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20.000 Histórias Submarinas - #8 Correntes Marinhas

Dizem por aí que as pessoas que acompanham a newsletter também gostam das edições temáticas de oceanografia, e não estão aqui só pra passear de navio com Ladrão, o vira-lata mais esperto dos Mares Esquecidos.

Então, hoje volto com mais um tópico marinho!

Lembre-se de vestir o colete salva-digitação, e embarque com cautela, porque hoje vamos seguir com as correntes.

Correntes Marinhas e a Escala dos Oceanos

A verdade é que comecei escrevendo isso só sobre correntes, tinha colocado até uns gráficos. Aí apaguei tudo porque eu não tenho a menor pretensão de resumir bem alguns semestres de oceanografia física numa edição de newsletter. Muito do que eu pensava em falar precisava de algum outro conhecimento ou informação prévia e não sei se as pessoas que estão lendo tirariam algum proveito disso. Foi aí que me peguei pensando que para falar sobre oceanografia muitas vezes precisamos falar sobre escalas. O oceano é um mundo de gigantes tanto quanto é um mundo microscópico, e ser oceanógrafo muitas vezes é transitar de um universo pro outro e passar por tudo que há entre eles.

Se me permitem um breve momento erudito, há mais coisas entre as zonas abissais e a superfície do mar do que supõe a nossa vã filosofia.

Então, sumi com os números, e trouxe até uma referência a Procurando Nemo.

Tempos atrás, em algum momento de insônia perguntei pro universo (a rede social das tretas) o que mais impressionava/assustava/dava curiosidade nas pessoas sobre o mar. O oceano é vasto, e a relação de cada um com ele é igualmente ampla. Algumas respostas aqui e ali (alô pessoas insones!), uma me chamou atenção...

Aproveito pra deixar aqui o agradecimento pela participação especial (e surpresa!) do Moacir . Ele é um escritor cearense que também tem uma newsletter e que vale muito a pena acompanhar; podem assinar aqui e não perder o fioDAmeada.

Acho que as correntes marinhas fazem parte da lista inconsciente do que faz o oceano misterioso para a maioria das pessoas, dão um pouco de dimensão do tamanho mensurável porém de difícil percepção que o mundo tem. São as engrenagens por trás do velho tropo do náufrago que joga uma mensagem dentro de uma garrafa, para ser levada pelas águas até ser encontrada por alguém numa outra praia distante anos depois (ou engolida por um animal marinho, não joguem lixo no mar, por favor!).

Mas como isso funciona? É possível mesmo fazer isso, jogar um objeto que será reencontrado depois? Bom, sim e não, depende. Vamos lá.

Disse lá em cima e reforço, um aspecto importante que sempre precisa ser levado em consideração na oceanografia é a escala. Todos os fenômenos naturais acontecem em diferentes escalas de tempo e espaço, podem ocorrer num curto período (ex: minutos ou horas) e dentro de uma distância limitada (ex: a Praia da Costa, em Itacaré – BA), ou podem precisar de muito tempo (ex: centenas de anos) e de uma grande área (ex: a costa brasileira) para serem sequer reconhecíveis como fenômeno.

O oceano é cheio de movimentos, e apesar do termo corrente ser usado de forma genérica para se referir a essas movimentações, são fenômenos diferentes. A maré, por exemplo, é uma movimentação periódica dos oceanos que pode gerar circulações locais e costeiras (de pequena escala). As correntes de retorno nas praias, causadas pela ação conjunta de onda e vento (e um perigo real para banhistas), são outro exemplo. Esses pequenos fenômenos são aqueles que as comunidades locais conhecem como a palma da mão, são os que pescadores sabem identificar só de bater o olho e tomam suas decisões diárias a partir delas, sabendo que no dia seguinte pode estar diferente ou que vai ficar daquele jeito por alguns dias.  

E temos outros fenômenos bem grandes também, mas de uma natureza mais vertical. De baixo para cima temos as ressurgências (alô, pessoas de Arraial do Cabo e Cabo Frio!), que são causadas pela elevação de águas mais frias do fundo para a superfície. O contrário também pode acontecer, com uma série de processos físicos gerando o bombeamento de águas da superfície para o fundo.

As correntes marinhas de facto, as famosas, são fenômenos muito grandes e de natureza contínua, com nome e sobrenome. Pela definição mais básica, são grandes movimentos horizontais de água, causados (num grande resumo) pela combinação das forças do vento, do efeito de Coriolis (que eu vou ficar devendo explicar agora, porque seria uma edição por si só!) e das características físico-químicas das camadas de água. Assim, temos esses grandes corpos de água que se deslocam no oceano ou mais próximas da superfície (correntes superficiais) dominadas principalmente pelo vento, ou em grandes profundidades (correntes de fundo) dominadas principalmente pelas diferenças de densidade. Os dois tipos estão conectados (como tudo nos oceanos e no planeta, aliás).

