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20.000 Histórias Submarinas - Areia e Pólvora #14

 Hoje voltando com mais um capítulo de Areia e Pólvora! Esse um pouco mais longo do que o normal por conta de algumas escolhas que eu fiz na edição da história (cenas cortadas, ordem alterada de alguns acontecimentos, etc), mas tá cheio de Delfim e Anabela. Então, boa leitura!

  

Atenção! Use seu colete salva-digitação!

Nos capítulos anteriores...

 Presos numa calmaria nos Atóis Silenciosos, a tripulação do Balaena surtou com a possibilidade de ficar sem água e Delfim, Hermes e Dudalina tiveram que lidar com um motim! Quando tudo ficou sob controle, porém, descobriram que Anabela tinha fugido da cabine do capitão...

14 - Consultora para assuntos científicos

Na encurralada em Porto Aveiro algo irracional o tinha impelido a salvá-la. Num instante estivera amaldiçoando a Argo por ter sequestrado Ladrão, e no outro estava correndo para segurar sua mão, lutando contra um medo repentino de que tudo estivesse acabado antes mesmo de ter começado. A natureza daquele ‘tudo’ ainda era um mistério, alguma coisa escondida por trás das lentes redondas — ao encarar o rabo do vira-latas enquanto corria atrás dele, o pânico de que talvez jamais descobrisse se instalou.

O encontraram no nível superior do convés externo, farejando a abalaustrada.

— É impossível ela ter escalado até essa altura por fora — disse Hermes.

— Impossível é ter pulado na água! — disse Dudalina — Ela não é nem louca.

— Eu não acho que “impossível” faz parte do vocabulário dela. E acho, sim, que ela é louca — Delfim resmungou.

Seguiram Ladrão ziguezagueando pelo convés, o nariz grudado no chão, de tempos em tempos chutavam algum marinheiro caído fora do caminho. Entraram no passadiço, seguiram para o interior do Balaena.

— Como ela conseguiu andar tudo isso sem ninguém ver? — perguntou Dudalina.

— Se ela fugiu… — começou Hermes.

— Se ela fugiu eu te jogo na água pra ir nadando atrás dela! — Delfim cortou. Não que ele mesmo não estivesse disposto a fazer o mesmo.

Estava nervoso. Cansado, dolorido, e ansioso. Esfregou o rosto, se perguntando quando conseguiria dormir em paz. A cada passo atrás de Ladrão se sentia mais culpado, nunca deveria ter trazido a Argo abordo e nunca deveria ter deixado Loani navegar por aí com Hermes sem ter percebido o quão instável ele estava. A vida das duas estava sendo arruinada por suas decisões erradas.

— Delfim… — o imediato sussurrou — Se você estiver muito cansado, eu tenho uma coisa que pode…

Ladrão latiu, e correu mais um nível de escada abaixo. Os conduziu até a porta do paiol onde guardavam a botina dos saques, largada entreaberta. Com o coração martelando dentro do peito tão forte que achava que conseguia sentir até no braço imobilizado, Delfim deixou o imediato falando sozinho e entrou.

Anabela levantou a cabeça quando entraram, estava até os joelhos numa pilha de caixas e objetos saqueados e com um sorriso enorme no rosto. Delfim engoliu em seco, prisioneiras fujonas não deveriam ter o direito de serem tão bonitas.

— Dudalina! — Anabela exclamou, levantando uma caixa de madeira — Aposto que foi você que manteve isso, não foi? Você é a pessoa mais inteligente desse navio!

— Obrigada, chuchu, mas eu já sei disso. O que eu não sei é o que te deu na cabeça pra vir aqui no meio de um motim! E… pera… esse saque não é do Curiosidade, isso é coisa antiga. Ninguém nunca quis comprar esses tecidos da gente.

Os três trocaram olhares confusos. De fato, o paiol estava cheio de partes de saque aparentemente inúteis. Quando roubavam navios com muitas riquezas, essas eram logo redistribuídas e usadas para melhorar a estrutura em Ponta Quebrada. Quando encontravam materiais sem valor, Dudalina não deixava jogar fora para o caso de um dia serem úteis.

— Não é tecido! Bom, não só tecido. É um entremeado de algodão!

— Sim… e?

— E com isso a gente consegue fazer água! Ou, vamos conseguir se você me arrumar algumas garrafas limpas, tubos, e alguma coisa pra construirmos tipo uma ventoinha. — Anabela saltou por cima do saque e largou a caixa nos braços de Hermes, tão estupefato que não reagiu antes que ela voltasse para onde estava procurando — Seria ousar demais esperar que vocês tenham algum tipo de maçarico de baixa pressão por aqui? Bom, não importa, a gente sempre pode fazer uma fogueira.

