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20.000 Histórias Submarinas - Areia e Pólvora #5

Um pouquinho fora do horário normal por motivos de “estamos no final do ano e eu já não tenho mais tanto controle sobre o tempo”, aqui vem o capítulo 5 de Areia e Pólvora!

Confesso que foi um pouco desafiador dar uma última editada e revisada nessa história enquanto trabalho na outra do NaNo, mas gosto de como esse capítulo ficou! Espero que possam aproveitar também, Ladrão está ansioso.

Aviso! Este capítulo foi editado durante o NaNoWriMo, a autora não se responsabiliza por erros de digitação.

Recapitulando

No capítulo passado tivemos o primeiro embate entre os dois protagonistas. O Curiosidade foi tomado pelos piratas do Balaena, mas nem tudo deu certo para Delfim! Anabela conseguiu escapar em um dirigível esférico, e na confusão, Ladrão foi junto! Agora o capitão precisa resgatar seu cachorro, enquanto decide seus próximos passos ao descobrir um pouco mais sobre a garota de óculos.

Fugindo para Porto Aveiro, como é que Anabela vai sair dessa?

5 - A irmã do caçador de piratas

— Você vai continuar andando que nem um bicho enjaulado? — perguntou Dudalina do timão — O convés não é lugar pra isso.

Delfim não respondeu, continuou o vai e vem da sacada superior da popa, de tempos em tempos puxando a luneta. Ainda nada no horizonte.

— Eles não vão aparecer pela proa — avisou a contramestre.

— Você tem certeza que isso vai dar certo?

— O único lugar que serve pra eles é Porto Aveiro, e a essa hora eles devem estar pegando todo o vento contra.

— Não sabemos o que aquela coisa é capaz de fazer.

— Verdade, mas ainda sim deve seguir alguns princípios básicos dos dirigíveis. Eles vão estar pesados e voando contra. Chefe, você sabe essas coisas.

Até sabia, mas no momento era difícil acreditar que Delfim era o saqueador experiente quando era a garota que tinha feito o sequestro bem sucedido. Normalmente, não ficaria tão preocupado com Ladrão, mas a Argo tinha se demonstrado um páreo duro para cães, fosse o peludo ou ele mesmo.

Doutora Anabela Argo. Não era, afinal de contas, a médica de bordo — o que só tornava a situação mais vergonhosa. Médicos de bordo sabiam se virar num aperto, mas cientistas?

Ele pulou da sacada e foi até a mesa que Dudalina tinha montado ao lado do timão. Junto da carta náutica dos Mares Esquecidos estavam espalhados objetos que a contramestre tinha roubado da cabine da garota. Cadernos de anotação, vidros com líquidos, geringonças de cobre que ele nunca tinha visto na vida.

—Você já tinha ouvido falar dela? — perguntou Dudalina.

— Eu esperava que você já tivesse. Ciência é com você.

— Bom, não é como se eu tivesse acesso aos boletins da Academia Sorrense de Ciências. E pelo menos isso podemos ter certeza, ela não é da Academia. Se fosse, a essa hora estaríamos até o pescoço de soldados vestidos de terracota.

— A Guarda do Sol...

— Uhum. Pelo que eu espiei nos cadernos, é isso que ela tá tentando.

As anotações vinham numa letra fina, treinada, e não faziam o menor sentido para ele. Um pedaço falava de pedras e a página seguinte trazia desenhos de penas de aves — desenhos não tão bons assim, como ele teve a satisfação mesquinha de concluir. Se fizesse a garota de prisioneira talvez a torturasse mostrando como eram aves realmente bem retratadas.

— Mas, chefe… tem uma coisa que eu descobri aí. Hermes foi um tonto por não ter descoberto, ou por não ter dado um jeito de avisar antes da gente atacar. Olha o caderno mais debaixo na pilha, primeira página.

Delfim não sabia bem o que estava esperando, tinha imaginado mais palavras bem escritas que não significavam nada para ele, não tinha pensado que daria de cara com uma imagem de daguerreótipo em tons de preto e branco. Já havia visto algumas ao longo da vida, mas era uma tecnologia cara e de pouca utilidade nos Mares Esquecidos.

