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20.000 Histórias Submarinas - Areia e Pólvora #19

 Hoje vindo nesse horário atípico por conta das muitas emoções de se viajar pelo Brasil, onde aparentemente é impossível ir de uma cidade a outra de uma tacada só. Mas o que é umas horinhas de atraso perto de ter atrasado tantos dias, né? E esse capítulo pra compensar ainda é um pouco mais longo que o anterior!

 Atenção, não esqueça de vestir seu colete salva-digitação!

No capítulo anterior...

 O Balaena estava já chegando em casa quando viu que o Arquipélago de Ponta Quebrada estava sob ataque! Delfim e o resto da tripulação lutaram contra o Marieta, mas a que custo! O capitão inimigo morreu antes de dar informações úteis, e Anabela ficou gravemente ferida.

19 — Consulta médica

A cabeça pesava como chumbo. Não tinha forças nos braços e as pernas pareciam desconexas do resto do corpo. Anabela era uma consciência afundando no mar de dor latejante. As vezes abria os olhos, via um teto de madeira e palha iluminado pelo sol, objetos pendurados girando com a brisa criavam rodamoinhos de sonhos durante o período ora acordada ora dormente.

Havia o som de ondas, cheiro de café, gosto amargo de ervas, claridade, lençóis ásperos de uma cama que não balançava. E havia também imagens difusas do rosto de Delfim contorcido de preocupação, do focinho de Ladrão cutucando sua bochecha, da cabeleira de Dudalina tampando o céu azul.

A cama não balançava.

A conclusão de não estar mais no Balaena a instigou a ficar de pé. Se não estava mais a bordo, as opções restantes podiam não ser muito boas. Se ergueu com um sobressalto — ou tentou. Assim que levantou a cabeça uma contração na barriga desengatou pontadas de dor por todo o corpo. Caiu de volta no travesseiro, ouviu o próprio gemido patético e se sentiu pior ainda. A Argo mais inútil da história.

— Ah, acordou.

A voz não era conhecida. A alcançou de algum lugar a sua direita, não delatava grande empolgação e nem muita tristeza. Decepção, talvez.

Se forçando a abrir os olhos através das ondas de uma dor de cabeça chegando, observou os arredores. Estava num quarto entulhado com todo tipo de coisa: bugingangas, estatuetas, vidros com líquidos, livros, caixas, e, mais impressionante de tudo, uma mulher na porta. Ela secava as mãos num pano enquanto a encarava com os lábios apertados numa linha fina, as sobrancelhas unidas numa contração desencorajadora. Os cabelos eram loiros com mexas grisalhas, cheios de tranças e cera de abelha. Era bonita, tinha um porte digno de autoridade serena que Anabela estava acostumada a ver em médicos, mas havia algo mais. Uma familiaridade nos formatos do rosto e no jeito desconfiado de ficar meio de lado.

— Eu conheço você... — sussurrou, sentindo a voz arranhar a garganta.

As feições da mulher tomaram contornos de surpresa e depois voltaram a uma desconfiança mais aguçada do que antes. Não gostou do contorcer dos lábios ou do jeito que ela olhou para algo do lado de fora do quarto, um sentimento de urgência fez Anabela tentar se sentar. Exigiu esforço e concentração e dentes cerrados, mas se empurrou para cima. As pernas estavam estranhas, meio dormentes e meio latejando.

— Nada de ter ideias, mocinha. Eu sou velha, mas no seu estado você não consegue passar por mim — ela disse, colocando as mãos na cintura.

— E eu... preciso... passar por você? — Anabela esfregou o rosto, se dando conta de que tinham lhe deixado dormir de óculos, um pequeno consolo. Acordar e não enxergar nada teria sido desesperador.

De repente, se deu conta de onde reconhecia a mulher. Já a tinha visto antes, desenhada em contornos pretos de carvão em folhas amareladas ao lado de outro homem. O traço tinha sido fiel.

— Você é a mãe dele, não é?

