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20.000 Histórias Submarinas - Areia e Pólvora #21

 Que semana, que mês, a gente vai se arrastando porque vaso ruim não quebra e as vezes a solução é ser pior. O capítulo de hoje vai grande, mas também vai com alguns dos que são meus trechos favoritos, espero que vocês gostem!

  

 Atenção, não esqueça de vestir seu colete salva-digitação!

Nos capítulos anteriores...

 Anabela está se recuperando, tentando sobreviver à Joana e tentando não se distrair tanto quando conversa com Delfim. Não que eles estejam tendo muitas oportunidade de conversar, com uma mãe brava empenhada em ficar no caminho...

 Balaena sob reparos, bombas sendo construídas, e o que fazer com Hermes depois da traição?

21 - Um pouco de história, um pouco de arte

Ponta Quebrada não tinha uma prisão, lógico. Não fazia parte da crença da ilha ser hipócrita, sobreviviam pelo trabalho honesto de bandidos e se alguém ali se voltasse contra seus vizinhos de comunidade sob qualquer forma, bem, sempre tinha algum outro vizinho apto a convidar não-tão-educadamente a pessoa a se retirar. Delfim não ia mudar isso por causa do filho de um ouriço traidor que era seu antigo imediato, então precisou ser criativo para contê-lo e impedir que fugisse correndo pra Nero.

— A natureza é mesmo uma coisa fantástica, não é? — ele perguntou para o buraco, ouvindo o eco subir com satisfação. — A ironia da vida também, porque se eu bem me lembro foi você quem me mostrou esse lugar e disse que seria uma boa pra fazer alguém de prisioneiro, se um dia a gente precisasse...

A resposta de Hermes foi um resmungo com tantos palavrões que alguns nem Delfim conhecia.

Na parte sul da Ilha do Calango havia um pequeno grupo de pedras castigadas pelo mar e pelo tempo, as poucas que podiam ser encontradas acima da linha d’água naquele arquipélago arenoso. Ninguém sabia se tinha sido raio, terremoto ou as ondas ao longo de centenas de anos, mas ali havia um buraco escavado na rocha. Mais fundo que a altura de três pessoas, de paredes íngremes e escorregadias pela umidade — de vez em quando, o mar crescia em ressaca e as ondas caíam ali dentro, e se a pessoa não soubesse nadar, azar. Hermes sabia, e só teria como escapar se tantas ondas enchessem o buraco a ponto de leva-lo flutuando até a borda. Por sorte, não havia sinal de mau tempo em nenhum canto do horizonte naquela época do ano.

— Eu tenho uma maçã aqui, caso você tiver com fome.

— Vai comer merda se você tiver fome.

— Hm. Acho que prefiro a maçã.

Ele se sentou na borda e deu uma boa mordida, o som da crocância da fruta reverberando ao redor do prisioneiro. Cinco dias atrás, Delfim teria gritado palavrões de volta, cheio de ódio e mágoa. Dois dias atrás, teria jogado a maçã lá embaixo por pena, porque Hermes tinha a aparência horrível e não era possível que aquele homem acabado tinha sido capaz de tudo. Foi como viver um luto em uma semana, ansioso por Loani e apavorado por Anabela e sentindo a falta de alguém que tinha sido um irmão. Naquele dia, já tinha feito todas as pazes que podia ter feito com o fato mais simples de todo — não tinha mais volta, e só restava salvar quem ainda tinha alguma chance.

Fosse pelo vício nas pérolas de cassis, fosse por motivos obscuros que talvez nunca fosse compreender, Hermes estava perdido. Sentado no fundo do buraco, a água nas canelas e apoiado contra a pedra, o ex imediato e ex amigo não olhava para cima. A tremedeira nos braços e a palidez anormal para quem estava já há dias no sol compunham uma visão deplorável.

— Hermes... onde? Onde eu encontro o maldito pra um ataque surpresa?

Não obteve resposta, de novo. Já vinha fazendo aquela pergunta todos os dias desde que soubera da traição.

— Quem mais no navio tá de traidor com você?