A imagem mostrava uma família de cinco de pessoas, quase todos com o uniforme dos oficiais da frota Argo. Um homem baixo e gordo de pele escura, já ficando careca, tinha as mãos nos ombros de dois rapazes parecidos um com o outro. Os dois eram altos e magros, cabelos cacheados e nenhuma insígnia nos casacos. Uma mulher muito alta com a pele mais clara estava ao lado dos três, tinha as mãos atrás do corpo e um sorriso que lhe pareceu orgulhoso. A menina na frente dela era a única que não estava de uniforme, numa mão segurava uma luneta e a outra agarrava a barra do casaco de um dos garotos. Era óbvio quem era, não tinha mudado tanto apesar de ainda não usar óculos.

— Olha atrás. Não é uma Argo qualquer.

No verso, encontrou os dizeres: O Duque e a Duquesa de Cedro, e seus filhos: Gamão, Castro e Anabela.

— Filho dum ouriço… — murmurou Delfim — Filho dum ouriço cagado de papagaio do mar.

— Pois é… Acha que ela veio atrás de Nero? Hermes disse que a capitã do navio era Márcia Margil, ela com certeza já encontrou com ele antes.

Ele pensou sobre o assunto, os olhos grudados nos três filhos.

— O Curiosidade estava armado, mas não estava pronto pra batalhar. Eles saberiam que não seria o suficiente.

Se fosse o caso, eles mesmos não teriam tido chance naquele dia. Um homem infiltrado e o elemento surpresa tinham sido cruciais, não havia comparação entre as capacidades do Balaena e do Curiosidade, por mais que lhe doesse admitir que seu companheiro estava ficando velho.

Encarou os irmãos Argo olhando sorridentes para o daguerreótipo. Gamão e Castro estavam longe de serem os navegadores famosos que se tornariam, mas pareciam estar perto da idade em que fariam seus grandes feitos. A circunavegação mais rápida, e um ano depois a mais longa.

— Essa família é uma praga… — resmungou — Por que eles não podem se contentar em ficar lá naquela ilha cheia de madeira? Não deve ser tão ruim assim.

— Bom, era só questão de tempo até a gente dar de cara com um deles, né… Mas com tanto Argo navegando por aí, a gente bem que podia ter dado mais sorte de encontrar um que não fosse filha do Duque. Tudo bem que podia ter sido pior, podia ter sido o irmão do meio.

Seria pouco digno de sua parte admitir que concordava, capitães piratas não deviam demonstrar medo de oficiais de marinha. Mas Castro Argo havia construído uma reputação que apenas um tolo ignoraria. Se tinha conseguido expulsar Nero dos mares sorrenses, ninguém sabia o que poderia fazer contra um navio como o Balaena.

O recém-descoberto histórico familiar da garota, somado a conjecturas sobre a modernidade da frota Argo, fez com que chegasse a uma conclusão sobre o tamanho do problema em que tinha se metido. Dudalina foi quem teve a coragem de colocar em palavras a questão.

— Acha que eles vão navegar tão ao norte para encontrá-la? Com toda aquela tecnologia a bordo, duvido que o Curiosidade não tenha mandado um pedido de socorro. Só não sei se alcançaria Sorra, muito longe…

Não fazia diferença a distância ou o tempo, era certo que Castro Argo viria. Delfim não precisaria nem conhecer as histórias sobre os mares sorrenses terem sido tingidos com sangue pirata para ter certeza absoluta. Ele também tinha uma irmã por quem causaria um nível de destruição considerável caso alguma coisa acontecesse.

— Se não pediram socorro no ataque, com certeza vão pedir quando chegarem em Porto Aveiro. O filhote de duque vem.

— Pelo mar, são cinco dias de Sorra até aqui. Pelo ar não sei… O que nós vamos fazer, chefe? Eu sei que o imediato veio com aquele papo de pedir um resgate por ela, mas eu não sei se temos condições de fazer isso. Ela não é uma nobre qualquer. E ainda tem mais…

Frustrado, guardou a imagem de volta dentro do caderno. Não adiantava nada encarar a sombra daquelas pessoas, era com os adultos calejados que teria que lidar.

— Como é que pode ter mais além de estarmos perseguindo a irmã mais nova do maior caçador de piratas da atualidade?

