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20.000 Histórias Submarinas - Areia e Pólvora #11

Hoje chegando um pouquinho mais tarde, Anabela, Delfim, Ladrão e o caranguejo cá estão novamente na sua caixa de entrada!

Sextou!

Não se esqueça de vestir o colete salva-digitação, e boa viagem!

Nos capítulos anteriores...

Nos atóis, depois de resgatar Ladrão e Delfim do terrível caranguejo-pugilista, Anabela precisa agir rápido para anestesiar o braço machucado do pirata. Entre tratamentos médicos pouco convencionais e conversas difíceis, os dois começam a coletar o que ela precisa pra fazer o antídoto.

11 - A maldição dos Atóis é uma mulher inteligente

Realmente, não fazia diferença. Que o cabelo dela dançasse quando mergulhavam, que a pele reluzisse sob o sol quando emergiam ou que Ladrão balançasse o rabo quando iam até a areia deixar o que tinham catado. O "material coletado", nas palavras dela, ditas ajeitando os óculos. Delfim suspeitava que alguma coisa dentro dele tinha sido coletada e jogada nos baldes junto das pedras e animais marinhos que supostamente salvariam sua vida. E não fazia diferença, se a retribuição fosse entregar Anabela para a pior pessoa a já ter cruzado aquelas águas.

Nadar com um braço só não cansava tanto quanto tinha imaginado, e a ausência de dor combinada com o susto clareou um pouco a perspectiva que tinha da situação. Ao longo da carreira de pirata, fosse no tempo de marinheiro ou já capitão, nunca se enganara sobre a lista crescente de crimes cometidos e não se arrependia de nenhum deles. Tinha jurado ao pai que seguiria roubando, pilhando, sequestrando e matando por Ponta Quebrada, e o depois era problema do depois. A garota seria mais um item na lista, a vida de Loani valia muito mais.

Seria necessária uma frota para derrotar Nero, e contava nos dedos de uma mão a quantidade de capitães dispostos a ir contra o filho de ouriço. Anabela tinha dado azar de ser a única peça que tinha em mãos no momento, então aprenderia a conviver com o estômago embrulhado como se fosse um marinheiro de primeira viagem, mareado e cheio de problemas pra afogar numa garrafa de rum. Quem sabe até de cachaça de marisco-ardente.

Mergulhou atrás dela tão fundo quanto seres humanos conseguiam, atento à frustração na bochecha mordida por não conseguir ir além. Alguém como ela talvez não estivesse acostumada a ter limites, se tinham navegado o mundo todo o fundo do mar devia ser só mais uma fronteira. Tirando alguns resmungos sobre não ter um traje de mergulho completo à disposição, a Argo não disse nada, então ele se contentou em continuar fazendo suposições.

O silêncio da superfície dos Atóis não se replicava lá embaixo com os milhões de estalos de pequenos crustáceos e animais, não sabia o nome de nenhum, mas se obrigava a observar só porque capturavam a atenção dela por alguns instantes. Se manteve longe dos caranguejos-pugilistas e dos mariscos-ardentes, e invejou as estrelas-do-mar que arrancavam sorrisos dela. Talvez ainda estivesse mesmo sob o efeito da pérola de Cassis. Nunca mais tomaria aquela desgraça de novo.

Remaram de volta para o Balaena mais devagar, com um braço funcional a menos e muito mais peso. Ladrão rosnando pro caranguejo enredado, testando a própria sorte perto das pinças, também não ajudava. Foi só quando encostaram no casco que ocorreu a Delfim a necessidade de uma explicação para o braço imobilizado. Apesar da maioria da tripulação saber do ferimento, a gravidade não tinha sido alardeada de propósito.

— Vixe, chefe, que bichão é esse?!

A pergunta de Dudalina atraiu o olhar de todos assim que foram içados para dentro. Um clima tenso ainda pairava no convés, apesar de não parecerem mais prontos a morrer de susto.

— Trouxe pra fazer uma sopa.

— E essas outras coisas todas aqui?