O peito de Hermes subiu e desceu, ele enterrou a cabeça entre os joelhos, a respiração abafada pelas ondas do lado de fora das pedras. Delfim se forçou a terminar de mastigar o pedaço de maçã e engolir, apesar do estômago se revirando. Havia uma pergunta que vinha evitando fazer.

— Loani sabe que você traiu a gente? Ou... Loani me traiu também?

Uma gargalhada seca e então finalmente o prisioneiro o encarou no olho.

— Você ainda não entendeu naaaada. Nada mesmo.

— Então me explique — Delfim disse entredentes, a maçã começando a rachar sob o aperto dos dedos. — De que lado tá Loani?

Hermes bufou, o rosto se contorcendo de nojo.

— Do seu, sempre.

As palavras deveriam trazer alívio, mas seu coração afundou no peito diante do tom de Hermes. A frase parecia ter o significado contrário, uma boia náutica virada de cabeça pra baixo.

— Então me ajuda... vamos salvar Loani e-

— Delfim, não! — Hermes ficou de pé, se apoiando na pedra, os olhos arregalados. — Você não tem escolha. Nero não pode ser vencido. Você nunca vai descobrir quem é o traidor, e sabe por que? Porque eu nunca descobri. Um dia ele chegou até a mim, sabia de tudo de mim, e de repente ele era o dono de tudo.

— Isso não faz o menor sentido.

— Não faz, mas é assim que as coisas são. Nero sabe de tudo, toma tudo e engole tudo. Aquele veneno, sabe?

— Você sabia que eu tava envenenado?!

— Delfim, como é que você acha que ele consegue manipular aquele veneno sem morrer ele mesmo? Ele não pode morrer, é por isso. Eu tentei... na primeira vez que ele me encurralou, uma faca no pescoço da sua irmã me tirou do sério...

— Quando foi isso?

— Eu tentei, atravessei um tiro no braço dele, e ele riu! Riu! O sangue dele é diferente, não é vermelho...

— Hermes-

— VOCÊ NÃO VAI VENCER!

— Você tá delirando, abstinência de pérola.

— Me tira daqui e você vai ver. Numa luta justa você não tem chance contra mim!

Aquilo já era parte do roteiro. Em algum momento Hermes se cansava do questionamento e partia para ameaças.

— Me fale sobre o seu encontro com Nero e eu te dou uma chance de uma luta justa.

— ME TIRA DAQUI.

— Quando você encontrou Nero a primeira vez? O que ele te prometeu?

— A SUA CABEÇA SEU FILHO DUM OURIÇO DESGRAÇADO SEM ESPINHO.

Da praia, Ladrão latiu. O safado estivera se distraindo com seu novo passatempo favorito de caçar mariscos-ardentes na arrebentação e o tinha deixado sozinho para interrogar o maluco. Mas aquele latido tinha um significado, e o coração de Delfim se alegrou em resposta.

O rabo de escovinha balançava feliz enquanto ele corria na direção de Anabela, caminhando com o apoio de um pedaço de pau.

— Não não não não não Delfim! — Hermes chamou — Olha pra cá, não presta atenção nela!

Impossível, noite e dia, de olhos abertos e fechados, tudo que Delfim conseguia prestar atenção era nela. Ficou de pé, jogou um odre de água fresca e uma maçã inteira no buraco, e se afastou ignorando os gritos do traidor.

Saltou por entre as pedras fazendo o caminho mais curto atrás de Ladrão, já saltando sobre Anabela. Já fazia alguns dias que ela havia deixado a cama, pura teimosia e de alguma forma tinha ficado ainda mais bonita. Foi ao encontro dela como um imã incapaz de resistir, como um peixe fisgado só que com o anzol fisgado bem no coração — já não conseguia mais mentir pra si mesmo, o único esforço que lhe restava era não deixar a verdade tão clara para ela. Afinal de contas, não importava o que sentia se ao final daquela história ela fosse embora. E Anabela ia, tinha certeza.

Se contentando em viver através de Ladrão, a quem nunca faltavam os carinhos dela, parou numa distância suficiente para não sentir o cheiro dela — era injusto que fosse tão cheirosa, tão reconhecível contra o sal e maresia como se fosse uma ilha salvadora num mar interminável.