— Fogueira? — os três perguntaram ao mesmo tempo.

Anabela não respondeu, ajoelhou no meio das caixas de novo.

— Não dá pra fazer água numa fogueira. — Delfim disse, então olhou pra Dudalina. — Dá?

— Você mesmo disse, chefe. Acho que ela não sabe o que é impossível.

Ladrão se enfiou entre as canelas de Anabela, resmungando, ainda muito insatisfeito.

— Eu sei, desculpa, mas eu não ia conseguir te carregar e escalar ao mesmo tempo. — Ela fez um carinho rápido nas orelhas, e colocou um saco na frente do focinho dele. — Mas já que tá aqui, pode me ajudar. Consegue achar mais disso aqui? Hm? Pega, Ladrão.

Foi como uma faca no peito. A traição do melhor amigo, a ilusão de que se tudo tivesse acontecido um pouco antes, ou um pouco depois — machucou um lugar desconhecido em seu coração. Delfim saltou para o lado dela, a garganta seca de mais de um tipo de sede.

— Essa carga não te pertence.

— Também não te pertencia quando veio parar aqui, com certeza.

— Anabela… você podia ter morrido — disse entredentes, baixo, não querendo que Hermes e Dudalina captassem o quanto a possibilidade o assombrava.

Ela finalmente o encarou nos olhos, um brilho afiado por trás dos óculos, enfiando a faca um pouco mais fundo.

— Pelo menos teria sido uma morte por minha escolha. No meu lugar você faria a mesma coisa.

— Fazer o que? Eu ainda nem entendi o que é tão importante pra você se arriscar cair no mar sem ninguém vigiando e atravessar a confusão de um motim.

— O problema não é o medo de sede? Então. Acho que posso fazer alguma coisa sobre isso.

— Fazendo água?

— Fazendo água. Ou, tentar fazer, mas se não der certo… bom, é um jeito melhor de passar o tempo do que ficar olhando pro teto esperando o vento.

— E o meu antídoto que você prometeu?

— Fermentando, amanhã no final do dia você vai poder tomar.

Delfim esfregou o rosto, e uma pontada repentina de coceira no braço imobilizado o lembrou de tudo que ela já se mostrara capaz.

***

Ela estava frustrada. Toda hora ajustava os óculos, prendia e soltava o cabelo, mordia a bochecha. Delfim se sentia hipnotizado por todos aqueles tiques nervosos, mas mais ainda pelo fogo determinado no olhar. Tinha tentado ficar longe naquela manhã, ignorar cada suspiro e barulhinho vindo da direção dela.

Com a tripulação sob controle, e com a promessa de que talvez tivessem mais água além do pouco que restara no reservatório, Anabela trabalhava sentada no chão do convés, tamborilando os dedos no joelho, encarando rabiscos num papel. Ladrão estava deitado ao lado, com a cabeça enfiada debaixo do braço dela, descansando e ganhando cafuné enquanto ela pensava.

— Isso… vai ser um grande improviso. De novo. — Anabela suspirou, esticando a coluna, olhando para Delfim de rabo de olho.

— Como a maioria das coisas que a gente faz por aqui. — Delfim deu de ombros. — Mas o que você tá pensando em improvisar?

— Hm… sabe como uma salina funciona?

— Sim.

— A ideia é a mesma, só que em vez de deixar a água voltar pra atmosfera, precisamos aprisioná-la. Mas… — O tamborilar ficou mais rápido. — Que saudade do meu laboratório no Curiosidade…

Delfim, cansado de tentar se manter longe, cedeu à própria vontade e se abaixou, tomando um papel da mão dela. De desenhar, pelo menos, ele entendia.

— Sua letra é até bonita, mas se for depender desses rabiscos pra fazer tua máquina, nunca vai dar certo. Cientista não tem que saber desenhar, não?

— Não se a pessoa conseguir entender os rabiscos, e no caso, só eu preciso entender — ela respondeu entredentes.

— Então você tá desenhando feio de propósito?

Anabela agarrou o papel de volta, prestes a responder quando ouviram o apito do vigia.

Hermes viu o ponto escuro no céu primeiro e assobiou ao olhar pela luneta. A mancha voava rápido, alta demais para distinguirem bandeira. Pouco a pouco, as pessoas se reuniram no convés, uns pegando em armas e outros fazendo orações silenciosas. Dudalina subiu da casa de máquinas, ainda mais suja de carvão. Delfim, cansado demais para fingir que não se importava, se colocou na frente de Anabela.