Pensar em Delfim liberou outros tipos de pontadas e incômodos. Aos poucos as cenas de batalha que tinha conseguido testemunhar de dentro do navio foram voltando. Não fazia ideia do que tinha acontecido com ele, e a ausência de Ladrão ao seu lado também era preocupante.

— Ele tá bem? E Ladrão? Duda?

A mulher estreitou os olhos, expirou pelo nariz.

— Desde quando uma prisioneira pergunta por seus captores?

A pergunta ajudou a despertá-la, empurrou para longe a névoa rondando a mente. De repente se viu indignada.

— Desde que eu não sou mais prisioneira, o que você com certeza deve saber já que eu não tô amarrada em lugar nenhum — respondeu seca, dividida entre a dor e a preocupação pela ausência dos três. — Desde que eu salvei a vida do seu filho algumas vezes já e contando, incluindo ter acabado de explodir um inimigo dele.

Ou, era isso que achava que tinha acontecido. Difícil ter certeza.

A mulher bufou, indignada e saiu sem dizer nada.

Sozinha, tentou reconstruir os últimos acontecimentos, mas depois do apito de postos de combate tudo ficava um pouco nebuloso. Ladrão tinha ficado agitado ao seu lado, rosnando para qualquer um que resmungasse sobre sua presença no convés inferior. Se lembrava de ir até o paiol das bombas, preocupada com o risco de explosão.

Tinha alcançado o compartimento bem na hora em que os navios bateram, o impacto jogando tudo que não estava amarrado. Com os costados tão perto, inimigos tinham começado a entrar pelas portinholas de artilharia e de repente todas as mãos tinham se tornado necessárias no combate. Anabela se lembrava de ter se colocado no caminho de um pirata que estava prestes a entrar no paiol, seguindo numa linha reta, quase como se soubesse o que estava ali.

O barulho de madeira arrastando sobre madeira no quarto interrompeu a tentativa de relembrar os acontecimentos. A mãe de Delfim havia voltado, trazendo uma cadeira numa mão e uma tigela na outra. Ela se posicionou ao lado da cama, segurando a tigela da onde saía um vapor com cheiro de comida.

— Ele chegou a te dizer meu nome? Ou só te mostrou aqueles desenhos que ele usa pra impressionar as pessoas?

Anabela sentiu o rosto esquentar sob o escrutínio. De repente a coberta pareceu muito interessante. Os desenhos eram mesmo impressionantes, saber que era uma de muitas pessoas impressionáveis nem tanto. Se lembrou do homem do passado, retratado com mais atenção e detalhes do que qualquer outra coisa ou pessoa no caderno.

— Desenhos.

A mulher bufou de novo, e ofereceu a tigela. O cheiro de peixe e legumes trouxe seu estômago de volta à vida, de modo que preferiu se concentrar na fome ao invés de especular sobre a pontada enciumada no peito.

— Joana Lucas, Vossa Graça Duquesa de Cedro. Não estou a seu dispor.

— Eu não sou uma duquesa, sou uma doutora — resmungou.

— Filhas de duques são duquesas em algum momento do tempo. Se não é agora, será no futuro.

— Vocês por aqui têm fixação com esse assunto ou é impressão minha? — Primeiro os Sem Nome, e de repente a mãe dele também. Chegasse a se concretizar ou não, Anabela não tinha nenhum apego ao título.

— E você fala com ousadia demais para quem passou os últimos dias sangrando nos meus lençóis e consumindo os recursos escassos dessa ilha.

— Bom, devia ter me deixado sangrando então, ia poupar um bocado de dor de cabeça pra um monte de gente.

— Eu teria feito isso mesmo, pra sua informação.

Mas não tinha, e o motivo pairou não-dito entre elas. Anabela enfiou um colheirada de caldo na boca para segurar a pergunta. Devia ser resposta suficiente que Delfim não estava ali, e nem Ladrão. Aliados, sim, e apenas isso. Podia não se lembrar com clareza da batalha e do ferimento, mas o afastamento dos últimos dias estava bem nítido em sua mente. Ele estivera evitando chegar perto, e pelo jeito assim continuava.

