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20.000 Histórias Submarinas - Areia e Pólvora #10

 As sextas-feiras sempre chegam, e com essa sexta chega mais um capítulo de Areia e Pólvora! Está sendo uma aventura pra mim compartilhar essa história dessa jeito, e espero que esteja sendo uma aventura divertida pra quem estiver lendo também.

 Não se esqueça de vestir o colete salva-digitação, e boa viagem!

Nos capítulos anteriores...

 Anabela convence Delfim a navegarem para os Atóis Silenciosos, onde ela poderá coletar substâncias e produzir um antídoto para o ferimento envenenado que ele carrega no braço. Em troca, ela poderá mandar uma mensagem para seu irmão, o Capitão Castro Argo. O problema? Os Atóis são considerados um lugar amaldiçoado, o suposto lugar de descanso de espíritos condenados pelos santos, e assim que chegam no lugar, Ladrão é puxado para baixo d’água…

10 – Métodos controversos de anestesia

Anabela revirou os olhos, mas segurou o riso. Ele era corajoso, e não seria justo rir de um homem disposto a se sacrificar pelo próprio cachorro, mesmo que não houvesse nada na região disposto a matá-lo — a não ser talvez ela mesma. Com certeza estava escrito em algum lugar que prisioneiras tinham o direito de matar seus captores, independente do quão tatuados e corajosos fossem. Ou pelo menos deixar que morressem afogados em lugares supostamente mal-assombrados. Ninguém nunca ia suspeitar.

A água se agitava em espuma onde Delfim tinha mergulhado atrás de Ladrão. De tempos em tempos um rabo de cachorro ou uma trança loira quebrava a superfície, no meio do sedimento suspendido pela confusão. Parecia que teria que intervir.

Tentando separar quem era quem, puxou o vira-lata primeiro. Ele se contorceu em seus braços, assustado demais para perceber que era ela.

— Shh. Tudo bem. Eu vou ali salvar o seu dono do monstro marinho se você se acalmar... Ladrão, senta!

Dando mais uma prova de ser mais esperto do que muita gente, Ladrão parou, dando gemidos baixinhos. Anabela afagou a orelha, o deixou na areia e voltou para a luta. A visibilidade embaixo d’água não era das melhores, mas identificou o que era Delfim e puxou pelo casaco. Fazendo força e brigando contra o debater do pirata, o arrastou para a areia, até que pelo menos a cabeça dele estivesse pra fora.

Uma pinça do tamanho de uma bola de canhão emergiu, balançando de um lado pra outro até acertar o nariz de Delfim. O caranguejo — um belo espécime de Cracanx sparta, ou caranguejo-pugilista — subiu sobre o peito dele, mostrando ser maior até do que Ladrão.

— MALDITO!

Ladrão latiu em resposta, e correu para ajudar o dono. Mordeu o caranguejo com força, recebeu uma pinçada no rabo em resposta. Delfim se levantou e pulou em cima do bicho, libertando o cachorro. Ardiloso, o caranguejo abriu e fechou as pinças até encontrar o braço do pirata. Depois do urro de dor, Anabela decidiu intervir de novo.

Empurrou-o para o lado, jogou a rede em cima do animal e puxou a corda que fechava a boca da malha. O caranguejo se debateu o quanto pôde, mas as pinças não conseguiram vencer a linha da malha fina. Então ela não conseguiu evitar uma gargalhada.

— Um pouco diferente do que eu imaginava dos mortos… — Anabela sorriu de lado para Delfim, ficando séria de repente.

Ele estava pálido, segurando o braço do machucado. Por cima do casaco molhado não dava pra ver se havia sangue, mas a expressão de Delfim dizia tudo.

— Ah não… ele te acertou aí? Tira o casaco, deixa eu dar uma molhada.

— Deixa… você não é médica…

— Mas sei refazer um curativo se precisar.

Anabela mediu o nível de dor a partir do fato dele não ter discutido mais, tirou o casaco e ficou sentado na areia. A blusa sem mangas enxarcada estava quase transparente, e se ela correu os olhos por ali antes de focar onde devia, não tinha ninguém por perto para julgar. A atadura estava já quase toda vermelha, com um pouco de sangue escorrendo. Delfim inspirava e expirava devagar, os lábios apertados numa linha fina.