— Você falou que ninguém passava por aqui — ela disse, correndo para esconder os papéis.

— Pelo jeito nem todo mundo nos Mares Esquecidos se deixa levar pela superstição. — Dudalina se aproximou, puxando uma luneta. — Não parece Nero.

E não era, a não ser que o maldito tivesse roubado o navio de Severina, uma das contrabandistas mais ardilosas da região. O Colibri foi ficando maior com a aproximação, aos poucos perdendo altitude.

Quando a âncora atingiu a água, manobraram ao redor puxando a corrente até ficar na superfície do mar, proa com proa. O movimento sacudiu o Balaena, uma ação deliberada. A capitã saltou de um navio para o outro, acompanhada da própria imediata e mais dois marinheiros.

— Tá aqui alguém que eu não esperava ver tão longe de casa. Resolveu se esconder de Nero nas águas amaldiçoadas, garoto? — Severina perguntou.

Ela era a capitã mais velha da região. As rugas e as manchas de sol cobriam o rosto de pele marrom, o cabelo grisalho ia até a cintura adornado com acessórios de madeira e prata. Não tinha amizade com ninguém, mas havia sido uma aliada de seu pai nos momentos que importavam e por isso ele não se sentiu abertamente ameaçado com o aproximar dela.

— Estava cuidando de um assunto, e tive uma pequena maré de azar.

— Não precisa usar desse eufemismo, Nero é bem mais do que isso. E bastante gente já sabe que ele tá com Loani, ele tá fazendo questão de espalhar que é só questão de tempo até o Balaena se juntar à frota dele.

— Todo mundo sabe que ele vive no mundo das ilusões.

— Bom… as ilusões dele têm feito bastante estrago por aqui. Foi o último ataque dele que acabou com seus balões, não foi? E o que aconteceu com esse braço, moleque?

— Você não faz nem ideia — Delfim resmungou, não precisava ser lembrado de todos os motivos pelo qual estava até o pescoço de problemas.

Severina correu o olho pelo convés. O estado deplorável do navio e da tripulação era óbvio, ele podia quase ver as maquinações da velha enquanto observava os arredores. Não conseguia imaginar o que estava prestes a falar quando ela percebeu Anabela atrás dele.

A capitã franziu a testa, lambeu os lábios. Ladrão rosnou baixinho, um mau sinal. Tanto Hermes quanto Dudalina se aproximaram mais.

— Eu não lembro desse rostinho bonito…

— Minha mais nova adição a tripulação do Balaena. Márcia. — Lançou um olhar de aviso para Anabela, implorando pra que ficasse quieta. — Minha… consultora em assuntos científicos. Novo cargo na praça d’armas.

O brilho de divertimento por trás dos óculos por um instante fez tudo parecer um pouco menos horrível. Ele poderia se acostumar com a ideia de ter uma consultora de ideias malucas.

— Ela não parece muita coisa. Mas… você sempre foi o defensor dos fracos e oprimidos.

— Você me conhece, e conheceu meu pai.

— E é só por isso que eu ainda não declarei lados nessa loucura toda de rei dos mares.

A atenção de Anabela fazia buracos em sua nuca, fazia até o braço imobilizado formigar, mas não podia se dar ao luxo de focar nela sob o olhar atento de Severina. A capitã cruzou os braços, encarando a Argo.

— Você bem que podia me emprestar os serviços da sua consultora... se ela fizer um bom trabalho, quem sabe eu não te reboco pra fora daqui.

A proposta colocou todos em alerta. Anabela se manteve atrás dele, o que foi um pequeno consolo. Ela era esperta o suficiente para conseguir manipular a situação para fugir, mas pelo menos até o momento parecia preferir estar ao lado dele. E se Severina descobrisse sua verdadeira identidade, nada a impediria de levar ela mesma a Argo como presente para Nero.

— Do que você precisa? — Hermes perguntou, a voz num tom agudo demais.

Severina observou o trio da praça d’armas, e depois cravou os olhos na cientista.

— Estou pensando que pelo jeito que vocês cercam essa belezinha, eu talvez precise de uma consultora científica também. Vamos ver se ela vale o esforço de vocês.

A imediata de Severina foi até a proa e deu ordens para que trouxessem uma caixa. A imobilidade dos Atóis parecia piorar a tensão acumulada no ar, depois do motim e com o racionamento a tripulação não estava em condições de lutar. E se chegassem ao ponto de uma disputa, Delfim percebia com incômodo cada vez maior o olhar febril de Hermes, os nós dos dedos brancos segurando a espada.

