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20.000 Histórias Submarinas - Areia e Pólvora #16

 Eu confesso, semana passada não teve newsletter por motivos de: Bridgerton. Gastei toda minha energia surtando e comentando. Mas, agora que isso está no passado voltamos à programação normal (ou quase). No momento estou com algumas outras atividades prioritárias então a newsletter pode sofrer alguns imprevistos, mas nada que uma navegadora experiente como eu não consiga resolver. Então, fiquem com o capítulo de hoje de Areia e Pólvora!

 Atenção, não esqueça de vestir seu colete salva-digitação!

Nos capítulos anteriores...

 Com antídoto tomado e braço recuperado, Delfim leva Anabela para Porto Baleeiro, onde enfim vão poder transmitir uma mensagem para seu irmão, Castro. A cidade a encanta o suficiente para contar ao pirata um pouco de si, e de sua perda, e depois de usarem os serviços das quatro pessoas mais estranhas que ela já viu, os dois finalmente chegam a um novo acordo. Delfim não vai usá-la como moeda de troca para resgatar Loani, e Anabela vai construir bombas a partir do pó que enganaram contrabandistas para obter. O trato, é claro, é selado com um beijo.

16 - Segredos do imediato

Manusear o pó de calonita exigia cuidado, concentração. Não era a hora de explodir nada, principalmente quando Dudalina estava conseguindo dar jeito em alguns dos problemas do navio. Também não era hora de ficar pensando no beijo. A memória se infiltrou mesmo assim, quando Anabela sentiu o olhar do capitão sobre ela.

Delfim mergulhou em sua boca como se ainda estivesse morrendo de sede da calmaria. Ela era só um pouquinho mais alta, e alguma parte visceral dentro de si lhe avisou que o encaixe era, ou seria em algum outro momento, perfeito. O entendimento devia ter passado dela para ele, porque os movimentos se tornaram mais famintos. A mão em sua cintura agarrou o tecido da camisa como se pudesse arrancar sua roupa a qualquer momento, e ela se inclinou ainda mais contra ele, fincou os dedos no pescoço e se imaginou traçando ali uma nova tatuagem.   

 Aos poucos, Delfim os obrigou a diminuir o ritmo. Trocou a exploração impiedosa de sua boca por movimentos mais lentos, embora não menos intensos. Usou as duas mãos para segurar a cabeça dela no lugar, e mordeu o lábio inferior numa puxada suave que prometia mais.

 — Viu? Eu mordo — ele sussurrou contra sua boca antes de se afastar.”

Inclinado na balaustrada do convés principal, do outro lado do navio, ele desenhava no caderninho, de tempos em tempos levantando a cabeça na direção dela. A curiosidade pelo resultado final queimava na garganta, formigava com a lembrança da mordida. Parecia impossível não pensar, não se arrepiar com a ideia de que fora só uma amostra.

Foi então que, entre a produção de bombas e a questão da máquina de fazer água, Anabela encontrou espaço para uma nova teoria. O beijo de Delfim Lucas era diferente de todos os outros que já tinha experimentado na vida — até aí tudo bem, ficava mais do que satisfeita em descobrir coisas novas. O problema, claro, era que nenhuma cientista podia fazer afirmações com o desenho amostral de uma única unidade de beijo, e portanto, precisava de outros pra ter certeza. Como conseguir isso sem parecer uma boba se jogando aos pés dele era o desafio.

Na vez seguinte que o capitão ergueu o rosto, os olhos dois se encontraram e um sorriso convencido se espalhou pelo rosto dele. Teve vontade de ir até lá, arrancar o caderninho das mãos dele, lembrar que seria conveniente tratá-la com mais respeito. Dois dias haviam se passado, e a maioria de suas interações tinha se reduzido àquela troca silenciosa.

De repente, a mão de Dudalina surgiu na frente de seu rosto e estalou os dedos.

— Meu chuchu, acho que nunca te vi tão distraída assim. Tu era mais atenta quando achava que a gente ia te entregar pra Nero.

— Eu não achava, eu tinha certeza que vocês iam me usar de mercadoria. — Ela se forçou a olhar pra mesa de trabalho que tinha improvisado. Tinha preferido fazer os testes ao ar livre.

— Nada… do jeito que você e o chefe ficam se olhando, tu acha mesmo que ele ia deixar algum mal ser feito a você? Tu salvou a vida dele, e agora pode ser que esteja salvando todos nós, com o que quer que esteja fazendo. — O tom de Dudalina mudou no final, o olhar incisivo com a pergunta não dita.