Terminou de comer o ensopado, e depois aceitou a botija de água que Joana lhe estendeu. Com a barriga cheia e não suportando mais o silêncio carregado de animosidade, resolveu inspecionar a si mesma. Se ater a praticidade era provavelmente o melhor caminho, puxou a camisa limpa que alguém havia lhe colocado e tentou investigar a extensão dos danos. Ignorou o tsc alto que ouviu ao lado, e foi tateando. A dor que sentia era mais interna, a área enfaixada estava estranhamente sem sensação nenhuma, e os quadris e parte das pernas estavam dormentes. Tentou mexer o pé, ação que se mostrou difícil mas não impossível.

— Você não sossega, garota? Vai abrir a ferida.

— Eu só quero ver como tá.

— Tá o melhor que pode estar, com os recursos que tenho. Eu sou médica treinada, mas acho que o desenho do meu filho não traz essa informação.

— Ah bom, desculpa por estar preocupada com a minha própria saúde depois que a senhora acabou de admitir que preferia me ver morta e—

Os latidos do lado de fora interromperam qualquer sequência de pensamentos coerentes ou possíveis respostas. Viu Joana fechar os olhos com um suspiro e logo depois uma porta se abriu.

Ladrão veio primeiro, o pelo todo desgrenhado e sujo de areia e com a língua de fora. Anabela o recebeu com um abraço mesmo assim, ignorando a dor do movimento e o cheiro de cachorro molhado – descobriu ali que a presença do vira-lata tinha contornos de casa, descobriu o coração batendo mais rápido e cheio de alívio. E concluiu que esconder o rosto no meio dos nós do pelo encardido era um jeito muito bom de fingir não ver a figura ofegante parada na porta, tão parecida com a mulher de cara amarrada sentada logo ali. Se apegou no arfar do cachorro, no rabo balançando, na sensaçao da armação dos óculos apertando a pele. Não queria ver o estado do dono e perceber que estava mais ansiosa ainda para fazer a mesma coisa no corpo dele.

O vira-lata se contorceu até encontrar um pouco de pele que pudesse lamber, babou sua orelha e cabelo até conseguir tirar dela um engasgo meio riso meio vontade de chorar. Nem tudo era ruim quando um bicho mostrava tanto carinho daquele jeito.

— Eu tava preocupada com você, cachorro — sussurrou contra o pelo.

— Só com o cachorro? — Delfim perguntou, um pouco mais perto da cama.

A pele se arrepiou toda com a pergunta, com a voz rouca. Arriscou olhar um pouco pra cima, e perdeu o fôlego.

— Ah mas essa é boa, eu criei meu filho pra ser homem carente! Que desgosto, vou te contar. — Joana ficou em pé de repente e o agarrou pelo braço. — Anda, deixa de ser trouxa e sai daqui que você vai perturbar a paciente.

Delfim não se mexeu. Depois de Anabela olhar pra ele não conseguiu mais não olhar. Estava inteiro, com alguns cortes e hematomas aqui ali. Sem camisa e com todas as tatuagens à mostra, molhado e sujo de areia também, trazendo numa mão um saco de rede cheio de conchas. A visão fechou sua garganta, trouxe as lágrimas um pouco mais perto de transbordar, porque ela reconheceu a espécie ali dentro.

Apontou para o conteúdo com o queixo. Ele concordou com a cabeça.

— Eu lembrava de como parecia, o marisco que pega fogo e serve de anestesia, mas a gente não sabia direito o tamanho e... — Delfim limpou a garganta. — Dudalina se guiou pelo que eu descrevi que você fez, e minha mãe nunca tinha usado, a gente fez o que deu. Depois você tem que ensinar como faz.

— Ela não tem que me ensinar nada! — resmungou Joana — Eu tinha condições de tratar dessa ferida sem nenhuma anestesia nova.