Ninguém falou nada quando os marinheiros do Colibri colocaram uma caixa entre os dois capitães. Severina cruzou os braços e sorriu.

— Fique à vontade, garota.

Anabela se moveu devagar, cautelosa. A vontade de puxá-la de volta para o cerco protetor era grande, mas seria estupidez dizer a Severina o quão importante ela realmente era. Se estava nervosa, Delfim não conseguiu identificar, todos os tiques de antes tinham sumido.

Quando a tampa foi removida, a visão de pó branco foi quase decepcionante. Quase. Dudalina e Hermes trocaram olhares confusos, Delfim só enxergava Anabela, e viu o tensionar dos ombros. Viu Ladrão reagir e se aproximar até estar colado na perna da cientista.

Depois de esfregar a palma da mão na calça, ela passou os dedos pela superfície dos montinhos de pó, pegou alguns grãos para olhar bem de perto, separou um que colocou contra luz do sol.

— Eu preciso de um pouco de água — ela disse com a voz rouca —, pra fazer um teste. Só um pouquinho.

Sobre a tampa largada no chão, Anabela fez um montinho, afastou o focinho de Ladrão e deixou cair algumas gotas de água de um cantil que Dudalina lhe passou. O pó, ao invés de se dissolver, se solidificou.

— Eu não sabia que fazia isso — Severina murmurou.

— Onde você conseguiu isso? — Anabela perguntou, muito mais contida do que Delfim a vira ao longo daqueles dias todos.

— E isso importa?

— Claro que sim, a origem de qualquer substância importa. — A resposta veio com um lampejo de impaciência, enquanto Anabela manuseava o pequeno montinho sólido entre as mãos. Ladrão farejou a coisa e espirrou.

— Eu fiz uma troca de benefício mútuo. Foi repassado a mim por um outro contrabandista que pegou isso nas Ilhas da Tormenta do extremo sul, em troca de ele levar uma carga da qual eu precisava me livrar com urgência. Ele disse que também estava disposto a se livrar dessa areia que ninguém queria comprar.

Finalmente, Anabela olhou pra cima, os olhos arregalados. Não pareceu uma reação natural, o que deixou Delfim de cabelos em pé. A maluca estava tramando alguma coisa, tinha certeza.

— Bom… você também vai precisar se livrar dessa.

— E por que eu faria isso? — Severina forçou um sorriso.

— Eu acho que a senhora não ia gostar de atrair a atenção do Império Dourado… e quem te passou essa carga, com certeza roubou do próprio Imperador.

O xingamento foi generalizado no convés, o cochicho se espalhou até o Colibri onde mais palavrões foram emitidos. Talvez Delfim estivesse calejado, ou talvez já conhecesse Anabela bem o suficiente pra saber que tinha mais coisas por trás daquele pó.

— Isso é minério de calonita, usado nas máscaras cerimoniais das tradições do Império. Tem um significado religioso importante… roubar isso foi com certeza uma grande ofensa… — ela franziu a testa — Eu não me surpreenderia se o Imperador já não tiver mandado alguém recuperar essa carga.

— Filho dum ouriço… temos umas vinte caixas disso… — falou a imediata de Severina.

— Isso é um ano inteiro de máscaras cerimoniais — acrescentou Anabela. — Atravessar meio oceano pra recuperar a carga seria mais fácil, e mais de acordo com a personalidade do Imperador, do que cruzar meio mundo pra extrair mais…

Devagar, ela voltou para perto do trio da praça d’armas, e assim que se colocou atrás de Delfim lhe deu um cutucão nas costas. Ele conteve um grunhido, e sinalizou para que os três se fechassem num círculo.

Dudalina ergueu a sobrancelha e deu de ombros. Do outro lado, Hermes suspirou.

— A gente já pisou na caca de papagaio-do-mar, mesmo — resmungou o imediato. — Qualquer coisa pra gente sair daqui tá valendo.

— Já dizia o ditado… pisou na caca, abre os dedos? — Anabela sussurrou, e depois acrescentou mais baixo ainda, o encarando nos olhos. — Confia em mim.

Delfim inspirou fundo, se resignando ao fato de que a situação era tão ruim que os três estavam de acordo. A maluca queria o pó de calo qualquer coisa, então teria o pó. Ele encarou Severina.

— Me reboca até um lugar com vento, e eu sumo com isso aí pra você.

