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20.000 Histórias Submarinas - Areia e Pólvora #18

Eu sei, faz tempo. A vida aconteceu nos últimos meses e eu ando enfrentando minhas próprias batalhas navais no retorno ao trabalho presencial.  Mas, no final das contas, essa história é meu refúgio e voltar pra ela era justamente o que eu precisava.

Escrevi um textão enorme aqui e apaguei porque acho que não é o melhor momento. O que importa é que finalmente terminar de editar esse capítulo encheu meu pulmão de ar fresco, e espero que a volta da história faça alguma coisa por vocês também.

E antes tarde do que nunca, nossa tripulação favorita e Ladrão estão de volta. Não falta muito pro final...

Mas por enquanto, fiquem com mais um capítulo dessa aventura!

Atenção, não esqueça de vestir seu colete salva-digitação!

Nos capítulos anteriores...

 Como faz bastante tempo, vamos resumir do início!

 Delfim Lucas é o capitão do navio pirata Balaena que vinha lutando contra as ideias de dominação de Nero. Ferido e buscando aliado para manter os Mares Esquecidos livres de um rei, ele cruza caminhos com Anabela Argo, uma cientista de família nobre num reino distante que está viajando o mundo em busca de recuperar o que perdeu após a morte do irmão. Pela coincidência do destino, seu irmão foi assassinado por Nero. Entre sequestros e negociações arriscadas enquanto cruzam os Mares Esquecidos, os dois percebem que vale mais a pena serem aliados contra o inimigo em comum.

 Na Ilha de Porto Baleeiro, enquanto conduzem reparos no navio e constroem as bombas que vão usar como arma secreta, se torna impossível ignorar o comportamento de Hermes, o imediado do Balaena. Delfim e Anabela o seguem e descobrem que ele está tentando passar uma mensagem para Nero através do misterioso grupo dos Quatro Sem Nome.

 Os Quatro Sem Nome fazem uma proposta misteriosa para Anabela, a tratando como se fosse a Duquesa de Cedro. Cada vez mais consciente de que a vida vai levá-los por caminhos diferentes, Delfim vai sozinho impedir que Hermes se encontre com Nero enquanto a mulher Sem Nome leva Anabela em segurança para o navio.

 Delfim intercepta Hermes e os dois lutam, colocando para fora mágoas e rancores acumulados ao longo do tempo. Com a ajuda dos outros Sem Nome, Hermes é contido e Nero não é contactado, deixando Delfim tendo que decidir o que fazer com um amigo traidor e com os sentimentos difíceis por Anabela.

18 — Chegando em casa

O Balaena nunca pareceu tão pesado. Cortava as ondas na velocidade de sempre, mas o imediato preso nas celas do convés inferior puxava o casco pra baixo. Delfim quase conseguia ouvir os gritos de Hermes, o engolir em seco da tripulação, os sussurros dos prisioneiros do último motim. Muito pouco estava segurando o navio junto e ele nem mesmo tinha certeza do que era essa cola frágil. Madeira gasta, cordas encardidas, indignação e talvez um pouco de saudade de casa.

Saudade de casa, pelo menos, ele podia resolver. Apesar do arquipélago ainda não despontar no horizonte, estavam perto. Logo veriam surgir as primeiras pontas das ilhas, um pequeno consolo. Se respirasse fundo a memória trazia a mistura de cheiros com a maresia, os contornos de um mundo isolado de todo resto e precioso por isso, um refúgio livre, um lugar seguro. A vila do Calango era um símbolo nos Mares Esquecidos. Não tinha nascido ali, mas bem que poderia — os anos no sul pareciam outra vida.

Delfim pertencia à vila do Calango tanto quanto pertencia ao navio, perdera e derramara sangue por aquele pedacinho de terra cheia de coqueiros. Levar Anabela para lá talvez fosse um erro, mas ele já vinha acumulando burradas como peixes numa rede de malha fina e talvez aquela não fosse a maior de todas. Chegar em casa sem Loani e tendo que contar aquela história cada vez mais longa para a mãe não era o cenário que tinha imaginado para o retorno ao Calango.

Isso se ela já não soubesse. As notícias ruins muitas vezes viajavam mais rápido que o Balaena.