— Bom dia.

Anabela sorriu, parecia radiante — uma mudança drástica de humor.

— Alguém acordou de bom humor...

— Sim, eu estava com Duda agora e ela-

BUUUM!

O estrondo fez Ladrão saltar no lugar. Delfim reagiu por puro instinto. Saltou por cima de Anabela e a protegeu com o próprio corpo, tentando raciocinar e tentando não lembrar da cena dela desacordada e ensanguentada no convés. Estavam sob ataque de novo e não era possível que ele não podia ter uma única semana de paz.

— Delfim! Delfim!

Sentiu as mãos de Anabela no peito, o empurrando para cima.

— Você tá bem? Precisamos chegar na vila, se você não conseguir correr eu-

— Delfim, se acalma. Não foi um ataque.

— Como?

BUUUM!

Anabela suspirou, mas havia um sorriso no rosto. Os óculos tinham saído um pouco do lugar na queda, então ela o ajeitou e pigarreou antes de falar.

— Acho que ela não se aguentou... ou então errou nos cálculos... mas é a Duda. Teste de bombas. E pelo barulho começou logo pelas maiores.

— Isso... eu achei que ela fosse testar isso na Ponta do Calango, onde não tem... não era pra tá longe daqui?

— Exatamente, ela tá longe.

— Parece que foi aqui do lado...

— Eu sei! Não é incrível? Vamos conseguir explodir bastante coisa.

Deveria haver um limite para a beleza de uma mulher falando sobre explosões e, se havia, Anabela aparentemente os desconhecia. Com o cabelo esparramado pela areia, o rosto tão perto dele, o sorriso mais do que satisfeito — orgulhoso — ela era o ser mais lindo de todos os Mares Esquecidos. E não estava tentando sair de baixo dele. O dia na feira, quando fora ele por baixo para amortecer a queda, parecia uma vida inteira atrás. E talvez fosse, talvez tivesse morrido e vivendo um pós-morte em que seu mundo inteiro girasse em torno dela.

O focinho de Ladrão se enfiou no meio deles, lambeu tanto um quanto outro. Anabela gargalhou, o corpo balançando contra o de Delfim quase numa tortura. Se forçou a rolar para o lado, fechou os olhos e tentou guardar todas as sensações na memória para quando não tivesse mais nenhum momento como aquele.

— Você tá bem? — ela perguntou, ouviu a preocupação na voz dela.

— Tô, é só... Hermes. — O que não era uma mentira completa.

— Quer me contar enquanto vamos andando? Acho que Duda não vai-

BUUUUUUM!

—... esperar muito mais antes de explodir todos os protótipos.

Ele concordou com a cabeça, era o melhor a fazer. Ouvir bombas explodindo talvez disfarçasse as batidas do próprio coração.

*

Contou sobre o interrogatório no caminho até o outro lado da ilha. Anabela o ouviu em silêncio, a testa franzida o tempo todo. Eram uma bolha flutuando no meio da vila, por mais que soubesse que chamavam atenção andando juntos não conseguia se importar com o que os outros viam quando olhavam para eles.

— Nada do que ele diz faz muito sentido... — ela comentou no final. — É claro que Nero pode ser morto. Se não pudesse, ele não teria fugido com o rabo entre as pernas de Castro.

— Como foi que isso aconteceu? Exatamente? Eles chegaram a se enfrentar pessoalmente?

— Não, e não foi por falta de tentativa de Castro. — Ela mordeu a bochecha, a ruga entre as sobrancelhas aumentou. — Não sei se eu devia dizer isso, e espero que mostre a minha boa fé que vou dizer, mas... Castro usou uma estratégia Argo bem antiga, chamamos de tesoura. A flotilha navega em duas linhas, isola a nau inimiga de possíveis aliados pelos dois bordos e então se fecha sobre ela. Quando Gamão morreu e Castro assumiu o posto de Mar e Guerra, sua primeira decisão foi chamar de volta todos os nossos navios de volta pra Ilha de Cedro, de todos os portos do mundo. Nunca em cem anos tantos navios Argo estiveram navegando o Mar de Cedro ao mesmo tempo.