— Funcionou? — ele perguntou, dando um passo mais pra perto da cama. — Ou tá doendo?

Anabela tocou a barriga. O uso do marisco-ardente explicava a dificuldade de mexer as pernas. Se forçou a engolir a emoção. Era besteira e não significava nada, ninguém em sã consciência gostava de ver uma aliada sentindo dor. Ela tinha feito a mesma coisa por ele quando ainda nem estavam de acordo.

— Funcionou.

— Anabela...

— Já chega! Já chega! — Joana se colocou entre os dois e começou a empurrar o filho pra fora. — Eu não sou obrigada a ver isso. Vai se lavar e faz o favor de tirar esse cachorro sujo daqui.

Ladrão se enterrou mais contra o corpo de Anabela, enfiou o rosto por baixo de seus cabelos e chorou baixinho. Joana suspirou e se contentou em levar Delfim embora, que por fim se deixou levar.

As vozes sussurradas de mãe e filho se afastaram, uma porta se fechou. Se deixando cair, se ajeitou melhor com Ladrão na cama e esperou. Não demorou para a exaustão do próprio corpo e o calor do cachorro a embalarem de volta para um sono inquieto.

*

Quando acordou já era de noite. De Ladrão tinha ficado só o cheiro. E Joana Lucas estava novamente ao lado da cama, trazia uma bacia larga e panos pendurados no braço.

— O que você veio fazer aqui, de verdade? — ela perguntou, apoiando a bacia na beirada da cama.

Com um suspiro, Anabela se sentou. O movimento nas pernas estava mais fácil, e a dor na barriga mais presente.

— Não te contaram? Seu filho roubou meu navio, me fez de prisioneira e ia me usar como moeda de troca para resgatar sua filha. Diria que nessa história, eu sou justamente quem não veio fazer nada aqui.

— Mas você não é mais prisioneira.

— Não sou. Felizmente Delfim não é burro e percebeu que eu sou melhor como aliada.

Ela revirou os olhos.

— Ah meu filho é bem burro, sim, e tenho certeza que ‘aliada’ não é o que ele tá pensando. Mas o que você tava fazendo nos Mares Esquecidos? É raro ver um navio sorrense aqui.

— Eu não estava exatamente nos Mares Esquecidos quando aconteceu, estava rumando para Porto Aveiro. — Anabela deixou cair os ombros ao ver que ela não gostou da resposta. — Eu estava só viajando em expedição científica.

— Argos são conhecidos por viajar. — Joana balançou a cabeça devagar, mergulhou um pano na bacia cheia de água e o torceu. — Também são famosos por serem os arautos das ambições dos Arundel.

— Eu não entendi onde você quer chegar...

Apesar das palavras, sentiu seu estômago se revirar de nervosismo. Talvez tivesse entendido, talvez as notícias tivessem se espalhado para muito além do reino, talvez a mensagem que mandara para Castro tivesse sido decodificada.

— Duzentos anos atrás o primeiro rei Arundel mandou a primeira duquesa Argo por sobre o mar para conquistar a Ilha de Cedro para Sorra. E assim ela o fez, não foi?

— Num grande resumo, sim...

Joana deixou o pano úmido cair em seu colo e se sentou na cadeira. Anabela tirou a camisa com cuidado e começou a se limpar. Era a consulta médica mais estranha de sua vida.

— Cem anos atrás os astrônomos da Guarda do Sol precisaram de vidros especiais e mandaram os Argo atrás de areias especiais, não mandaram? E depois minério? E então madeira? E qualquer outra coisa? Sempre que os Arundel decidiam que queriam alguma coisa de além-mar, os Argo entraram em seus navios e percorreram o mundo, não foi?

— Junto de outros, sim.

— E, hoje, seu irmão é o Capitão de Mar e Guerra de Sorra, não é? O maior caçador da piratas do mundo moderno?

— A senhora, pelo jeito, já é bastante familiarizada com o que se passa no Reino de Sorra e não parece precisar das minhas respostas. Por que você não me diz logo o que tá pensando?

