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20.000 Histórias Submarinas - Areia e Pólvora #4

 Mais uma semana chega, e com ela mais um capítulo de Areia e Pólvora! Como eu recebi algumas ameaças em função de como o último capítulo terminou, acho justo avisar que talvez o final desse não seja muito melhor. Prossiga por sua própria conta e risco, e espero que isso não abale nossa amizade!

 Aviso! Este capítulo foi editado sob ameaças e latidos de Ladrão, a autora não se responsabiliza por erros de digitação.

Relembrando...

 Nos capítulos 1 e 2 conhecemos o Capitão Delfim Lucas e a Doutora Anabela Argo, cada um com seus problemas. Ele tomou uma droga para lidar com um ferimento que não fecha, e ela ficando sem tempo para fazer uma grande descoberta científica.

No capítulo passado, Anabela teve a confiança traída pelos náufragos que resgatou a caminho de Porto Aveiro, e viu o Curiosidade ser invadido por piratas do Balaena com a ajuda do sr. Hermes.

4 - O Sequestro

Não sentia a dor no braço, e também não sentia mais nada a não ser vontade de gastar energia. Os efeitos da pérola de Cassis eram cheios de contradição, Delfim detestou a sensação de não estar com total controle sobre o próprio corpo. A memória de lutas passadas alertava que devia estar tomado por adrenalina, mas todos os movimentos que fazia pareciam imersos em água, e na tentativa de sentir alguma coisa usava mais força a cada golpe. A mistura o deixava irritado, a única solução possível parecia ceder à vontade de só lutar, esquecer da racionalidade.

Extravasar a própria raiva nos inimigos enquanto estava sob o efeito da pérola não era lá muito digno de sua parte, mas Delfim já tinha feito as pazes com o fato de não ser uma pessoa muito digna no geral. Os Santos, se existissem, decidiriam o que fazer com sua alma depois, talvez os motivos para viver aquela vida amenizassem a situação. Não tinha garantia nenhuma do que viria depois da morte e não ter feito de tudo pelo Calango teria sido uma grande perda de tempo, então, como dizia seu pai, melhor pecar com boas intenções do que ficar parado enquanto os outros pecam.

O navio era novo, bem-cuidado, cheirava a nobreza sorrense — o que só piorava sua mistura de humores. A pérola bombeava seu sangue com força, lhe dava uma fome descabida por descontar a frustração nos uniformes azuis. De certa forma, dizia uma voz sedutora no fundo da cabeça, a culpa também era deles, Nero jamais teria ido para o norte se tivesse conseguido manter a pirataria mais ao sul.

Eram soldados experientes, estava claro. Não era a primeira dança daquela tripulação, e apesar de não ter visto ainda quem estava no comando, percebia que ordens estavam sendo seguidas. Mas não importava, ele farejava a vitória no ar. O navio seria dele, e com um navio voador seria muito mais fácil montar uma frota, brigar de igual para a igual.

— Delfim! — Hermes o chamou, abrindo caminho entre soldados — Nós precisamos achar a-

Invasões a navios não eram bons momentos para conversar, Delfim estava acostumado a ouvir frases interrompidas, mas era a primeira vez que via Hermes ser pego de surpresa daquela forma. Uma garota saltou por de trás do mastro principal e derrubou seu imediato.

Os dois caíram rolando pelo convés, ela tentando golpeá-lo com uma faca pequena. Quando se chocaram com outros combatentes, foram obrigados a se separar para não serem pisoteados. Ao se erguerem, Delfim conseguiu dar uma boa olhada nela, e um novo tipo de sensação pulsou com os efeitos da droga. Empurrando um marinheiro ferido para longe, seguiu a movimentação dos dois.

Alta, de pele marrom claro e cabelo escuro queimado de sol. Preso num coque no topo da cabeça, seus cabelos desalinhados ameaçavam a escapar a cada movimento que ela fazia, a cada respiração ofegante. Os olhos, mesmo por trás dos óculos, que milagrosamente tinham permanecido intactos no lugar, delatavam uma raiva que lhe era familiar.

Hermes gargalhou de forma desdenhosa enquanto os dois se circulavam. Ela, séria. Ele, seguro de que tinha a vantagem naquela situação. Delfim discordou da avaliação do imediato, ninguém tinha vantagem sobre uma pessoa com aquela intensidade no olhar.

— Então era verdade, doutora? Sobre ter lutado no mar? — Hermes perguntou, testando alguns golpes.

