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20.000 Histórias Submarinas - #9 Águas-vivas no baldinho

É possível que essa seja uma das edições com mais idas e vindas até o presente momento dessa newsletter. É o que acontece quando eu tento falar de ciência, escrita e memórias de infância num tópico só, e com alguma sorte no futuro esse monte de palavras viajantes faça algum sentido no formato de uma história.

 Atenção! Para evitar ser queimado pelos tentáculos dos erros de digitação, mantenha-se dentro da embarcação, a maioria deles é inofensivo.

Águas-vivas no baldinho

Hoje é mais um dia que venho falar sobre uma(s) criatura(s) que me fascina e de tempos em tempos aluga um espaço na parte não científica da minha cabeça. Quando eu era criança e a praia que eu mais tinha acesso a frequentar era na região dos lagos (norte do estado do RJ), onde a água gelada é bastante propícia pro surgimento desses animais, eu tinha muito medo de águas-vivas. Entrava no mar com desconfiança, tentando ver antes de mergulhar se no meio da espuma da arrebentação não tinha aquele fantasminha que deixava a pele vermelha e ardida. De vez em quando alguma outra criança – muito mais corajosa do que eu – pegava uma num baldinho e eu tinha a oportunidade de olhar pra ela de um lugar seguro. Não posso dizer que a minha versão infantil sabia colocar em palavras as muitas perguntas que as águas-vivas me despertavam, mas em geral elas giravam em torno de:

Como pode essa coisa estar viva? Era realmente feita de água? Se água podia criar vida, o mar era um lugar bem mais perigoso do que eu imaginava? Ela veio fazer o que tão perto da areia se ela não me queimava por querer (como algum tio meu fazia questão de afirmar)? Como assim tem uma parte dela que pode botar a mão que não queima e a outra sim? (Não que eu jamais tivesse tirado a prova, apesar de ver outras crianças fazendo essa loucura.) Na areia, elas eram mais estranhas do que no baldinho dos corajosos. Eu não conseguia entender se ainda estava viva (uma água-morta?), se ainda podia estragar o resto da minha preciosa estadia na praia, ou se havia coisas mais esquisitas ainda que eu não sabia sobre elas.

Nos invertebrados marinhos é bastante comum nos depararmos com seres vivos que nos deixam na dúvida: é bicho ou é planta? No caso das águas-vivas, pessoalmente, não acho que se pareçam nem com um nem com outro, o que é um feito compartilhado com toda a filo Cnidaria, da qual fazem parte. Dentro dos cnidários, temos anêmonas, corais, alguns animais microscópicos, e espécies de diferentes classes e gêneros que acabam sendo agrupados sob o termo água-viva. (Calma, corais são parentes das águas-vivas? Eu te respondo, sim! Boom!) A característica que une todos os cnidários, é a presença dos cnidoblastos (adoro esse nome, acho dramático), que são as células que de fato causam as queimaduras quando entram em contato com outros organismos, a intensidade da queimadura variando bastante de espécie pra espécie.

Variedade, aliás, é uma boa palavra pra falar de águas-vivas. Diferentes tamanhos, cores, formatos... habitam todas as partes dos oceanos (de um continente a outro, da superfície ao fundo abissal), e possuem um ciclo de vida complexo em que passam por diversas fases antes de ter a aparência típica que a maioria das pessoas reconhece, com o corpo em forma de sino e os tentáculos. Aliás, essa forma mais conhecida das águas-vivas é normalmente chamada de a fase “medusa”, um termo que eu gosto muito.

Tendo em mente as muitas curiosidades que eu poderia ficar falando por aqui (e não querendo pular direto pras minhas loucuras na escrita), recorri a ajuda de um amigo para essa edição e pedi pro Ariel (meu amigo, o escritor profissional Ariel Ayres que se você não leu, devia) me fazer três perguntas sobre águas-vivas, assim pelo menos uma parte sairia organizada.

*

 1 – Elas são sencientes?

Ahá, Aline Valek estava certa! As águas-vivas não sabem de si! (Aliás, se você não leu esse livro, tá aqui mais do que recomendado. Uma ficção oceanográfica (não sei bem, mas acho que não é uma ficção científica, exatamente?) muito bem pesquisada, as partes especulativas bem calcadas no conhecimento científico atual e pavimentando o caminho pro desenrolar da história.)

Mas, vamos dar um passo atrás, porque o termo ‘senciente’ muitas vezes é usado pra se referir a diferentes contextos. Na definição mais simples de todas, senciente é um ser que é capaz de ter sensações e/ou sentimentos. Numa definição um pouco mais complexa, é um ser como nós, Homo sapiens, que é capaz de ter sensações/sentimentos com consciência.