Envergonhada, Anabela continuou trabalhando, solidificando a calonita com diferentes proporções de água até chegar na mais equilibrada para receber outros catalisadores. Tinha convencido Delfim a manter segredo sobre os explosivos por um tempo, a praça d’armas e a tripulação só fora informada que ela era oficialmente uma aliada do Balaena e ia ajudar a produzir uma carga valiosa. Não se incomodava de contar para Dudalina, era em Hermes que não confiava. Ou, era Hermes que se recusava a aceitar que ela fosse capaz de servir para qualquer outra coisa que não prisioneira a ser entregue a Nero.

— Você conseguiu as coisas da lista que eu te dei?

— A maioria. Pólvora é sempre fácil, engrenagens e parafusos também, mas o resto tô esperando uns contrabandistas amigos responderem… — A contramestre mordeu a bochecha. — Alguns estão receosos. Não sabem ainda se devem ficar do lado do Balaena nessa história, principalmente depois da mensagem que vocês transmitiram.

— Ah.

— Eu garanti que Castro Argo não faria nada a eles, mas… não sei se estou falando a verdade…?

— Está, sim.

Ela se certificaria disso. A mensagem já devia ter chegado a ele, ou pelo menos a Márcia em Porto Aveiro, então sabiam que ela estava viva e bem. Castro não era o tipo de pessoa que atirava primeiro e fazia perguntas depois, era após as respostas que ele se tornava mais perigoso, por isso garantiria que seria a primeira falar.

— Os relatos dizem que uma frota de quatro está se aproximando dos Mares Esquecidos. Velas azul-marinho.

Duvidava que fossem apenas quatro navios, mas preferiu não dizer nada e fingiu não ver a expectativa no rosto dela. Não havia utilidade em assustar Dudalina ou em arriscar que uma informação valiosa como aquela fosse repetida pela tripulação. A julgar pela rotina que ele obrigava a frota Argo a manter, e pela disponibilidade dos capitães de confiança de Castro, não devia haver menos do que oito. Se ele tinha decidido disfarçar uma parte não seria ela a delatar a estratégia do irmão.

Dudalina bufou, resmungou alguma coisa que ela não entendeu e foi para dentro do navio. Uma pontada de culpa moeu Anabela, não estava sendo uma aliada muito sincera.

— Ela entende, não precisa se preocupar.

O focinho de Ladrão se enfiou em seu colo, e de repente Delfim estava logo ali. Ele observava a porta por onde a contramestre tinha entrado. O caderno de desenhos já guardado fora de vista.

— Se a situação fosse inversa, ela faria a mesma coisa. Dudalina não anda confiando muito em Hermes.

Meio aliviada por ele ter interpretado que se tratava apenas do segredo que estavam mantendo do imediato, Anabela concordou com a cabeça. Não havia a menor necessidade de Delfim saber das movimentações usuais de Castro, ele não era o inimigo. Ou, logo deixaria de ser.

— Dudalina é a pessoa mais inteligente do navio.

— Sim, você já disse isso.

— E depois dela, vem Ladrão. — Afagou a cabeça do cachorro, enfiando os dedos atrás dos nós que gostava de desfazer no pelo.

Delfim retribuiu seu sorriso torto com um revirar de olhos, e então apontou a mesa com o queixo.

— Como andam os experimentos?

— Razoavelmente bem, mas seria melhor um lugar mais tranquilo pra trabalhar.

— Mais uns dois dias e vamos pra casa, lá você vai ter paz e espaço.

Casa. Casa estava há meio oceano de distância, e embora desejasse voltar, ao ouvir o tom saudoso na voz dele Anabela descobriu que não estava sentindo falta de Cedro. A ilha tinha as melhores e piores memórias de sua vida, e lá não conseguia separar os dois tipos, tudo era uma massa disforme que a incapacitava de raciocinar com clareza. Ali, improvisando experimentos e desenvolvendo teorias sobre beijos de piratas abusados, chegou a uma nova teoria — estava viva, e era vivendo de verdade que conseguia melhor se lembrar de Gamão, criando novas memórias a dele se cristalizava em sua melhor forma.

— Onde é sua casa?

— Na Vila do Calango, no Arquipélago de Ponta Quebrada, lar de fugitivos e rejeitados e pessoas esquecidas pelo mundo.

O dia do motim voltou a sua mente. Tinha ouvido parte da história, e apesar de querer fazer muitas perguntas, se pegou hesitando. Quanto mais sabia sobre aquela tripulação, mais complexa ficava sua visão sobre tudo — a aliança proposta tinha sido em função de sobrevivência, de derrotar um inimigo comum, não achava que devia abrir espaço para outros motivos mais difíceis de dissolver quando voltasse para casa.

— Faz muito tempo que não vai lá?