Doutora? A médica de bordo? O hálito de Ladrão na mão da espada o lembrou de que não devia ficar parado feito um idiota. Precisava intervir, dava azar machucar médicos, todo mundo sabia disso. O fato de a médica em questão ter descompassado sua respiração não tinha a nada a ver com a decisão, claro.

— Para tomar um navio de um Argo, sr. Hermes, é preciso antes sangrar o Argo a bordo.

Argo. Um nome famoso. Nunca havia encontrado um deles pessoalmente, mas era impossível navegar e não esbarrar com histórias sobre aquela família. Seu pai contava que na juventude chegara a bater espadas com o próprio Duque de Cedro. Parecia que ele estava prestes a ter a própria história pra contar.

A jovem recuou, sem tirar os olhos de Hermes. Quando ela bateu as costas contra o mastro, seu amigo sorriu satisfeito. A garota Argo tateou a superfície atrás de si e bateu o punho contra ela, fazendo soar um alarme agudo.

Ladrão latiu, mas Delfim o segurou no lugar enquanto Hermes avançava. Não foram mais de dois passos antes de o convés começar a se mexer embaixo do imediato, se abrindo portas duplas que deslizavam para dentro. Marinheiros de uniforme azul saltaram para as cordas, mas piratas caíram no buraco de onde um vapor fedido começou a sair.

Hermes se desequilibrou e também caiu, mas conseguiu se segurar na borda no último instante. Delfim sabia que devia ajudar, mas estava hipnotizado pela garota. Ela ainda estava no mesmo lugar, agarrada a madeira, havia incerteza em seu rosto. Ali estava alguém que não estava acostumada a derrubar pessoas.

Foi Ladrão quem os tirou do momento de paralisia. Ele contornou o buraco e se colocou na frente de Hermes, que tentava subir de volta para o convés. Por um instante, ela pareceu surpresa com os latidos do cachorro, mas assim que Ladrão fez menção de avançar em sua direção, se recompôs. Colocou as mãos na cintura e dirigiu um olhar firme para ele.

— Nem pensar, mocinho!

Ladrão, desacostumado a ser enfrentado, parou.

Delfim se surpreendeu com a própria gargalhada até se dar conta de que havia finalmente sido percebido por ela. Quando se encararam, mais uma vez se viu preso nos detalhes sobre ela. Reparou em como seu queixo caiu ao vê-lo se aproximar, em como engoliu em seco e como seus dedos apertaram o cabo da faca com mais força.

— Sabe, eu não gosto que joguem meus amigos em buracos.

— O seu amigo se aproveitou da nossa boa vontade de resgatá-lo de destroços incendiados. Se não fosse por nós ele estaria ainda boiando no meio do nada. E é assim que ele retribui.

Aquilo era informação nova, mas teria que interrogar Hermes depois.

— Ah, moça, você não pode culpar um tubarão por fazer o que tubarões fazem.

— Mas posso culpar homens por agirem como animais.

— Verdade. — Ele sorriu de lado para ela. — Mas nesse canto do mundo, não fazemos muita distinção entre as duas coisas, a senhorita devia ter vindo mais bem preparada.

A Argo o olhou de cima a baixo, Delfim torceu pra que pelo menos um pedacinho dela gostasse do que estava vendo e por que não? Nem tudo precisava acabar em derramamento de sangue.

— Que tal a moça se entregar? Uma médica é sempre útil...

A garota riu e por um momento o mundo parou. O som se infiltrou por seus ouvidos e remexeu alguma coisa lá dentro, espantou um pouco da névoa da pérola ao mesmo tempo que o fez se sentir tão desconcertado quanto Ladrão. Ela estava rindo dele, e isso era uma novidade na carreira de pirata.

— Médica? Certo... Nesse caso, o senhor não sabia que dá azar brigar com o médico de bordo? — A garota sorriu e mais uma vez apertou um botão no mastro.

Um guincho no convés de repente ganhou vida e girou na direção de Delfim, o forçando a saltar para o lado. Foi tempo suficiente para que ela fugisse, escalando caixas de madeira amarradas no mastro principal.

— Pega, Ladrão!

Ladrão avançou, tentando escalar atrás dela, mas mais uma vez ela o parou com um olhar firme e um dedo apontado.

— Não! Eu sei o que fazer com cachorros mal-educados e você vai ficar quietinho se não quiser entrar numa coleira!

Era possível que nunca tivesse visto seu cachorro tão perdido. Ladrão olhou dela para Delfim sem saber o que fazer, mas não houve tempo para conversas motivacionais entre homem e cão.