— Então ele foi... passando a tesoura.

— Pra Castro qualquer navio pirata a menos era um navio mais perto de Nero, então ao invés de gastar tempo e recursos tentando prever onde o alvo estaria... ele afundou todos. Teve um pouco de sorte também, porque com o tempo alguns passaram a se render antes e negociar informações em troca de uma punição mais branda.

As cenas se desenharam por conta própria na cabeça, a imaginação preenchendo os detalhes que ela não dera. Castro Argo navegando pelos Mares Esquecidos, cortando linhas e afundando todas as bandeiras piratas que surgissem pela frente.

— Ser feito de prisioneiro não parece mais brando que morrer... — sussurrou, tentando evitar comentários piores.

— Um dia você pode ir até Cedro e perguntar para os sobreviventes... a maioria já é livre de novo e tem bons empregos, honestos.

Delfim bufou. Achava difícil de acreditar naquele conto pra peixe dormir, e mesmo que fosse verdade... ele jamais seria bem-vindo em Cedro.

— Você fala como se seu irmão fosse deixar o Balaena chegar a menos de mil milhas náuticas de Sorra.

— Ele vai. — A certeza na voz dela o abalou por um instante, o fez imaginar cenas novas e tão perigosas quanto. Um mar distante, uma ilha quase tão grande quanto um continente, coberta por florestas. — Se eu pedir...

Havia tantas coisas contidas naquele ‘se’ quanto havia peixes no mar, então Delfim empurrou todas elas pra baixo da superfície. Não era hora de se perder em devaneios.

— E então ele encontrou Nero.

— Um capitão se rendeu e deu uma informação que parecia muito provável, casava com relatos da inteligência náutica. Uma flotilha pirata comandada por Nero navegando para norte, fugindo dos Argo em comboio para maior segurança. Castro navegou com a maior força marítima que Sorra viu desde a Ascensão Arundel e fechou a tesoura sobre os cinco navios piratas que encontraram quase nos limites do reino. Mas...

— Era uma armadilha.

— Pior. Um sacrifício. Eu não sei como, ninguém nunca descobriu, mas Nero convenceu todos os navios a se lançarem num ataque suicida contra as forças Argo... A nossa força era superior, claro, mas a deles não estava lutando pra vencer, estava lutando pra ganhar tempo.

— Enquanto isso Nero fugiu.

Anabela confirmou com a cabeça, a expressão fechada e a mão que não segurava o suporte de caminhada abrindo e fechando.

— Maldito... você tava lá?

— Foi a minha última navegação por um tempo, antes da volta ao mundo. Eu acreditei que seria o fim de todas as desgraças depois que Gamão morreu então insisti pra ir junto, mesmo não podendo comandar um navio. Bastante estrago foi feito, e quando percebemos que Nero não estava entre os inimigos, Castro perdeu completamente o controle e o juízo. Passou o comando da frota para uma prima nossa, e saiu em perseguição. Eu tive que convencer Márcia a ignorar as ordens do comando pra ir atrás dele, mas é impossível alcançar o Albatroz com Castro no timão e Elba nas velas. Eu... naquele dia...

Ouvir a voz de Anabela falhar foi quase tão dolorido quanto vê-la ferida. Antes que se desse conta, segurou a mão dela e apertou, e não soltou mais.

— Eu fiquei rouca naquele dia, quase sem voz. Berrei no rádio por todo o caminho para Castro voltar. O rei tinha autorizado a vingança desde que servisse aos propósitos do reino, piratas fora dos mares de Sorra não eram preocupação de Sorra. Se Castro continuasse a perseguição para além dos limites do reino, estaria ignorando ordens e jogando fora... bom, bastante coisa. Eu achei que ele não fosse ouvir.

— Mas ele ouviu.

— Castro nunca vai negar nada que fosse da vontade de Gamão, e foi esse o argumento que eu usei. Se ele fosse, não poderia continuar o trabalho que Gamão tinha deixado incompleto. E eu prometi a ele que ajudaria. Que seria uma Argo melhor e digna de navegar do lado dele, que juntos honraríamos a memória do nosso irmão.