— Com certeza vai passar depois de um tempo… — Ela retirou o curativo ensopado, avaliando o aspecto da ferida. Estava inchada, mas não parecia nem melhor nem pior, exatamente como o veneno de Nero costumava trabalhar. A essa altura, o organismo já devia estar com problemas para combater qualquer problema no corpo, não só a cicatrização do machucado. — A dor é contínua ou está pulsando?

— Pulsando.

Ajeitando os óculos no rosto, Anabela ponderou sobre as opções que tinha para ajudar. Delfim não gostaria de nenhuma delas.

— Se eu usar um método controverso de anestesia você me promete que ainda vai cumprir o nosso acordo?

— Isso te impediria de fazer o antídoto depois?

— Não.

— Então por que eu não cumpriria?

— Porque se eu conseguir, tenho a impressão que você vai ficar bastante chateado e não vai nem querer olhar na minha cara depois. E se eu não conseguir… bom, vai ter sido doloroso à toa.

Doloroso era um grande eufemismo, mas não seria ela a dizer. Delfim deu uma bufada de riso fraco, franzindo a testa enquanto apertava mais o braço. Ladrão ganiu baixinho, tocando a mão dele com o focinho.

— Na verdade... eu conseguir deixar de olhar pra você por alguns instantes pode até ser uma boa ideia, pode fazer o que tem que fazer.

Incerta se tinha acabado de ser elogiada ou não, e mais incerta ainda sobre porque pareceu que seus órgãos internos tinham dado uma cambalhota, Anabela pigarreou e se lançou ao trabalho. As condições de coleta estavam longe de serem ideais, ou cientificamente precisas, então tentou não pensar na enorme lista de experimentos fracassados que tinha deixado pra trás antes de sair em viagem. O improviso teria que funcionar.

Voltou para a linha d’água, onde tinha visto uma agregação de conchas familiares, precisava achar a criatura certa, e do tamanho certo. O tempo todo sentiu o olhar de Delfim e Ladrão acompanhando seus movimentos, aumentando seu nervosismo. Com certeza não era uma boa ideia contar pra ele que se desse errado, daria muito errado.

Entre bivalves e gastrópodes, encontrou uma concha circular com o desenho de uma espiral, do tamanho de uma mão. O molusco, pobre coitado, se arrastava pelo fundo entre as duas metades da concha entreaberta sem saber que estava prestes a ser sacrificado. Deu cutucadas de leve com a bota, até o animal se retrair todo para dentro, então o tirou da água.

— Preciso de uma faca.

Delfim não hesitou em tirar uma do cinto e lhe entregar, como se tivesse certeza de que não estava fazendo nada para enganá-lo e escapar. Ou ele estava muito afetado pela dor, ou ela era muito trouxa por não ter pensado em tirar proveito daquela situação. Não que houvesse pra onde ir se largasse ele ali, não teria como remar até Porto Aveiro sem ser capturada de novo.

Com dois cadarços que tirou da amarração das próprias botas, fez dois torniquetes improvisados no braço dele, um acima e outro abaixo da ferida. Também cortou uma tira da própria blusa para improvisar como um novo curativo. De tempos em tempos, dava pequenas batidinhas na concha, para que o molusco se sentisse ameaçado.

— Por que eu tô com a sensação que você vai me envenenar?

Foi a vez dela soltar uma bufada de riso, no seu caso para esconder o nervosismo, porque era exatamente aquilo que ia fazer. Respirando fundo, e pedindo desculpas silenciosas ao animal, Anabela bateu com o cabo da faca bem no centro da espiral da concha, e depois disso fez os movimentos seguintes o mais rápido que pôde.

— Anabela, o que…

Tirou os cacos da concha de cima, revelando a pequena criatura disforme lá dentro, e antes que pudesse pensar mais, virou o animal contra a ferida aberta usando a concha debaixo como escudo para a própria mão.

O grito de Delfim ecoou pelos Atóis, não duvidaria se tivesse sido ouvido no navio. Ladrão latiu e Anabela precisou segurá-lo pelo pescoço com uma mão enquanto a outra mantinha a concha pela metade apertada contra o machucado. Nos instantes seguintes, aprendeu vários novos xingamentos enquanto o pirata balançava o braço e dava socos na areia.

— Eu sei… acredita, eu sei… mas prometo que depois não vai doer mais… — Se ela tivesse acertado o tamanho do bicho e ele não ficasse completamente paralisado, um mero detalhe que preferira não falar. Fez força para tentar mantê-lo no lugar.

— Mas que… o que… parece que você tacou fogo no meu braço!