— Aí é com ela.

— Esse braço imobilizado também é com ela? — A voz de Hermes veio baixa e alta ao mesmo tempo, um golpe certeiro para aumentar a desconfiança dos outros.

Entre a carranca do imediato e a curiosidade da contramestre, Delfim se pegou sem saber o melhor a responder. A verdade desencadearia uma nova discussão sobre confiar nela, e nenhuma mentira que não o fizesse parecer fraco para a tripulação lhe vinha, os pensamentos inconvenientemente transbordando de visões translúcidas da prisioneira parecendo uma sereia.

E, claro, porque ela não o tinha salvado vezes o suficiente naquele dia, Anabela foi a seu resgate.

— Ele se machucou me protegendo — ela disse, saltando do bote para o convés. A voz segura, mais alta que a batida das botas na madeira, como se não fosse uma prisioneira. — Fui atacada por um tubarão quando estava coletando, Delfim lutou com ele até o bicho desistir e ir embora.

A história repercutiu na quietude tensa da tripulação. Olhares arregalados trocados, e com isso viu a lenda do próprio nome crescer mais um pouquinho. O embrulho no estômago aumentou.

— Você não fez isso — disse Hermes. — Você se arriscou desse jeito por ela?

— E você é burro? Acha que Nero ia aceitar meu cadáver estraçalhado como moeda de troca? Eu nunca vi um imediato de navio com tão pouco raciocínio.

Anabela não sussurrou, não tinha medo de maldição nenhuma, então mais uma vez as palavras viajaram pelo convés, e dessa vez a reação não foi positiva. Hermes, tendo pouco raciocínio ou não, era querido pela tripulação. Enfrentar um tubarão seria mais tranquilo do que lidar com um motim de marinheiros preocupados com maldições e querendo honrar o imediato. Ele precisava parar de ser uma banana verde e retomar as rédeas da situação, antes que ideias perigosas escalassem pelos mastros.

— Já que nenhum de nós voltou na forma de um cadáver, e os mortos dos atóis não fizeram nada, que tal vocês cães sarnentos se mexerem? Agora!

Ladrão latiu para complementar a ordem, e a tripulação obedeceu, pelo menos naquele momento.

Debruçado sobre a carta náutica, Delfim considerou as opções. Porto Aveiro era o lugar mais próximo e também o mais problemático — àquela altura Margil já teria avisado os Argo do sequestro. Do outro lado, Ponta Quebrada o chamava de volta pra casa — o que também significava encarar a mãe e contar que Nero tinha levado Loani. Em algum ponto abaixo dele, no coração do Balaena, um outra mulher preparava o equivalente a uma poção mágica que ou o salvaria ou faria mais estrago ainda na sua situação precária. Para onde quer que olhasse, via uma mulher brava com contas a acertar, certamente tinha ofendido alguma santa pra merecer aquilo.

Em sua visão periférica, rondando pelo passadiço, Hermes se fazia ser visto, como uma tempestade acumulando no horizonte. Além dele, os marinheiros trabalhavam com pressa, soltando amarras e içando a âncora, dispostos a zarpar mesmo sem um rumo definido. Aqui e ali, alguém dava uma espiada na direção dos Atóis. Não era uma cena muito inspiradora para um capitão com pretensões de lutar contra um inimigo poderoso no futuro. Ou dois inimigos, considerando o que estava prestes a fazer.

Só havia um lugar onde poderia cumprir o acordo com Anabela e dar algum consolo à tripulação — sem que soubessem que ele estava ajudando a prisioneira.

— Porto Baleeiro? — Hermes perguntou, olhando o mapa de longe.

— Notei que o estoque de suprimentos está baixo.

— Podemos reabastecer em Ponta Quebrada.

— O rum de Porto Baleeiro é melhor. — E ele não estava disposto a deixar que Anabela desse a localização de Ponta Quebrada ao irmão que odiava piratas mais do que tudo no mundo.

— Mas Ponta Quebrada é mais perto da Baía da Salvação, onde vamos encontrar Nero.