— Sabe... Nero não é o primeiro homem com delírios de grandeza que eu e os meus enfrentamos. Tem sido difícil, mas mais cedo ou mais tarde a maré vai virar a nosso favor. Piratas não são muito bons em trabalhar juntos, e é só questão de tempo até o maldito aprender isso do jeito difícil. A sua presença aqui é que me parece muito mais perigosa.

— Eu não sei se você percebeu, mas eu não tô aqui por minha escolha.

— Escolha do seu rei, então? Os Argo sempre foram os desbravadores marítimos dos Arundel, e os Mares Esquecidos são o último pedaço verdadeiramente livre desse lado do mundo. Você é inteligente, o que essa situação parece?

Anabela revirou os olhos. Se ela não havia falado em princesas, pelo menos a mensagem parecia não ter sido entendida.

— Eu não vim colonizar ninguém. Pra quem parece conhecer a história de Sorra, você não prestou muita atenção nos fatos históricos.

— Deixa esse seu sarcasmo de lado para falar comigo, garota. Colonizar, explorar, tudo a mesma coisa. Nesse exato momento seu irmão deve estar vindo para cá com a maior frota que os Mares Esquecidos já devem ter visto, e eu não vou permitir que um rei distante se imponha sobre essas ilhas.

Anabela riu sem sentir humor algum.

— E de quem você acha que é a culpa disso? Eu estava verdadeiramente apenas navegando, completando a tradicional circunavegação que todos os Argo fazem, quando fui roubada e sequestrada. Se seu filho tivesse me deixado ir quando teve a chance, e foram várias, a essa altura ninguém estaria vindo de Sorra para me resgatar.

— Não importa de quem é a culpa. Fato é que estão vindo com uma força de guerra.

— Que bom pra você então que Delfim aceitou minha proposta de aliança.

— Não tente me convencer que—

— Que os Arundel não têm o menor interesse em dominar esse pedacinho de terra molhada? Eu não preciso te convencer de nada, o tempo vai se encarregar de provar que Sorra tem seus próprios problemas pra se preocupar. Já eu, estou preocupada apenas em continuar viva pra poder voltar pra casa.

— E seu irmão vai navegar em meio a tantos piratas e não fazer nada?

— Muito provavelmente, se me encontrar sã e salva. Que bom que a senhora não me deixou sangrar até a morte nos seus lençóis, né?

Joana Lucas a observou por um longo tempo. Parecia estar pensando, parecia estar com raiva. No final das contas, Anabela entendia, e por mais que tivesse certeza que os medos dela eram infundados, lhe concedeu internamente que estava com a razão. Eram preocupações razoáveis para alguém na posição dela. Havia muitas histórias não contadas ali, de ambas as partes. E a verdade era que Castro muito em breve estaria numa posição de tomar decisões daquela natureza — isso se ela conseguisse tirá-lo dali inteiro e com a mente sã. Não haveria casamento algum se o noivo continuasse obcecado por vingança.

Terminou de esfregar a parte de cima do corpo, tomando cuidado com o emplastro por cima da ferida na barriga. Mais tarde teria que tomar coragem para olhar o estrago. Devolveu o pano e aceitou uma nova camisa limpa.

— Se os Argo, ou os reis de Sorra, tivessem qualquer interesse nesse lugar, pode ter certeza que as intenções não seriam manifestadas através da minha pessoa. Eu sou filha de um duque, e sou uma cientista, dois fatos que me colocam numa posição privilegiada mas bem menos importante do que você imagina. — Pelo menos naquele momento.

— Posso imaginar você usando esses argumentos bonitos com meu filho — ela disse.

— Bom, Delfim pelo menos é sensato suficiente para ouvir alguém que salvou a vida dele.

— E o levou a se arriscar por atóis amaldiçoados e a usar os Quatro Sem Nome para mandar mensagem a alguém tão perigoso quanto Nero.