Ao redor, Delfim teve meia consciência de alguns sussurros, mas não parou e nem cogitou largar a mão dela. A história não era exatamente como se contava naquela parte do mundo e também estava longe de pintar a imagem que tinha construído de Castro Argo.

Se em algum momento tinha sentido medo daquele capitão vindo para os Mares Esquecidos, naquele instante estava mais perto do pavor. Não apenas porque o Argo pudesse afundar todos os seus aliados e amigos, mas porque estava clara a lealdade inabalável de Anabela. Havia uma promessa a ser cumprida entre os dois.

E além de tudo, os medos de sua mãe de repente haviam se tornado bem mais racionais. Ao sequestrar Anabela, haviam dado ao Rei de Sorra um motivo para autorizar o avanço de uma frota para os Mares Esquecidos. De repente, cinco navios parecia uma quantidade muito pequena perto do que acabara de ouvir — não podia ser verdade. E ao mesmo tempo, ele estava do lado da única pessoa que podia ser capaz de parar o avanço daquela força.

BUUUM!

No caso, também a mesma pessoa que tinha lhe dado uma arma tão poderosa quanto se podia ter naquele canto do mundo.

Anabela pigarreou.

— Mas como você pode ver... Nero é só um homem ruim, que não se importa com nada nem ninguém. Mas ele teve a chance de enfrentar Castro sozinho, e ainda assim escolheu fugir. Hermes estava delirando, talvez já estivesse sob efeito das pérolas. Sabe... alguns poucos sobreviveram da força inimiga na batalha final. Todos eles eram viciados em pérola de cassis. Deve ser uma das armas de Nero para controlar as pessoas.

— É possível...

— Chefe!!

Dudalina surgiu por cima de uma duna quando alcançaram o final da praia, Anabela se assustou e puxou a mão de volta. A contramestre estava feliz e saltitante e um pouco aterrorizante também. Embora estivesse curioso pra ver o tamanho do estrago, não foi com tranquilidade que Delfim se deixou tirar daquela bolha onde conseguia se convencer que poderia ser ele e ela contra o resto do mundo.

*

Já era de noite quando se sentou sob a luz de uma lamparina e se permitiu desenhar pra relaxar. Ver duas das três bombas experimentais enterradas na areia que restavam fora mais que o suficiente para convencê-lo de que — finalmente — tinham alguma vantagem. Tinha deixado as duas loucas dos explosivos delineando próximos passos e voltado para supervisionar os reparos no Balaena.

A tarde de trabalho tinha ajudado a organizar pensamentos e acalmar sentimentos. Ou era o que pensava. A Anabela do desenho sorria cheia de promessas para ele, uma armadilha que ele se via cada vez mais disposto a cair.

Ladrão o alertou sobre a chegada dela e lá se foi seu coração estúpido de novo. Talvez ele morresse por falha cardíaca antes que tudo acabasse. Escondeu o papel às pressas e puxou um incompleto da paisagem da ilha, tentando se fazer parecer concentrado quando ela entrou acompanhada do cheiro de doce de coco.

Uma cumbuca foi colocada ao lado dos papéis, outra no chão para Ladrão. Uma terceira apareceu a sua frente, onde ela se sentou.

— Isso aqui é a melhor coisa de todo o Calango — ela declarou, parecendo muito satisfeita.

— E aqui estava eu pensando que seria eu a melhor coisa da ilha...

— Ainda não decidi sobre isso. O doce de coco não me sequestrou.

O doce de coco também não poderia fazer uma série de outras coisas que ele preferiu não dizer em voz alta. De qualquer forma, sentiu uma ponta de orgulho e alívio que Anabela encontrasse algo que a agradava ali. E pensara nele também. Podia viver em segundo lugar para o doce. Pegou a própria cumbuca para comer.

— Esses são maiores que do caderno. — Anabela apontou para os desenhos.

— O caderno é só mais fácil de carregar...