A garota cortou as cordas prendendo as caixas e deslizou de volta pelo mastro até alcançar uma alavanca. O guincho girou e derrubou todas elas, derramando areia colorida por todo o convés. Pessoas caíram e escorregaram com o novo ambiente de luta, Delfim só conseguiu se certificar da cabeça de Ladrão surgindo de um montinho de areia antes de sentir o chute no braço do ferimento.

Por um instante o choque fez uma pontada de dor perfurar a névoa da pérola. Um pouco mais lúcido, um pouco mais fascinado pela garota, levantou a guarda. Segurando a faca de modo que protegia seus punhos, ela saltou para o ataque. Os movimentos eram impetuosos, pouca habilidade e muito instinto. O fazendo recuar pela surpresa e pela força, ela conseguiu pegar uma espada largada no chão, e então uma luta de verdade começou.

Ladrão latia e em algum lugar no fundo Hermes gritava, mas Delfim mal reparava. Poderiam estar no meio de uma tempestade e não teria visto. Seus sentidos estupidamente focavam em coisas inúteis, como a forma com que ela as vezes usava o punho da faca para colocar os óculos no lugar, ou seus lábios cheios apertados, ou como as gotas de suor desciam por seu pescoço, sumindo de baixo da blusa branca.

Um ataque dele, um desvio dela e o coque se desfez, libertando os fios escuros. O cabelo flutuou entre os dois, o assaltando com o aroma de frutas cítricas. Meio laranja e meio limão, doce e fresco. Além de tudo perfumada, aquilo era um golpe baixo contra sua concentração.

Foi uma péssima hora para se deixar distrair pela moça bonita e cheirosa com uma faca na mão, um piscar de olhos e sua mão estava sangrando. Mais uma tatuagem com uma cicatriz por cima, mais um aviso de que não estava com a cabeça no lugar.

A dor o colocou de novo em posse de si mesmo. Ele não se deixaria morrer por bobagens de cheiro bom, mesmo que fosse muito bom. Com a concentração renovada, Delfim empurrou a luta até encurralá-la contra a abalaustrada do navio.

A garota olhou para as ondas, ele não duvidou que teria coragem de saltar.

— Não adianta, moça. Você é até uma lutadora esperta, mas lutadores inteligentes aceitam uma derrota para poder lutar outro dia.

— Você não vai me dar chance de lutar outro dia.

— Verdade, mas vou fazer as coisas serem um pouco menos piores se você parar agora.

— Nunca. Eu nunca vou ser capturada por um pirata.

Palavras ditas de forma ofegante, com ares de promessa, e de desafio. Delfim desejou que aquele embate tivesse sido num outro momento de sua vida, em que poderia se divertir e considerar com calma o que fazer. Capturar uma Argo seria uma história que se alastraria pelos Mares Esquecidos, um pedacinho de sua lenda em construção.

Ladrão parou a seu lado, sacudindo a areia do pelo. Ele latiu, mas o rosnado já não estava tão confiante quanto antes.

Num borrão, um marinheiro cambaleante surgiu na sua visão periférica. Era o ruivo.

— Eu já não atirei em você hoje?

O homem cuspiu sangue no convés e levantou uma arma, com o braço tremendo. Aquele, Ladrão não teve receio de atacar, avançando para morder o braço antes que o tiro fosse disparado.

— Josefino!

A garota correu para o marinheiro e agarrou Ladrão por trás, tentando forçá-lo a abrir a boca. Delfim estava a meio caminho dela quando uma buzina longa ecoou no convés e o navio tremeu.

Os marinheiros de azul que ainda estavam de pé saltaram para a água deixando os piratas perdidos com a diferença súbita de atitude. Sons mecânicos e uma súbita baforada de vapor fizeram todos se virar para o centro.

Um pequeno dirigível de balão esférico subiu do buraco que a garota tinha aberto no convés. Na cabine envidraçada Delfim viu uma mulher velha de moicano pilotando, dois marinheiros se apoiavam por fora, atirando a medida que o veículo avançava cada vez mais rápido voando baixo sobre o convés, empurrando piratas para os lados.

Ele demorou para entender o que estava acontecendo, e então foi tarde demais. O dirigível foi até a Argo, e ela saltou para dentro enquanto os marinheiros ajudavam o homem ferido a entrar também. Ladrão, ainda tentando atacar, pulou em perseguição ao grupo.

— Não, não! Ladrão, volta!