Delfim deixou o compasso cair, ficou olhando para o rabisco torto no mapa, apontando na direção errada. Hermes continuava circulando, andando devagar. Um assobio trouxe Ladrão para perto da mesa, e fez o imediato parar. O alívio de não estar sentindo dor no braço tinha sido suficiente para não se importar com a imobilidade antes, porém no momento se tornou um incômodo.

— Onde vamos encontrar Nero… E isso foi combinado quando…?

— Eu te disse, quando voltei pro Balaena.

— Não disse.

— Disse.

Ladrão latiu. Uma vez, um aviso. Delfim inspirou fundo, e começou de novo.

— Nero está esperando por nós na Salvação.

— Foi o que ele falou antes de me jogar no mar.

Delfim encarou a ilha em forma de meia lua, a última ainda parte dos Mares Esquecidos antes de entrar nos mares do Império. Era um bom lugar para armar uma emboscada, e a uma curta navegação de onde estavam. Se seguisse em linha reta para Ponta Quebrada deixaria a popa exposta, e Hermes conhecia o mapa tão bem quanto ele.

— Você quer me contar em mais detalhes de como foi sua estadia com Nero?

— Você quer parar de me olhar com essa cara de moreia desconfiada? Não foi uma estadia, foi uma captura.

— Me dê alguns motivos.

Sem fazer questão de esconder o movimento, colocou a mão no cinto, perto tanto da pistola quanto da espada. Sabia que Hermes gostava de pensar que era o mais forte, que tinha escolhido não brigar pelo comando, quando na verdade ele simplesmente não tinha a maior vantagem que Delfim possuía, um pouco de sorte e um bom amigo.

— E eu preciso? Navego no Balaena desde criança do seu lado, carreguei com você o corpo do seu pai por esse convés e fiz as mesmas promessas. Eu podia ter sido o próximo capitão, mas escolhi não brigar pela posição. E se nada disso significa alguma coisa pra você, eu amo Loani, eu vou fazer o que for preciso pra conseguir ela e o Curiosidade de volta.

E lá vinha a conversa de novo. Detestava dar razão a prisioneira consumindo sua sanidade, mas era possível que a Argo tivesse razão. A porcaria do navio novo em folha não devia ter lugar naquele discurso bonito.

— Se você falar a verdade agora, vai ser mais fácil.

— Você não pode tá achando que eu te traí.

Era interessante como algumas vezes as pessoas usam as palavras por conta própria, embora fosse estranho que Hermes estivesse soando nervoso, ele nunca fora do tipo de se intimidar. Devagar, Delfim deu passos para trás, saiu de trás da mesa da carta náutica. Hermes espelhou o movimento, a mão também foi para a cintura.

— A verdade, Hermes.

— A verdade é que você se deixou confundir por um par de óculos tortos.

Delfim manteve o movimento circular até Hermes ficar de costas para a mesa.

— Como você sabe onde Nero vai estar?

— Ele me disse para dar o aviso!

— Esse nunca foi o jeito do canalha fazer as coisas. Também nunca foi o seu, mas vamos deixar isso pra depois.

— Ser um imbecil apaixonado também nunca foi o seu e olha só onde nós estamos! Na porcaria dos Atóis Silenciosos! O único lugar do mundo que até o maldito do Nero evita ir! — A cada palavra, o tom de voz aumentava, o rosto pálido ganhava tons vermelhos. — E pra que?! Pra ela pegar um monte de pedra com cheiro de peixe e te enganar! Eu devia tomar o comando do Balaena agora até você pensar direito!

Havia mais de errado com Hermes que conseguia enxergar no momento, porém não encontrou nenhuma paciência para resolver com uma conversa. A intenção estava ali, gritada num lugar onde ninguém devia interromper o silêncio, alcançando qualquer um a bordo que quisesse ouvir.

Com um assovio, Ladrão saiu de baixo da mesa e atacou o imediato por trás. Delfim avançou pela frente. Uma mordida no traseiro e uma cotovelada no nariz. No fundo, aquela era só uma briga de cachorro para lembrar quem mandava no navio.