— Não sei como vocês chamam isso por aqui. Na Ilha de Cedro conhecemos como marisco-ardente.

— Por que será? — ele disse entredentes.

— Quando ele se sente ameaçado, libera toxinas paralisantes com propriedades anestésicas. Em Sorra, muitos farmacêuticos usam como um componente de remédios, alguns cozinheiros até usam pequenas doses em receitas, pra dar a dormência na língua, sabe? Nunca tomou cachaça de marisco-ardente?

— Não posso dizer que é uma iguaria conhecida na região.

— Bom, você devia provar. Da próxima vez que saquear um navio sorrense, pode procurar nos estoques da cozinha. Não que eu recomende que você continue na vida de pirata, se sobreviver a Nero. — Com um suspiro, Anabela se calou. Esperava que ele não tivesse reparado que ela tagarelava quando ficava nervosa.

Com o rosto pálido de dor, o nariz sangrando por conta do golpe do caranguejo, e um cachorro que o observava como se ele fosse morrer a qualquer instante, Delfim compunha uma cena patética. Não conseguiu evitar a pontada de pena, mesmo ciente de que ele não merecia. Se estava naquela situação horrível, era justamente pela vida de pirataria que tinha escolhido.

Aos poucos o corpo de Delfim relaxou, e o olhar de sofrimento foi substituído por um de desconfiança.

— A dor está realmente passando.

— Viu só.

— Porque você fez todo aquele drama no início?

— Bom… só pro caso dessa não ter sido uma das piores dores da sua vida, o uso direto das toxinas na pele tem efeitos colaterais…

Devagar, removeu a concha com o molusco, revelando a ferida e a queimadura. Onde antes havia linhas desenhadas, via-se apenas pele meio vermelha meio amarronzada. As tatuagens onde o marisco tinha tocado estavam completamente arruinadas.

— Isso com um tempo vai virar uma casca e cair… mas não vai ficar como era antes e…

Ele franziu a testa para o machucado, coçou a barba do cavanhaque. Com as tiras da camisa que tinha cortado, enfaixou a região de novo, se perguntando quanto tempo levaria para Delfim perceber — e surtar.

— Você estava preocupada com as minhas tatuagens?

— Também. Acho que se não fossem importantes pra você, você não tinha feito. — Estava sendo sincera, logo mais abaixo tinha uma de Ladrão e depois de ter navegado atrás dela por causa do cachorro, tinha certeza que ele não gostaria de perder aquela. — Mas… não é esse o pior efeito… você, hm, vai ficar um tempo sem conseguir mexer o braço.

A informação demorou a ser recebida. Delfim a encarou como se ela não tivesse sido clara, até tentar levantar o braço. Ele arregalou os olhos, tentando de novo, sem sucesso.

— Como assim? Quanto tempo?

— Não sei, varia de organismo pra organismo. O torniquete vai ajudar a conter o pior golpe da toxina na região, e a julgar pelo seu tamanho e peso… um pouco mais que um dia? Dois?

— Dois dias sem mexer o braço, você tá maluca?! E se formos atacados?!

— Veja pelo lado positivo, é só o braço e não o corpo inteiro. E não tá doendo mais! E estamos aqui nesse lugar onde todos vocês têm medo de vir então ninguém vai nos atacar num futuro próximo.

— Essa é a sua lista de vantagens? E se o movimento não voltar?!

— Também gostaria de ressaltar que você gritou a plenos pulmões e nenhum espírito amaldiçoado veio nos pegar.

— Não é hora de jogar na minha cara as superstições da tripulação!

Considerou um sinal positivo quando ele revirou os olhos e ficou de pé, sinal que a toxina não ia mesmo atingir o corpo todo. Delfim grunhiu quando tentou mexer o braço e ele apenas pendeu ao lado do corpo como um pedaço de pano.

— Eu tô me sentindo uma alga! Você tem certeza que vai voltar?

— Absoluta.

— Se não voltar eu vou te-

Anabela estalou a língua e lhe deu as costas. Se estava fazendo ameaças, estava bem e ela precisava se manter prática. A coleta de substâncias para o antídoto não podia ser tão improvisada quanto aquela anestesia.

— Convenhamos, não tem nada pior do que você já vai fazer comigo me entregando pra Nero, então, pode economizar as ameaças. E, falando nisso, que tal nos dedicarmos ao que realmente viemos fazer aqui? Se eu fizer uma tipoia, você consegue mergulhar ou prefere ficar só segurando o balde na areia?