— Um mês, mais ou menos. Quando saímos para Hermes capturar um navio. Devíamos nos reencontrar lá logo depois, mas tanto eu quanto ele enfrentamos batalhas difíceis, até que...

— Até que eu tirei Hermes da água e vocês estragaram meus planos — repetiu baixinho as palavras dele do outro dia.

Delfim abriu a boca para responder, mas o momento foi interrompido. Como se convocado pela conversa, o imediato saiu do passadiço a passos largos, as mãos batendo nas laterais das pernas. Ele pegou o caminho mais longe possível de onde estavam, os ignorando como vinha fazendo desde a transmissão da mensagem, e saiu do navio.

Delfim o acompanhou com o olhar até a cabeça ruiva sumir no final do píer. Com um assobio curto, Ladrão ficou alerta, abandonou o afago na cabeça.

— O que foi? — Anabela perguntou.

— Eu vou atrás dele.

Sem mais explicações e com mais um assobio, ele saiu seguido de perto por Ladrão. Surpresa, e desconfiada, quando deu por si Anabela já estava do lado dele na rampa. Esperava não estar reagindo ao assobio como o cachorro.

— Não precisa vir comigo — ele disse olhando pra frente, o pescoço esticado.

— Acho que preciso. Acho que Hermes não deve ser subestimado.

— Olha só você, mal se juntou a tripulação e já quer proteger seu capitão.

— Você não é meu capitão. — A ideia era absurda. E também intrigante.

— Uhum.

— Não é.

— Certo.

Com uma bufada, parou de discutir. Não debatia ideias de girico, mesmo que a deixassem com um certo frio na barriga.

*

Ladrão estava sempre a frente, pegando o rastro quando perdiam Hermes de vista. Andar por Porto Baleeiro naquele momento foi uma experiência diferente da primeira, as pessoas reparavam quando passavam, os encaravam com curiosidade e desconfiança. Delfim tinha dito que também esperava que a mensagem transmitida publicamente tivesse outro efeito, o de reforçar que ele estava comprometido na luta contra Nero a ponto de ir atrás de seu pior inimigo.

De certa forma, era o que tinha acontecido. Uma aliança de um pirata com Anabela era uma aliança com os Argo, mesmo que nem todas as partes soubessem que tinham se tornado amigos.

Amigos talvez fosse uma palavra estranha, não gostou dela, então voltou para aliados. Traçava uma linha bem bonita e visível entre eles, mesmo que andassem tão perto um do outro pelas ruelas que se esbarrassem o tempo todo sem nenhum bom motivo para tanto.

Já fazia alguns minutos de perseguição quando Hermes parou de repente no meio de uma das ruas mais largas e movimentadas. E se virou para trás.

Delfim pegou Ladrão num braço e Anabela no outro e os puxou para o beco mais próximo, derrubaram alguns barris empilhados contra a parede. Os três ficaram imóveis com o barulho, muito próximos, só o cachorro respirava enquanto esperavam os barris rolarem para longe.

— Ele viu?

— Acho que não. Hermes não anda com os melhores reflexos.

— São pérolas de Cassis, não são?

— Se eu tivesse que chutar...

— Viu só do que eu te salvei?

Ele lhe ofereceu um sorriso de lado, antes de espiar para fora do beco. Nesse momento Anabela se deu conta de como estavam muito perto, quase tão perto quanto no dia da trilha e que hora inconveniente para lembrar da sensação da barba contra pele.

Pigarreando, tentou se sacudir para fora do abraço, mas Delfim não deixou, a segurou firme na posição que mantinha Ladrão entre eles como num sanduíche de memórias recentes e vontades súbitas.

— Ele entrou numa birosca. Vem.

Tão de repente como a puxara para o beco, ele a puxou para andar. A mão segurando seu braço não apertava, ainda assim Anabela descobriu que não conseguia se soltar do toque. Outra inconveniência, outra coisa que precisava empurrar para o outro lado da linha imaginária.

Contornaram o beco e saíram na rua de trás, bem mais estreita e menos movimentada. Delfim a conduziu para uma portinha de onde saía um cheiro gosto de fritura, Ladrão arfou e lambeu o focinho, parando apenas por um momento de indecisão antes de seguir os humanos para dentro.

Entraram numa dispensa que dava acesso a uma cozinha bem suja. Uma moça que mexia numa panela se assustou com a chegada, mas Delfim fez sinal para que ficasse quieta. Boquiaberta, ela os observou passar e Anabela se perguntou se aquele tipo de situação era comum ou se o silêncio dela era em função do choque.