Tinham juntado o que podiam em Porto Baleeiro e partido antes que chamassem atenção demais, antes que Nero pudesse atacar — não que não tivesse lhe dado um golpe duro com a traição de um amigo antigo. Talvez fosse parte do plano do maldito, carcomer a tripulação de Delfim aos poucos até ele estar completamente só.

Como se em resposta aos pensamentos pessimistas, uma mordidinha na mão o despertou do devaneio. Fez um carinho na cabeça do cachorro, aceitando o apoio e tentando oferecer algum em troca. Ladrão caminhava ao seu lado, mas não em estado muito melhor de espírito, as orelhas e o rabo caídos. A verdade era que estavam os dois perdidos, enredados naquela mulher impossível de tão inteligente e, entre ele e o cachorro, Delfim não tinha a menor dúvida de quem ela gostava mais. De tempos em tempos o vira-lata resmungava baixinho, e olhava para o mastro principal onde Anabela e Dudalina estavam penduradas trabalhando nos sacos aéreos.

As duas queriam fazer o navio voar de novo, melhorar as condições de combate e pareciam estar fazendo bom progresso. Ele não tinha como saber — desde que haviam partido a comunicação andava difícil. Não sabia o que fazer com o bolo de sentimentos entalado na garganta, com o tempo contado até ela ir embora e muito menos com o gosto de quero mais deixado pelos lábios macios num acordo que talvez não devesse ter aceito. Era um fato que precisava da ajuda dela contra Nero, porém ali por baixo de tudo começava a suspeitar que havia concordado com a proposta porque só precisava dela mesmo, e aí estava o grande problema. Dudalina, promovida a imediata, tinha sugerido fazer Anabela contramestre e bastara um olhar como resposta para o assunto morrer. Delfim já teria trabalho suficiente para colocar ela pra fora do próprio sistema, não precisava enraizá-la ainda mais no navio. Tinham um acordo, e com o acordo cumprido ela voltaria para Sorra e esse seria o fim. Nada mais de negociações absurdas ou abraços roubados em perseguições inesperadas.

Não importava que de vez em quando Anabela parecia querer se aproximar e desistia, não importavam os olhares decepcionados que ela lhe dava ou que ele estivesse com o peito apertado em antecedência. Assim que chegassem em Ponta Quebrada ficaria claro o quão diferentes eram os mundos de cada um, seria mais fácil botar um fim naquela dança que tinham começado em algum lugar entre Porto Aveiro e os Atóis. Quando Nero virasse comida de tubarão, o único ponto de conexão entre eles estaria morto e esquecido e só as páginas desenhadas no caderninho dentro do bolso seriam testemunhas de algo mais além de um trato firmado entre um pirata qualquer e uma cientista duquesa de família mais do que complicada.

O apito do vigia — o sinal de um ataque — cortou o ar carregado como uma faca.

Mesmo antes de levar a luneta ao rosto, um sentimento de desespero desceu seco pela garganta. A certeza de que Nero os tinham alcançado martelou de dentro pra fora, ameaçou quebrar qualquer pretensão de controle que tinha.

A lente mostrou não o inimigo temido, mas outro tão ruim quanto.

Exatamente no ponto entre a Ilha Rasa e a Ilha do Calango, as duas maiores de Ponta Quebrada, estava a Marieta. Uma caravela de velas vermelhas, comandada por Canera, braço direito de Nero. A nau ia com as velas cheias pela água, prestes a entrar no canal.

— Ela tá abrindo as portas de artilharia! — Dudalina exclamou, já não mais no mastro.

— Postos de combate! — Delfim gritou, saltando para o convés superior. – A todo pano para interceptar!

Uma aflição súbita o fez parar, correndo os olhos pela confusão no convés. O coração foi até a boca ao não ver nenhum sinal da cabeleira escura balançando ao vento.

— Eu levei ela pra baixo com Ladrão. — A contramestre ofereceu um sorriso fraco, a testa franzida na direção da Marieta. — Não vamos conseguir chegar a tempo.

— Ela é pesada e vai perder velocidade no corredor entre as ilhas, não vai conseguir manobrar pra encontrar o Balaena de frente.

— Chefe…

— Dudalina, você é a minha pessoa de confiança agora, quer dizer que é a alma da tripulação também. Sabe disso, não sabe? Vamos ficar firmes. Nem que a gente tenha que lancear aquela popa com o Balaena…

Ela inspirou fundo e a expressão endureceu, um rochedo a bordo.