Quando falamos de senciencia em animais as coisas ficam um pouco confusas porque nosso entendimento do que de fato se passa na cabeça deles é limitado. Sabemos, por exemplo, que animais sentem dor e que são capazes de aprender o que lhe causa dor. Avançando um pouco mais, sabemos também que animais domésticos são capazes de sentir ansiedade de separação quando os humanos ficam muito tempo longe e que isso lhes causa sofrimento – quer dizer, são conscientes do mundo e das criaturas ao seu redor, tendo sentimentos e sensações em reação a esses fatores. Para algumas correntes de pensamento, isso é suficiente para classificar como senciente. Para outras, uma certa complexidade a mais é necessária, quase sempre julgada em comparação aos próprios seres humanos, e aqui seriam considerados sencientes os animais que demonstram ter algo próximo de uma cultura. (Aliás, na ficção científica da Carol Chiovatto, Senciente Nível 5, essa gradação de senciência é tratada de um jeito muito interessante)

Tradicionalmente, a maioria dos animais invertebrados não é considerada sencientes nesse nível mais complexo, principalmente por causa do sistema nervoso que, em geral, não é centralizado (não têm o que se poderia chamar de um cérebro funcional). As águas-vivas caem nessa categoria de claramente terem sensações físicas (sensações físicas são básicas para sobrevivência animal), mas não terem nenhum comportamento que demonstre terem consciência sobre essas sensações. Elas vivem, e seguem seus instintos natos dentro do ciclo de vida de cada espécie, mas muito provavelmente não compreendem que vivem – não como nós compreendemos a nossa vida, pelo menos.

 2 – Como se alimentam?

As águas-vivas são consideradas carnívoras, apesar desse termo passar uma ideia um pouco descasada de como se dá a alimentação delas. Elas não caçam ativamente, na verdade se alimentam de forma passiva, capturando as presas (microscópicas ou macroscópicas) de forma oportunística. Meio que vão nadando e o que cair na rede, ops, tentáculos, é peixe. A partir do momento que os tentáculos encontram organismos, o movimento leva a presa até a boca, onde ela é ingerida. Aliás, mais um momento boom: a boca também é o ânus. Depois que o alimento é digerido, é excretado pelo mesmo orifício por onde entrou. E assim, vou encerrar essa resposta por aqui mesmo.

 3 – Como elas dão a sensação de “choque”?  

Essa é provavelmente a primeira coisa que todo mundo lembra se tratando de águas-vivas: não encosta que a bicha queima! Como falei lá em cima, todos os cnidários apresentam os cnidócitos, as células que causam esses choques/queimaduras. Dentro do cnidócito fica o nematocisto, o filamento que libera a toxina. Na fase medusa das águas-vivas, essas células se concentram nos tentáculos e ficam sempre engatilhadas, sendo ativadas a partir do contato.

Nem toda água-viva queima, e algumas causam reações muito mais adversas do que outras. Um dos exemplos mais dolorosos é o da caravela. A caravela, taxonomicamente falando, não faz parte dos grupos tradicionais de águas-vivas, mas continua sendo um cnidário com aspecto gelatinoso e cujos tentáculos são capazes de queimaduras horríveis. E um diferencial também é que uma caravela, como a da foto, não é um animal, é na verdade uma colônia de diversos organismos especializados, porém geneticamente idênticos, que funcionam em conjunto com se fossem um único indivíduo.

*

Repare que, guardadas as devidas proporções, as perguntas do Ariel foram bem próximas das perguntas da Lis criança, e aposto que essas eram coisas que você que está lendo pode já ter se perguntado em algum momento. Entrando num baita achismo meu aqui, creio que os seres humanos inconscientemente percebem as mesmas “estranhezas” quando se deparam com um ser vivo tão diferente deles mesmos, e tão diferente dos animais que nos são mais próximos.

As águas-vivas são tão à parte, que mal ocupam um lugar no nosso imaginário mais próximo. Mesmo com as queimaduras, com o aspecto fantasmagórico, e com a beleza de seus movimentos, elas ficam deslocadas na nossa visão do mundo. Ao contrário dos corais, não podem ser relegadas apenas ao cenário, e ao contrário de animais como crustáceos e moluscos, não são tangíveis o suficiente para terem uma personalidade aos nossos olhos.