A passagem que dava acesso ao salão estava bloqueada por um pano encardido que fazia as vezes de cortina, espiaram por trás de uma fresta. Não demoraram a encontrar Hermes sentado numa mesa no canto mais escuro da birosca, e a mão de Delfim continuava em seu braço e o coração acelerado dela provavelmente não ia ajudar em nada na espionagem. Anabela engoliu em seco, tentando se concentrar como ele, que não dava nenhum sinal de estar afetado pela proximidade constante.

Um homem de casaca vermelha se sentou de frente para o imediato. Parecia elegante demais para o lugar, deslocado no ambiente engordurado.

— Filho dum ouriço... — Delfim suspirou quando o recém-chegado colocou um vidrinho sobre a mesa.

Hermes esticou a mão, uma expressão rápida no rosto, mas o homem tirou o vidro do alcance. Não conseguiram ouvir as palavras que trocaram, embora o imediato parecesse estar enumerando xingamentos. Em seguida, o outro colocou um papel dobrado sobre a mesa.

— Quem é esse? — Anabela sussurrou.

— Nunca vi pessoalmente, mas tenho ideia de quem é. Julião. Recente nos Mares Esquecidos, capitão de um navio de contrabando.

Se era possível, o imediato ficou ainda mais pálido que de costume ao ler o bilhete. O homem sorriu e deu de ombros. Com um suspiro, Hermes concordou com a cabeça, os ombros caindo. O vidro com as pérolas foi colocado de volta a seu alcance, e o outro saiu.

Enquanto a cena de Hermes exalava derrota, a expressão de Delfim estava contorcida em dúvida. Anabela nunca tinha lidado com aquele tipo de situação na família antes, mas sabia de uma coisa ou outra sobre ver pessoas queridas se afundando num buraco.

— O que você quer fazer agora? — sussurrou, não gostando de ver a indecisão ali, não combinava com ele. — Existem tratamentos...

Antes que ele pudesse responder, Hermes respirou fundo e se colocou de pé num salto. A agitação nas mãos estava de volta, e ele saiu em disparada para a rua.

Dessa vez não houve pausa, Delfim e Anabela se moveram ao mesmo tempo para ir atrás. Ladrão logo pegou o rastro e voltaram a perseguição, num ritmo mais acelerado para fora do burburinho da cidade. Quando pegaram uma ladeira familiar, Delfim xingou.

— Ele tá indo ver aqueles... — Anabela parou, não sabia como definir as quatro pessoas que tinham encontrado dois dias antes. — Quem são eles?

— Os Quatro Sem Nome. Ninguém sabe de onde vieram, ou o que querem. Surgiram nos Mares Esquecidos anos atrás e estabeleceram a estação de rádio pirata, traficando informação... Diz o boato que eles são metade gente, metade máquina. Não só com próteses mecânicas, máquinas por dentro. Mas isso não é possível. — Ele olhou para ela de soslaio enquanto marchavam colina acima. — Ou é?

— Bom... não saberia dizer como, ou explicar as teorias por trás, os estudos de automação humana e biotecnologia podem ser meio... controversos. Nos cantos mais escuros das universidades... se fala sobre. Eu nunca ouvi falar de uma automação completa bem sucedida em pessoas, mas não diria impossível. Desde que o cientificismo se tornou predominante no mundo o impossível acabou.

Pensou nos movimentos sincronizados dos quatro, na sensação esquisita de ouvi-los falar. De forma alguma parecia impossível que fossem metade máquina, embora não fosse uma questão que estivesse particularmente disposta a investigar. Já tinha problemas demais, e o que quer que Hermes estivesse prestes a negociar com eles já seria ruim o suficiente.

Na bifurcação da trilha, esperaram, deram tempo suficiente para que ele entrasse na casinha e não os ouvisse chegando. Até Ladrão pareceu entender que silêncio era necessário, levantava as patas com cuidado seguindo o exemplo dos humanos.

Se esgueiraram contra a parede áspera, e se abaixaram sob a janela. A conversa lá dentro estava na metade, a voz de Hermes os alcançava exaltada.

— Eu estou oferecendo um ótimo pagamento! Eu preciso que vocês entreguem a mensagem!

— Não — responderam quatro vozes ao mesmo tempo.

— E por que não?!

A resposta seguinte não veio rápido, mas quando chegou foi a vez de Anabela segurar o braço de Delfim.

— Não vamos gastar recursos transmitindo uma mensagem para Nero — disse a voz da mulher tatuada. — Pode entregar pessoalmente, ele está aqui.

Continua…

Nas próximas edições...

 Bom... Eu recebi ameaças pelo final do outro capítulo, então espero que achem esse mais tranquilo. Não percam o próximo pra saber o que Ladrão e seus amigos vão fazer diante do que parece uma traição tão horrível.

 Bom final de semana e até a próxima!