— Eu já entendi, eu sou uma péssima influência sobre seu filhinho. Mas se serve de algum consolo, não fui eu quem o traiu e nem fiz ele a tomar pérolas de Cassis, pelo menos.

— Pode ser que não, mas não muda o fato que você continua sendo a pior coisa que já aconteceu com meu filho.

Anabela ficou de novo sozinha, mas dessa vez o sono não veio. Por mais que entendesse, as palavras continuaram parecendo um tapa.

*

Dudalina chegou na manhã seguinte com comida e cadernos e um falatório que foi muito bem-vindo.

— Chuchu você tá com uma cara horrível!

— Viva e insone, melhor que muita gente — Anabela resmungou.

— Verdade, e ainda por cima é uma mulher de sorte! Eu burlei sua médica rigorosa e trouxe as melhores iguarias que alguém hospedada no Calango pode comer!

— Vocês avisaram a dona Joana que eu sou hóspede? Pra ela eu ainda sou prisioneira e inimiga.

A gargalhada alta da contramestre encheu o quarto e penetrou as camadas de mau humor que tinham se estabelecido durante a noite. Dudalina a ajudou a se ajeitar na cama e colocou tudo que trouxe entre elas, se sentando na beirada.

— Meu bem, toda nora é uma inimiga em potencial pra sogra.

— Só que eu não sou nora dela — disse tanto para Duda quanto para o próprio coração, que resolveu escolher aquele momento pra bater descompassado.

— Um mero detalhe técnico e temporário. Do jeito que Delfim ficou, ela sabe bem o que você é ou deixa de ser.

— Eu me recuso a conversar sobre isso.

— Ah eu também acho que não vale a pena discutir pontos já pacificados.

— Mas isso não-

— Shh-shh. A gente tem coisa mais importante pra falar! Enquanto você convalesce, você precisa me dizer o que faço pra continuar o trabalho com as bombas. Vai, comendo e falando. Citar umas fórmulas químicas vai te fazer bem.

— Não, mas calma aí... primeiro me conta. O que aconteceu?

Dudalina lhe entregou um pedaço de bolo e pegou um pra si, falando de boca cheia.

— Eu não sei direito também. Tava todo mundo focado na batalha. Depois da explosão o pessoal da artilharia trouxe você pra cima sangrando muito, Ladrão desesperado. Tinha um pedaço de madeira enfiado na sua barriga. Falaram que teve uma invasão pelas portinholas, e que você ajudou na defesa do navio lá dentro. Na verdade... — Dudalina franziu a testa e puxou um cacho pra enrolar na ponta do dedo. — Na verdade, pelo que disseram, você tava defendendo o paiol do material das bombas.

— Isso... isso!

A cena voltou de repente. O pirata tinha ido na direção do paiol, em linha reta, ela e Ladrão se colocaram no caminho dele. Na briga, acabaram caindo para dentro do compartimento e arrebentado uma das amarrações das bombas. Anabela se lembrou de correr para impedir que elas caíssem no chão, e nesse momento o homem se aproveitou para pegar uma.

— Ele tentou sair do navio com um dos protótipos. Eu e Ladrão nos jogamos em cima dele... eu fui empurrada pra longe e ele escapou pela portinhola pro outro lado, mas levou um tiro e de repente tudo explodiu. O tiro deve ter ativado a carbotina dentro da bomba.

— Que sorte a nossa!

— É, mas... Duda, como ele sabia do paiol cheio de bombas?

— Bom... Hermes. Só pode ter sido ele, o traidor desgraçado.

— Mas Delfim não conseguiu impedir que ele encontrasse com Nero?

Dudalina girou e girou e girou o cacho, engoliu o bolo, e então concordou com a cabeça.

— Pois é, chuchu... parece que temos mais de um traidor no Balaena.

Continua…

Nas próximas news...

 Não faço ideia, meu cérebro virou pudim depois dessa semana intensa. Sexta que vem vai ser surpresa.

 Abraços e bom final de semana!