A mão dela fez menção de puxar alguns papéis para ver, desencadeando um breve momento de pânico. Largou a cumbuca e pressionou os papéis contra a mesa. Anabela não podia ver o último.

Isso lhe garantiu um olhar fulminante por de trás dos óculos, provando mais uma vez que ele estava em grandes apuros se até isso acelerava a pulsação. Ele sorriu, tentando lançar mão de qualquer charme que ainda tivesse resistido as ondas de ridiculice que o haviam tomado desde que se apaixonara por ela.

— Não posso ver?

— Não... estão prontos.

— Hm. Pelo menos sua mãe pode ficar tranquila.

— Como assim?

— Ela disse que você usa os desenhos pra impressionar as pessoas.

O queixo de Delfim caiu. Quem precisa de inimigos com uma mãe como doutora Joana Lucas, não é mesmo? Anabela inclinou a cabeça para o lado, observando cada detalhe de sua reação.

— É mentira?

Ali estava uma situação sem saída. Se dissesse sim, seria um canalha por mentir. Se disse não, mostraria o quanto era um canalha. Mas antes que pudesse decidir a melhor forma de se humilhar com a resposta, ela recuou. Se recostou na cadeira e desviou o olhar para Ladrão.

— Se não for pedir muito... eu queria um dele. Um desenho de Ladrão. Pra levar comigo.

O cachorro levantou a cabeça, abaixou as orelhas. Ladrão era inteligente demais para o próprio bem, Delfim tinha esperado conseguir poupá-lo de um coração partido pelo menos até que a hora chegasse. Com o rabo caído, ele andou até ela e apoiou a cabeça no colo dela.

Delfim daria todos os desenhos todo mundo que ela pedisse, mas não poderia dar um desenho dela pro melhor amigo. Um desenho não desfaria os nós no pelo nem traria doce da vila, não falaria com ele como se fosse gente porque Ladrão era gente — mais do que todos os humanos da ilha juntos.

Mas, no final das contas, não se via capaz de negar qualquer coisa a ela, muito menos quando demonstrava que se importava com aqueles dois idiotas apaixonados por ela. Puxou um desenho do meio da pilha, Ladrão sobre uma pedra com uma espada na boca. O sorriso de Anabela amenizou um pouco o buraco que vinha se abrindo no peito.

— Esse parece bem pronto...

— Ladrão é quem eu melhor desenho.

— Acho que você é só muito bom nisso. Se eu achasse que você pudesse ser persuadido, te contrataria como ilustrador para a minha pesquisa. Só os animais que vimos nos atóis valeriam uma fortuna para enciclopedistas.

— E como seria? Você daria a volta ao mundo pesquisando e me pedindo pra desenhar bichos perigosos dispostos a me matar?

— Sabe... não é uma ideia ruim... — ela disse baixinho, sorrindo para a cabeça de Ladrão.

— Não é mesmo.

Só que era impossível. Entre promessas para irmãos e memórias de entes perdidos, os caminhos seguiriam rotas distintas. Não precisavam falar em voz alta, então o assunto morreu. Delfim pegou aquela semente de sonho e guardou — talvez desenhasse a cena um dia, quando estivesse sangrando de saudade.

Anabela limpou a garganta. Ajeitou os óculos uma vez, e depois outra. Delfim prendeu a respiração.

O silêncio se estendeu. Ela abriu a boca e fechou.

— Fala logo.

— Eu... hm. Deixa que eu interrogo Hermes amanhã.

A decepção escorreu por ele como gema de ovo mole. Delfim detestava ovo mole. Mas se forçaria a comer aquele prato, porque ela provavelmente estava certa em evitar dizer o que queria falar de verdade.

— Tudo bem. Vou estar com você.

— Eu sei. Vamos precisar de Dudalina também. E cordas. E bastante marisco-ardente.

— Anabela...

Continua….

Nas próximas news...

 Semana que vem... sei lá... alguém no pique pra coisas mal assombradas?

 E no próximo capítulo de Areia e Pólvora, desejamos boa sorte pra Anabela MacGyver Argo aprontar o que tem em mente!