Aqui lembro (de novo) de Procurando Nemo. Todos os animais tinham vozes e personalidade e intensão, menos as águas-vivas. Mesmo toda pequenininha e fofinha, a primeira medusa que queima a Dory é quase como se fosse um animal para os outros animais, e em seguida a floresta perigosa que Dory e Marlin precisam atravessar é perigosa apenas por ser — não tem nenhuma intenção ou demonstração de consciência sobre o que vai acontecer com os peixinhos. Não sabem de si nem dos outros.

Mas gosto de imaginar algo mais para elas. Na ficção especulativa temos criaturas de pedra, barro, fogo... qualquer coisa. Por que não as medusas? Acho que por isso eu gosto tanto das águas-vivas do Espanta Tubarões, Ernie e Bernie, com suas gírias e maneirismos de capangas paz e amor (aliás, eles foram dublados/interpretados por Ziggy Marley e Doug E Doug, se vocês precisavam de algum motivo pra assistir esse filme). E também por isso gosto tanto do capítulo da água-viva no livro da Aline Valek (aqui vem a segunda insistência pra vocês irem ler esse livro agora, assim que terminarem de ler a newsletter), só que nesse caso eu não vou elaborar pra não interferir na sensação da história.

E é engraçado que elas fiquem nesse meio caminho entre cenário e figurantes indefinidos nas histórias, porque boa parte da nomenclatura das águas-vivas vem da mitologia. Não sei quem foi o cientista que escolheu o nome para a fase medusa, mas é perfeito que uma criatura com tentáculos conectados a cabeça que podem causar paralisia seja nomeada como essa personagem mitológica que transformava pessoas em pedra. Nos nomes científicos das espécies também vemos a mitologia aparecendo, como a espécie Cassiopea andromeda, que junta mãe e filha de uma outra história grega. Um outro gênero, Chrysaora, vem do nome do gigante Chrysaor, filho de Poseidon e Medusa — muito apropriado. (Cientistas são bons em nomear as coisas, admita.)

Acho que a sonoridade dos nomes científicos inspirados na mitologia e a própria morfologia das águas-vivas criou na minha cabeça uma mistura difícil de definir. Gosto de tentar descrever a forma como se locomovem, de como são mesmo tempo transparentes e coloridas, e de tentar colocar suas características na personagem principal do meu projeto atual (já falei dele aqui, o projeto do Farol).

Lira é uma mulher que vive numa cidadezinha pequena de uma ilha, e ao mesmo tempo que pertence ao lugar também é diferente e à parte do contexto das outras pessoas. Incompreendida, funciona em outro ritmo, e provavelmente vai te dar uma ferroada bem venenosa se você se aproximar dela do jeito errado. Como falei na edição #2 Faróis dessa newsletter, a ideia pra essa história começou com o farol, mas tem alguns outros elementos marítimos importantes e um deles é o abismo oceânico. Quando eu estava delineando os personagens e atrás de figuras para os personagens, me deparei com uma daquelas fotos de várias águas-vivas bioluminescentes numa zona profunda e escura, e tudo se encaixou. As águas-vivas eram perfeitas pro que eu estava procurando para a história, e acabaram alimentando e complementando o ponto de partida da inspiração original. Então, farol + abismo + águas-vivas + [spoiler], é esquisito mas acho que funciona — ou, eu como escritora tenho que dar um jeito de fazer funcionar. Como diz a Anna Martino, é parte do nosso trabalho fazer parecer que a gente sabia do que estava falando desde o início!

Acho que não deixa de ser o jeito da Lis adulta fazer as pazes com as águas-vivas sem precisar coloca-las num baldinho de plástico enquanto reflete sobre esquisitices oceânicas (não peguem animais marinhos na praia, gente!). Hoje eu consigo ficar horas só olhando pro nadar de uma medusa, enxergando mais beleza e mistério do que estranheza ou nomes científicos, e espero que entre ferroadas e queimaduras elas encontrem um lugarzinho no coração de vocês também.

Aqui em baixo está uma arte que eu fiz com uma citação de Emily Dickinson que casa com a história da Lira e as águas-vivas e o farol e o abismo. Concordo com ela, dentro e fora da ficção especulativa.

Nas próximas edições...

Semana que vem o capítulo 11 de Areia e Pólvora (ou seria Aveia e Pavlova, hein Ana?) traz um mergulho nos atóis e talvez uma maldição? Anabela tem certeza que não é nada sobrenatural, é só culpa da banheira velha que é o navio de Delfim. Ladrão continua latindo entre os dois humanos teimosos de quem ele gosta muito.