rebateu — O que ele quer é colocar a gente numa coleira. Ele não vai simplesmente devolver Loani ao ouvir as palavras mágicas. Vai mantê-la refém até ter certeza de que estamos fazendo tudo o que ele quer, e então pode ser tarde demais.

Hermes arregalou os olhos, como se realmente não tivesse pensado naquilo. Delfim também não saía como reagir, muitas coisas acontecendo, rápido demais. Uma onda de energia suspeita borbulhou dentro dele, o instigando a gritar, bater, quebrar.

— Ela!

O grito do imediato sobressaltou a todos, tinha uma expressão quase febril no rosto pálido ao apontar para Anabela.

— A família dela expulsou Nero dos mares sorrenses! Com certeza ele daria qualquer coisa para poder ter sua vingança sobre um Argo. Delfim, não vê?

Ele via, e cada pessoa naquele convés também. A tripulação trocou olhares que tendiam a concordar com o plano de Hermes, Loani era querida por todos. E apesar de tudo, de entender que talvez não tivesse escolha, Delfim não conseguia enxergar aquilo como uma pronta solução. Nem mesmo se imaginava entregando uma pessoa inocente para Nero, até sua consciência de bandido tinha limites.

Dudalina, para seu alívio, tinha uma expressão pensativa no rosto. Talvez fosse a única pensando racionalmente. Entre o próprio medo pela irmã, o efeito da droga e o olhar desvairado de Hermes, ele precisava ouvir palavras sensatas.

— Faz parte do perfil de Nero... aceitar essa troca. Acho que ele é louco o suficiente para abrir mão de uma vantagem sobre você só para se satisfazer. Pode ser que nos entregue Loani. Mas... colocar as mãos num Argo não vai mudar seus planos, continuaremos tendo que lutar. Seria só mais um adiamento — ela disse, devagar.

— E quem se importa?! Só o que interessa é Loani! — Hermes explodiu, o que me deixou com mais raiva.

— Não estou dizendo que não devamos oferecer a troca, cabeçudo! — Dudalina rebateu. — Estou apenas apontando que dar a ele o sangue que ele quer derramar não nos tira da mão dele, só faz adiar. Isso, se adiar. Nero é louco, quantas vezes eu tenho que repetir isso?

— Mas não temos escolha! Além do mais, quem se importa com uma madame do sul?! Ela não é nada perto da vida de Loani!

Delfim já tinha ouvido muitas verdades doloridas na vida, o suficiente para reconhecer uma mesmo quando soava como uma grande mentira. Se pensasse direito, perceberia que qualquer hesitação era fruto de ter salvado a vida da garota e estar se sentido de alguma forma responsável pela enorme burrada de trazê-la a bordo. Burrada essa que podia ser sua única chance de salvar a irmã.

Dudalina estava de braços cruzados, não parecendo nem um pouco satisfeita mas também sem oferecer outras soluções.

— Suas ordens? — ela perguntou.

Seu olhar se cruzou com o de Anabela, de boca aberta e medo verdadeiro nos olhos. Era uma experiência nova, como pirata, não sentir prazer em causar medo nos prisioneiros. Todas as outras vezes só queria assustá-los até que pudessem ter rendido pesados sacos de moeda, e se alguém morresse eram os riscos do ofício. Agora havia motivos reais para que a garota o temesse, por que o que mais eu poderia fazer?

— Rumo Ponta Quebrada — disse, e quando Hermes abriu a boca para argumentar levantou a mão. — Você sabe onde Nero está?

O imediato abriu e fechou a boca várias vezes antes de responder, fazendo que não com a cabeça. Delfim não estava acostumado a vê-lo tão sem prumo, mas não encontrou forças para se preocupar com o amigo diante de todo o resto que acontecia.

— Então precisamos nos reagrupar em Ponta Quebrada para descobrir seu paradeiro e reparar o navio.

— Sim, é o cer-

— Eu não quero ouvir — Delfim disse entredentes. — Faça alguma coisa útil e pilote esse navio até em casa. Dudalina, traga a garota.

A prisioneira. A próxima vítima de Nero.

Engoliu o pensamento amargo, ignorou o medo estampado no rosto de Anabela, não era hora de pensar nos próprios limites enquanto pirata. Estava disposto a fazer qualquer coisa pela irmã, e daria um jeito de viver com as consequências depois.

Continua...

Nas próximas edições...

No capítulo 8 de Areia e Pólvora é certo que as decisões difíceis de Delfim vão forçar Anabela a fazer as próprias escolhas, hora de colocar a cabeça pra funcionar como uma boa cientista.

Abraços e bom final de semana!