— Eu poderia só jogar tudo no mar…

— E você acha que isso vai fazer o Imperador não querer se vingar? Eu prefiro não atrair o olhar de mais um reino pros Mares Esquecidos.

— Como assim, mais um? — Severina apertou os olhos.

— Nada, a questão é que eu vou dar um jeito de entregar isso no norte, e ninguém nunca vai saber que você roubou de um imperador. Se você fizer o favor de me levar pra uma lufada de vento que eu possa aproveitar.

Era uma mentira fraca, ninguém ouvindo a conversa engoliria, Delfim só podia esperar que a curiosidade de Severina de ver até onde ia aquela história prevaleceria. Ela não era a capitã mais antiga da região por procurar confusão à toa.

— Com uma condição — a velha disse depois de bastante tempo em silêncio, os olhos brilhando.

— Estou ouvindo.

— Se você continuar vivo por tempo suficiente… e se chegar numa hora em que você consiga se livrar de Nero… metade do tesouro dele é meu.

— Severina… quando eu me livrar de Nero, você pode ficar com tudo, minha recompensa vai ser ver o maldito no fundo do mar. Mas pra isso eu preciso sair daqui e reparar meu navio.

Sentiu Anabela se remexer atrás de si, mas de novo manteve o olhar adiante.

— Temos um acordo?

Severina sorriu como uma morsa satisfeita consigo mesma.

***

Enquanto os carregamentos desciam sob a supervisão de Dudalina, Anabela se aproximou. Ele imaginava que cedo ou tarde abordariam o assunto, mas quando ela chegou perto o suficiente para fazê-lo se arrepiar Delfim esqueceu de tudo por um momento.

— Você falou sério sobre Nero? Se livrar dele é tudo que importa?

A pergunta o fez engolir em seco. Conseguia pensar em muitas coisas que importavam, e todas elas passavam por vencer o maldito, incluindo a pessoa parada em sua frente.

— Por que a pergunta?

Ela mordeu a bochecha, e depois indicou a carga com a cabeça.

— Você não pode deixar isso exposto ao sol, precisa guardar no paiol lá embaixo. Mas não pode deixar ninguém perceber que isso é uma preocupação sua.

O arrepio da proximidade imediatamente se transformou em calafrio.

— Por que eu deveria estar preocupado?

Anabela ajustou os óculos.

— Não deveria. Eu inventei aquela história do Imperador. Quer dizer, mais ou menos. Você… não tem ideia da sua sorte. Mas eu tenho, e por isso nós dois vamos fazer um novo acordo.

Delfim piscou uma, duas, três vezes. Em diversos momentos nos últimos dias se questionara se estava sofrendo algum tipo de punição, e naquele instante teve certeza.

— Você... me fez... enganar... Severina... pra ficar com a carga dela?

— Vai valer a pena. Você acabou de prometer o tesouro inteiro de Nero pra ela.

— Eu não sei quem é pior. Você com essas loucuras, ou eu por acreditar em você.

— Até agora você saiu vivo de todas elas.

— Até agora, e até meia hora atrás você era contra roubo de carga, então vai me desculpar se eu não estiver muito confiante na constância das suas ações.

O sorriso de Anabela saiu torto, como se a contragosto, e a ferida no peito de Delfim abriu de vez. O coração se contorceu, cada batida uma martelada no entendimento de que não importava o que acontecesse dali em diante, ele sairia perdendo de alguma forma.

— Eu te odeio, Doutora Anabela Argo.

Uma mentira, clara até para ela, que sorriu. A verdade ele não estava pronto pra aceitar, não sem uma boa luta antes.

— Quando você estiver com sua irmã de novo e tiver derrotado Nero, eu vou aceitar o seu pedido de desculpas e uma declaração pública de gratidão eterna.

— Só faço essas coisas em forma de beijo, serve?

Dissera mais como um desafio, algo para chocá-la e fazê-la se afastar. Mais uma vez, Anabela fez o oposto, e deu um passo adiante.

— Até serve, mas acho que você é mais do tipo que só late e não morde.

Continua….

Nas próximas edições...

 Finalmente, o Balaena achou uma forma de deixar os Atóis Silenciosos! Nada como um pouco de sorte e oportunismo na vida de um pirata (ou de uma cientista capturada por piratas). No próximo capítulo, Anabela e Delfim precisarão decidir se confiam o suficiente um no outro pra fazer um novo acordo, e pra decidir como usar uma carga bastante preciosa...

 Bom final de semana e até a próxima!