— Ela é uma cientista… pelas leis sorrenses, mesmo sem fazer da parte da Academia, a Guarda do Sol pode intervir.

Podia parecer impossível se sentir acuado ao ar livre, navegando tão rápido quanto o vento permitia, mas para Delfim foi como se cada vez mais balas de canhão fossem amarradas a seus pés, só faltava alguém lhe empurrar para o fundo. Acumular inimigos fazia parte da vida, acumular os piores inimigos possíveis era um pouco demais.

De qualquer forma, não era como se lhe restassem muitas opções. Enquanto houvesse vento, havia uma chance, e ele já tinha navegado por alguns apertos. Nem todas as dificuldades eram tão bonitas com bocas cheias e óculos escorrendo de suor, e definitivamente nem todas sequestravam seu cachorro, mas Dudalina estava certa. Podia ter sido pior. O Argo perigoso estava longe, por enquanto.

— Nós vamos primeiro pegar meu cachorro de volta, depois decidimos. Temos o Curiosidade agora.

A contramestre revirou os olhos.

— Se Hermes e Loani conseguirem chegar com ele inteiro em Ponta Quebrada.

O tom de voz o fez deixar de lado o problema externo do momento para prestar atenção aos possíveis problemas internos. Seu pai um dia o advertira que o cargo de capitão significaria cumprir muitos outros papeis ao mesmo tempo. Juiz, carrasco, conciliador. Ele só esquecera de avisar que continuar sendo amigo se tornaria mais difícil, nem sempre as prioridades da tripulação coincidiam com as exigências das amizades.

— É impressão minha ou você anda implicando demais com os dois? Eu preferiria que a minha praça d’armas permanecesse unida.

— Não é implicar demais quando o imediato do navio fica imprudente e descuidado. Não sei o que é, Hermes tá diferente, e Loani não ajuda, os dois se fecham no mundinho deles. E eu sei que você também percebeu isso.

Dudalina franziu a testa para o horizonte. Delfim não encontrou argumentos para discordar, mas não achava justo demandar excelência quando ele mesmo não estava nas condições ideias. Apalpou o corte escondido sob o casaco, nada de dor. Aquilo não podia ser natural, e quem poderia lhe garantir que a pérola já não havia comprometido seu julgamento?

— Chefe, você não achou esfarrapada a história que Hermes contou? Ele saiu dizendo que ia atrás de um mercante da CCIE, e aparece num navio sorrense cheio de areia colorida?

— A garota disse que o resgatou de um naufrágio, depois ele negou, disse que foi uma armadilha…

— Ele é ardiloso suficiente pra isso, mas as ações não me convencem.

Delfim esfregou a cara com força.

— Vamos buscar Ladrão, e depois a gente ajeita a casa.

*

O cachorro se enfiou por baixo do banco do copiloto, rosnando pra qualquer um que se aproximasse, pelo menos duas canelas já serviam de prova que o vira-lata não fazia ameaças vazias. Não que Anabela o culpasse, só gostaria que os marinheiros pudessem transitar no espaço apertado sem que a fila de feridos aumentasse. Era uma cápsula de exploração de curta distância, não uma unidade hospitalar.

Tinha costurado Josefino o melhor que conseguira, fingindo não estar com as mãos trêmulas ou com a garganta apertada, tentando agir como se fosse ficar tudo bem. O tenente estava desacordado, o que era melhor. Ela não achava que conseguiria encará-lo.

— Cabo, assuma o timão.

Mesmo baixa, a voz de Márcia ocupou a cabine com a firmeza serena de costume. Anabela não precisou olhar para saber que a capitã estava vindo até ela, como também não se surpreendeu com o breve rosnado em reação à movimentação.

— Como ele está? — perguntou Márcia.

Ela deu de ombros, não tinha palavras que não fossem de culpa. Pelo canto do olho, viu os primeiros picos da Ilha das Aves surgindo no horizonte. Não faltava muito para chegarem em terra firme.

— Anabela…

— Não. Nada de amenizações. Eu sei que falhei, tomei todas as decisões erradas e não consegui manter o navio confiado a mim.

Eu falhei. Eu sou a capitã, o duque me escolheu para que eu a protegesse. Vou encarar os fatos e as consequências quando o momento chegar, mas agora precisamos nos manter objetivos.