— A Marieta vai a pique hoje mesmo — Dudalina completou. Quando se virou para o resto da tripulação, toda a hesitação havia sumido. — Postos de combate, seu bando de preguiçoso! A gente tem um navio pra afundar!

O tempo escorreu ao redor de Delfim, marcado pela aproximação ao inimigo. A Marieta era letal, mas também lenta — essa era a chance que tinham. A cada milha mais próxima, expulsou de si todos os outros pensamentos. Era a hora de ser um capitão de verdade, e essa era a única hora que contava. Se fosse julgado pelos santos depois de morrer, que ficasse satisfeito consigo mesmo.

A caravela entrou no canal entre as ilhas e começou a atirar nos pequenos amontoados de construções, areia e madeira voaram com sua passagem. As velas inimigas foram içadas para melhor controle do timoneiro e com a perda de velocidade o Balaena conseguiu se aproximar.

— FOGO! — Dudalina gritou do timão.

Os tiros fizeram todo o navio tremer, madeira e metal vibraram com a fúria dos gritos de frustração da tripulação. O casco adversário era duro e a artilharia de proa do Balaena não era a mais forte que tinham. Precisavam se aproximar, precisavam abordar. Pela luneta, Delfim viu Canera o encarando de volta, acenando como se o encontro fosse uma feliz coincidência.

— LEME A BOMBORDO! — Delfim gritou, mas Dudalina já estava adiantada na manobra.

— Chefe… — chamou um dos moleques da vanguarda de abordagem — Eles tão navegando sem esbarrar em nada.

— Eu sei.

Os canais no arquipélago eram difíceis de passar sem encalhar, agregados de pedras e corais rasgavam a superfície na maré baixa e ficavam a espreita na maré alta. Apenas um timoneiro experiente na região saberia por onde passar sem emborcar.

— Alguém traiu o arquipélago.

A conclusão do garoto saiu num sussurro, não precisava ser dita em voz alta. Todos à bordo sabiam que mais uma traição tinha sido cometida. Alguém mais tinha sucumbido a Nero e revelado os segredos dos canais do arquipélago.

— Mas chefe, olha! Ele não embicou pra bombordo! — Dudalina apontou para frente. — A Marieta está indo em linha reta, não sabem da abertura.

Os dois trocaram um olhar. Só havia uma única estratégia possível, mas podia ser o suficiente.

Delfim apertou o ombro do garoto ao seu lado.

— Nesse caso, é hora de afogar alguns traidores. Preparem as velas!

Levantou o outro braço e fez um sinal. Dudalina não precisou de mais instruções. Assim que entraram no canal, ela conduziu o navio na manobra para virar. Ao chegarem na passagem escondida no meio da Ilha Rasa, pegaram o corredor de vento por bombordo. O inimigo pego de surpresa perdeu o timão por um momento enquanto o Balaena deslizou até ficar entre o Marieta e a Ilha do Calango, servindo de escudo onde ficava a maior das comunidades.

— CANHÕES DE BOMBORDO! — Dudalina gritou.

— GANCHOS E ESPADAS! VANGUARDA AO MEU SINAL! — chamou Delfim, se preparando para saltar. — Duda, os corais depois da Rasa!

— Tá comigo, chefe! ARTILHARIA DE CONVÉS! ATENÇÃO NO MASTRO!

Os marinheiros da frente de ataque se aglomeraram para o salto conjunto, os artilheiros no mastro atiraram para dar cobertura. Ele sentiu falta dos latidos de Ladrão junto, mas não era hora de pensar com quem o vira-lata estava, de pensar no que aconteceria com Anabela se fossem derrotados ali.

Delfim juntou o bolo de emoções, a raiva e a fúria de tantos dias e a indignação pelo futuro.

— ABORDAAAR!

A chuva de ganchos voou sobre o mar. Delfim foi na frente, como tinha que ser. Cada baixa infligida seria um a menos para prejudicar sua família, para ferir Anabela depois. O convés do Marieta virou um turbilhão de aço e tiros e sangue. Abrindo caminho por entre inimigos, procurou por Canera, cortando e atirando e sentindo um pouco do prazer sombrio de se entregar a selvageria. Talvez Anabela devesse vê-lo naquele instante, ver que seria melhor ir embora o quanto antes.