— Fica tranquila que depois dessa eu não vou deixar você andar por aí sozinha tendo ideias. Eu posso não entender de toxinas igual um químico, mas isso que você fez comigo foi arriscado, não foi?

Apesar do tom exasperado, ele a ajudou a cortar o casaco esquecido na areia para amarrar o braço. Delfim também era um homem prático, apesar do drama. Com a proximidade que o cuidado exigia, Anabela teve uma visão privilegiada das linhas dos músculos do braço e do pescoço, de outras tatuagens, e do arrepio que percorria a pele dele quando o tocava. Não que ela estivesse reparando, não que ela se importasse.

— Tão perigoso quanto balançar duas pessoas penduradas num muro e cair em cima de uma tenda torcendo pra ela aguentar o peso. Não pense que eu esqueci que você já quase me matou umas três vezes.

Era naquele tipo de pensamento que devia se agarrar, a cooperação do momento era só algo que servia a ambos. Os pequenos picos de adrenalina que sentia quando as mãos se esbarravam na hora de ajeitar o braço dentro da tipoia improvisada não significavam nada.

Delfim pigarreou quando se levantaram.

— Estamos quites pelo pêndulo humano, então?

— Acho melhor não criarmos uma lista de compensação, você sabe que nada vai se equiparar ao que eu vou sofrer quando você me entregar a Nero.

As palavras duras funcionaram para silenciá-lo, como queria. Aquelas conversas, os olhares, não os levariam a lugar nenhum. Anabela se virou para o material que tinham trazido, e começou a preparar o que iam precisar.

Não podia se esquecer que ela própria não deveria ter nenhum interesse no bem estar daquele pirata que não fosse pra garantir a própria sobrevivência. Estavam ali porque tinha barganhado por tempo e nada mais, o acordo era só outro tipo de método controverso de anestesia pensado no improviso.

— E você sabe que seu irmão vai me fazer pagar em dobro, não sabe? Eu não vou ter como fugir quando ele souber.

Delfim não tinha como saber, e se soubesse com certeza não se importaria. A sua morte, nas mãos do mesmo homem que matara Gamão, empurraria Castro pelo precipício por onde vinha navegando nos últimos anos, num equilíbrio tênue. O luto tinha passado por eles sem passar de verdade, como ondas arrebentando nas pedras, deixando poças com cheiro de peixe pra trás. Para uma família que passava tanto tempo distante, viajando, talvez as perdas permanentes não devessem ser tão sentidas. Não havia um Argo que não tivesse morrido no mar, alguns de forma menos turbulenta do que outros. Mas Gamão tinha sido tirado de todos eles, arrancado do mastro de onde fazia planos e enxergava a vida que tinha pela frente.

A promessa que tinha feito com Castro, de verem o futuro planejado pelo irmão mais velho acontecendo, os tinha movido adiante e dado um propósito quando nada fazia sentido, quando não parecia haver mais espaço para nada além de vingança. Eles deveriam ir juntos para o continente, assumir as responsabilidades que deviam ao reino, e por mais que tivesse crescido achando que os irmãos eram capazes de tudo, Anabela duvidava da capacidade - a vontade - de Castro seguir em frente sozinho.

Caminhou para dentro da água, tentando deixar os pensamentos para trás. Não estava sendo prática e ainda não estava tudo acabado.

— Eu não gosto do que estou fazendo — disse Delfim, de repente ao seu lado.

— Não faz diferença.

— Claro que faz. Eu vou te dar todas as chances que eu puder, se isso não colocar a minha irmã e a minha tripulação em risco.

O que era um grande ‘se’, um que provavelmente não valia a pena discutir. Talvez fosse possível que, ao contrário do senso comum para um pirata, ele estivesse se sentindo culpado. Só que não seria o suficiente, e o melhor que ela podia fazer era contar apenas consigo mesma para se manter viva o máximo de tempo possível. Ajeitou a máscara no rosto, e indicou para ele fazer o mesmo, a conversa estava encerrada.

 Continua….

Nas próximas edições

 Ufa, Ladrão está bem! Por enquanto. No próximo capítulo, que outras criaturas inusitadas Anabela e Delfim vão encontrar no fundo dos atóis? E depois disso, será que ele vai cumprir com o seu lado do acordo??

E na semana que vem, uma outra criatura que tem ocupado bastante espaço na minha cabeça, uma que vai nadando bem devagarzinho...