— Você até hoje não aprendeu. Não vai ganhar de mim nunca, porque eu nunca luto sozinho.

Hermes tentou alcançar a faca na cintura, mas, Ladrão sempre atacava onde não era justo, o mordeu no meio das pernas. Delfim ainda não tinha visto ninguém continuar de pé depois daquele ataque estratégico, apesar de já ter visto o amigo lutar bem melhor no passado. Mais uma cotovelada e o imediato caiu, mais pesado que uma bala de canhão, mais vermelho que um arenque salgado.

Tirou a faca do cinto de Hermes e cravou a ponta no chão ao lado da cabeleira ruiva e desgrenhada. Ladrão apertou mais a mordida.

— Nós vamos fazer o seguinte. Você vai me contar tudo ou vai ficar um tempo sem usar algumas ferramentas.

Recebeu um balbucio incoerente como resposta.

— Que? Não entendi.

Tremendo, Hermes apontou para cima. Poderia ser uma tentativa de distração, se nesse momento Delfim não tivesse percebido sons vindos do convés. A tripulação, até então com medo de falar em voz alta, estava exaltada.

— O vento — disse Hermes com a voz fina.

O entendimento do que tinha acontecido, estava acontecendo, desceu como um gole de café passado na garganta. Qualquer pequena satisfação de provar ainda ser capaz de derrubar Hermes sumiu. Desapareceu, junto com o vento.

As velas do Balaena pendiam murchas e deprimidas, sacos vazios e sem propósito. Nenhuma brisa, só o calor morno do pôr do sol. A garganta secava só de pensar, e com certeza se olhasse em volta, veria um esperto já ficando perto do barril de água, nada despertava o egoísmo num marinheiro tanto quanto uma calmaria.

— Ladrão, deixa ele. Temos um problema maior agora.

Ofegante, Hermes riu sem humor no chão.

— Que baita... filho dum ouriço...

Não deu atenção aos resmungos enquanto ele se levantava, o foco de Delfim estava todo na tripulação. Algumas pessoas sussurravam, outras faziam os sinais de oração aos santos. Uns poucos, os mais perigosos, balançavam a cabeça e falavam em voz alta, já sem medo dos mortos.

— É a maldição dos atóis!

— Não devíamos nunca ter vindo aqui!

— Os mortos roubaram o vento!

O mar era um espelho, liso até perder de vista, refletindo um céu sem nuvens. A aparição de um espírito maligno talvez até servisse de alguma coisa para mover o navio.

— Eles estão certos, a gente nunca devia ter vindo aqui — Hermes disse num fiapo de voz, massageando as partes íntimas.

— É só uma calmaria, não tem nada de sobrenatural nisso.

— Mas tem de burrice sua. É óbvio que ela enganou você. A madame é uma cientista, ela deve entender do clima, te fez de idiota pra deixar a gente preso aqui até alguém aparecer. Fazer antídoto com pedra dos Atóis, Delfim? Quem acredita numa coisa dessas?! Capitão Delfim Lucas, o pirata que se deixou enganar pela Argo mais inútil da história!

Ele devia mesmo ser um idiota, mesmo ali encarando a inevitabilidade de um navio menos móvel do que um pato, teve o instinto de defender a honra dela. Com certeza não era a primeira e nem a última vez que um pirata era enganado por uma mulher bonita, o que não servia de consolo nenhum. A vontade era bater a cabeça no mastro até enfiar algum bom senso dentro, mas arrependimentos não enchiam velas.

Continua…

Nas próximas edições

Já dizia o ditado, desgraça pouca é bobagem. Sem vento, suprimentos em baixa, sentimentos revoltosos em alta... como Ladrão vai salvar o dia dessa vez?

Ainda estou decidindo o tema da newsletter da semana que vem, então por enquanto deixo vocês para aproveitar o final de semana da melhor forma possível, e até a próxima sexta!