Alcançou o capitão quase ao mesmo tempo que os navios passaram pela ponta da Ilha da Rasa, uma extensão comprida de areia traiçoeira escondendo os recifes de corais. Canera lhe sorriu com arrogância, então devolveu a gentileza. Sabendo o que viria a seguir, se preparou para o impacto.

Dudalina guinou o Balaena e abalroou a Marieta. Um estrondo fez tudo tremer. O sorriso do capitão desapareceu quando foi jogado para trás. Delfim se aproveitou do impulso para cair por cima de Canera, já com a espada pronta.

— Você tá louco, moleque?! Vamos os dois encalhar! — Canera gritou, batendo a espada com a dele.

Se seguraram no mastro, o mundo ficando cada vez mais inclinado. Pouco a pouco, com o ranger inconfundível, o Marieta começou a se inclinar. O Balaena continuava empurrando e com as velas içadas a caravela não conseguia escapar.

— Você vai encalhar, eu vou esperar a maré! Da próxima vez que for atacar Ponta Quebrada, arruma um traidor que saiba navegar de verdade por essas águas.

Ao longe, as ordens de Dudalina para os canhões inferiores ecoaram. Atirando e empurrando, o Balaena jogou a Marieta contra a barreira de corais e expôs a lateral do casco. Canera bufou e o momento de conversa acabou. O convés tremia a cada tiro de curta distância, o mundo virou um borrão para além de onde as armas se chocavam.

— Você não cansa… de fazer… o trabalho sujo… de Nero? — Delfim perguntou entre golpes, tentando encurralar o velho.

— Você não consegue nem… imaginar… a visão do Rei Pirata, moleque. — Canera se apoiou contra o mastro, ofegante.

— Consigo. E repudio. Piratas não têm rei!

Canera gargalhou. A barba grisalha balançando.

— Você é pior do que teu pai, garoto. A essa altura, teu pai já tinha percebido. Mais amigos do que você imagina já se curvaram a Nero... Aquela sua irmã bonita já viu—

Uma explosão cortou a frase no meio, e emborcou de vez o Marieta.

Os gritos de ambas as tripulações encheram o ar junto de fogo e fumaça, se misturaram ao rangido de madeira se partindo e metal entortando. Delfim se agarrou no mastro enquanto Canera foi catapultado por tábuas voando, bateu a cabeça contra a balaustrada e despencou como um peso morto até se chocar contra os recifes de corais expostos pela maré baixa.

 Aquela sua irmã bonita viu. A frase ricocheteou dentro do peito, tirando lascas de medo e desespero, o enchendo de incerteza.

Se içando para cima do mastro, viu piratas inimigos fugindo e sua tripulação perseguindo. Os tubarões que circulavam os recifes já se aproximavam. Era um cenário que já tinha visto muitas vezes antes. E Loani também tinha visto alguma coisa.

— Delfim!

Loani, que lhe oferecera a Pérola de Cassis.

— Delfim! CHEFE!

Loani, apaixonada por Hermes.

— DELFIM!

A urgência no grito distante de Dudalina o alcançou. Os ganidos de Ladrão vieram logo em seguida, o sacudindo por dentro mais ainda. Não deveria estar ouvindo latidos porque ele estivera em segurança na cabine com Anabela.

Escalou o convés virado através de cordas e pedaços quebrados, o coração na garganta ameaçava pular pra fora. Quando galgou a balaustrada e se equilibrou na amurada teve a visão do que tinha acontecido. O Marieta estava partido ao meio, chamas alaranjadas e água salgada disputando a metade da popa. O costado do Balaena estava chamuscado mas tão intacto quanto poderia estar depois de um embate casco a casco. Porém, tudo isso virou ruído, uma cena indistinta.

Ladrão corria e chorava ensandecido em volta das duas. Dudalina pressionava as mãos sobre uma poça de sangue na barriga de Anabela, desacordada.

Continua…

Nas próximas edições...

 Essa com certeza não era a chegada que Delfim esperava. Insinuações de traição e Anabela ferida. Tem coisas que nem Ladrão dá jeito... No próximo capítulo, vamos conhecer alguém importante, e esperar que fique tudo bem!

 A parte oceanográfica da News estou pensando ainda, mas vai ter também!

 Abraços e bom final de semana!