Delfim correu, mas o dirigível já estava em manobra, ganhando velocidade. Ele saltou do Curiosidade para o Balaena, percorrendo o convés de proa à popa atirando na direção do saco aéreo, a frustração aumentando a cada tiro perdido.

— Delfim! — Dudalina surgiu ao seu lado. — De onde surgiu essa coisa?!

— Não interessa, nós temos que derrubar isso agora! Dê a volta com o navio!

— Não podemos, ainda estamos enganchados!

Atrás de si, os gritos de vitória da tripulação do Balaena iam ficando mais altos a medida que os sons de batalha diminuíam. Delfim continuou atirando porque não haveria comemoração se Ladrão não estivesse ali. O dirigível era manobrado com habilidade, voava baixo lançando escadas em que os marinheiros na água se agarravam. Os que subiam, atiravam na direção do navio forçando ele e Dudalina a buscarem cobertura.

Logo estavam longe da linha de tiro das armas menores, e a tripulação do Balaena começou a comemorar. Delfim estava imobilizado, assistindo seu cachorro sendo levado embora.

Encontrar Hermes e Loani num beijo intenso no centro do convés do Curiosidade causou um estalo, arrebentou uma corda imaginária que vinha mantendo o controle sobre seu humor.

— Você não achou que seria bom avisar do monstrengo voador dentro da porcaria de navio em que você estava infiltrado?!

O casal se separou com um susto, o que deu a Delfim a oportunidade de olhar melhor para o amigo. Hermes estava muito mais pálido do que da última vez que o vira, mais magro também.

— Você tá doente? É por isso que fez esse trabalho horrível?!

— Eu estou muito bem, obrigado. E de nada por conseguir o navio mais novo a navegar por essas bandas nos últimos anos. — Hermes fechou a cara para ele — O que deu em você?

— A médica de bordo levou Ladrão!

— Médica de bordo? — O imediato arregalou os olhos. — Você deixou a Argo escapar!

— Eu… eu deixei? Ha ha ha. Muito engraçado, você. Eu SEI que você estava naufragado por aí e que foi a garota que te tirou da água!

— Do que vocês estão falando? — perguntou Loani — Quem você deixou escapar, Delfim?

— A garota que resgatou seu namorado fugiu na droga de um dirigível que ele não avisou que existia, e ELA LEVOU O MEU CACHORRO!

O som de palmas os fez virar. Dudalina parou de frente para eles com as mãos na cintura. Só então Delfim se deu conta de que a tripulação toda estava parada, assistindo a discussão.

— Certo, certo, estamos todos muito animados com essa vitória, eba! — Dudalina bateu palmas de novo. — Agora, vamos ao que interessa? Essa belezinha aqui não vai subir de novo sozinha, quero todo mundo trabalhando! Loani, querida, vai cuidar da repartição do saque, não vai?

— Você não manda em—

— Contramestre do navio, terceira em comando. Primeira se esses dois não estiverem ajuizados, o que claramente não estão. Mando em você sim, meu chuchu. Além disso, o imediato vai estar ocupado dividindo a tripulação e inventariando as nossas próprias perdas e eu preciso colocar o Balaena para navegar de novo. Vamos, todo mundo, circulando!

Loani olhou com indignação para Delfim, ele apenas deu de ombros. Dudalina estava certa. Sua irmã tinha escolhido não brigar por uma posição na tripulação, e não seria ele a desautorizar a contramestre na frente dos outros.

— E você, capitão, arruma qualquer coisa útil pra fazer que não seja explodir com o primeiro que te olhar torto — disse Dudalina com a voz mais baixa, franzindo a testa para ele.

Buscando os últimos fiapos de calma que tinha, Delfim lutou contra a névoa raivosa permeando seus pensamentos. Um maluco estava querendo dominar os Mares Esquecidos, seu imediato estava com cara de doente, e uma Argo tinha sequestrado Ladrão. Olhou o Balaena, tinha alguns arranhões a mais no casco do que mais cedo, mas ainda estava firme e forte.

— Você tem uma hora pra aprontar o navio, Dudalina. Depois disso vamos nem que seja remando atrás deles.

Continua...

Nas próximas news...

 A autora gostaria de deixar claro que nenhum animal foi ferido na escrita desse capítulo e que Ladrão se encontra em perfeito estado de saúde. Não posso dizer o mesmo sobre Delfim ou Anabela... No próximo capítulo, atracamos em Porto Aveiro. Será que homem e cão se reencontrarão?

E na semana que vem, se eu não estou perdida no calendário, é a última sexta-feira antes do dia das bruxas... que outras coisas assustadoras guardam os oceanos?