— Eu não deveria ter abandonado o navio.

— E de que teria adiantado? Melhor fugir do que virar prisioneira.

— Castro não-

— Capitão Argo concordaria comigo.

— Só porque é sobre mim, ele também me protegeria. Mas ele não teria fugido. Gamão não fugiu.

— Mas era o que deveria ter feito.

As palavras tiveram som de tapa, apesar de terem sido ditas no tom calmo de sempre. Anabela tentou não se ressentir de ninguém, nem de Márcia por ofender a memória de Gamão e nem dele, por não ter vivido para lutar um outro dia.

— Agora, precisamos chegar em Porto Aveiro. Lá avisaremos o Duque.

— Não. Vamos obter alguma passagem para o sul.

— Não temos muitos recursos.

— Eu não posso ser a única Argo a não completar a circunavegação! — disse num sussurro estrangulado, o aperto na garganta ameaçando se libertar. — Não posso ser a única Argo incapaz de levar os marinheiros de volta pra casa, não posso ser um fracasso nisso também!

A capitã cruzou os braços, mas a resposta foi interrompida quando toda a cápsula sacudiu com um estrondo. Pela segunda vez naquele dia interminável, Anabela foi jogada para os lados com a perda súbita de altitude.

— Maldito! — exclamou Márcia, se segurando no teto para se equilibrar e alcançar a cadeira do comando. — Se segurem, todos!

Pelas janelas envidraçadas, viu o Balaena galgando as ondas.

— Lancem os botes! — Márcia gritou para os marinheiros — Acertaram o balão!

A ordem colocou os marinheiros num frenesi. O dirigível era moderno, mas não tinha sido feito pra ficar muito tempo em água salgada, não tinha a vedação de um navio. A cápsula de exploração encontrou a superfície, fazendo tudo tremer.

A água começou a entrar com o ritmo traiçoeiro de toda inundação, devagar e constante até que parecesse rápida demais. Mais um navio que ela teria que abandonar.

Anabela foi até Márcia, espiou o navio se aproximando pela janela. O cachorro estava latindo embaixo do banco, mas não fez menção de atacar.

— Não vamos conseguir remar até a ilha — disse.

— Vamos nos aproveitar da mesma corrente que trouxe os malditos até nós, vamos conseguir. Anabela — Márcia ficou em pé, a encarou nos olhos. — Você não falhou, mas agora precisamos continuar firmes. Estaremos em segurança na ilha, confie em mim.

Os marinheiros moveram os feridos primeiro, só havia dois botes, teriam que se apertar. A cápsula começou a emborcar com o peso da água, as ondas desequilibrando o dirigível danificado. Anabela fez questão de ficar por último, estava prestes a sair quando ouviu o latido.

O cachorro tinha saído de baixo do banco, estava nadando em busca de alguma superfície que pudesse subir. Ele era esperto, pelo menos, poderia deixa-lo para trás. Mas não deixou.

— Ah, não, Anabela... — Márcia suspirou da porta que tinham aberto

— Não é culpa do cachorro.

— Eu diria que é, sim. Devem ter vindo atrás dele.

Talvez, mas não queria mais aquela morte pesando em sua consciência. Anabela foi até ele, tentando se equilibrar. O vira-lata a encarou com desconfiança.

— Ladrão — falou, se lembrando como o pirata tinha dito. As orelhas dele ficaram alertas. — Vem.

— Anabela, rápido!

A água já estava na altura dos joelhos, aqui e ali alguns circuitos da cápsula começavam a estourar. Anabela respirou fundo, e estendeu a mão.

— Ladrão, vem.

Depois do que pareceu um momento interminável, ele foi. Meio andou meio nadou até ela. Anabela estava dolorida e cansada, mas fez o esforço de pegá-lo no colo e saltar para o bote. No barco, trocou o cão por um remo.

O Balaena ficava cada vez maior em sua visão periférica, a Ilha das Aves também. Não tinha a menor expectativa de que fossem remar mais rápido do que eles navegavam, mas tinha que continuar tentando.

Continua...

Nas próximas news...

Semana que vem, teremos mais uma edição temática e um pouco da minha experiência com o NaNoWriMo até o momento. E depois, quem será que vai ganhar na corrida até a ilha?

Abraços, e se cuidem!