A grosso modo, a circulação oceânica global tem essa cara:

E claro que quanto mais nos aproximamos de cada região e observamos com maior resolução, percebemos movimentos mais específicos. A partir daqui, vamos focar mais nas correntes mais superficiais. Essas são as principais:

O Brasil, como mostra a imagem acima, tem sua própria corrente! Ela vem com águas quentinhas do Equador, descendo pela nossa costa, se aproximando principalmente da região nordeste. No sul, ela começa a interagir com a corrente das Malvinas (mais fria e mais funda) e se afastar da costa.

E se você tem uma idade próxima da minha e viu Procurando Nemo incontáveis vezes, deve estar se perguntando sobre ela, a Corrente Leste Australiana, que ajuda o Marlin e a Dory a chegarem em Sidney. Bom, SIM, ela existe e ela realmente passa relativamente perto de Sidney!! Ela tem aquele formatinho bonitinho de montanha-russa para as tartarugas surfistas se divertirem? Não, mas nesta newsletter não criticamos a liberdade criativa da ficção.

Inclusive, a realidade dos movimentos oceânicos também tem suas variações muito bonitas de se observar. Esse mapa com setas resumidas não dá a dimensão das idas e vindas que a água do mar faz. As correntes não andam de verdade em linha reta, elas vão reagindo à geografia dos oceanos e aos fenômenos climáticos, criam pequenos meandros em seu caminho. Para mim, essa é a forma mais linda de olhar para uma corrente:

Que diferença, não é? Ver a corrente do Golfo como uma seta num mapa e olhar para uma obra de arte em escala de cor representando a variação de temperatura da água em movimento.

E percebam que em algumas escalas não podemos observar alguns fenômenos. Se dermos um zoom bem no meio de um dos giros, não veremos que todos estão conectados e parte de um movimento maior, e se nos afastarmos demais não veremos os giros, só perceberemos a direção bruta do movimento. Deixo aqui o espaço pra cada um extrair as próprias metáforas, pensar em como um olhar mais próximo ou mais distante nos faz perceber diferentes aspectos da vida e até de nós mesmos.

Agora, voltando lá na pergunta do início... se você jogar a garrafa com a mensagem lá de Itacaré – BA, ela pode ser recebida, digamos... na Cidade do Cabo – África do Sul? Talvez. A grosso modo, o movimento geral da circulação no Atlântico Sul favorece a possibilidade. Mas antes de sequer uma garrafa da praia chegar na Corrente do Brasil, ela tem que vencer as ondas da praia, as movimentações de pequena escala costeira, não ser atingida por nenhum barco, não ser levada para o fundo, não etc de coisas. É possível, mas não é provável. Agora, da Praia da Costa em Itacaré para a Praia da Ribeira... as chances aumentam! A distância diminui, o tempo diminui, a quantidade de coisas que podem acontecer com a garrafa também diminui.

Uma vez uma tempestade desprendeu um equipamento do meu laboratório que estava coletando dados acústicos na Ilha da Trindade. Quando soubemos, passei por três dias navegação angustiantes até chegar na ilha e com uma única esperança: um outro pesquisador também tinha perdido um equipamento, e o dele fora reencontrado em outra praia da ilha! A praia é conhecida informalmente como praia do lixo, ali basicamente vai parar todo o lixo carregado pela circulação das águas naquele pedacinho do Atlântico Sul. E no meio de todo tipo possível de tralha... não encontrei nosso amostrador. Acreditamos que por ter passado muito tempo embaixo d’água coletando, o ar interno do equipamento tenha esfriado ao ponto de equalizar a densidade do equipamento com a água. Sabemos que isso pode acontecer porque em algumas manutenções vimos que o equipamento não fazia mais força pra subir contra a amarração. Ou seja, o bichinho não flutuou quando o cabo arrebentou, acompanhou o movimento que estava acontecendo no fundo e não na superfície. Hoje não tenho a menor ideia de onde ele está, mas se algum dia você ver flutuando por aí um grande tubo amarelo com o nome MAQUA-UERJ pintado de preto, pode me dar um alô!

Boa parte das pesquisas em oceanografia se concentram em compreender os movimentos circulatórios, gerar modelos previsíveis sobre o oceano. Não porque é legal saber que se você perder um equipamento num lugar pode recuperá-lo em outro, mas porque a circulação oceânica é uma peça fundamental no equilíbrio climático do planeta. Cada corrente desempenha um papel na região por onde passa, seja regulando a temperatura ou trazendo nutrientes ou um pouco de tudo. No atual estado de mudanças climáticas atuais – lembre-se, isso é uma realidade de agora, não é um problema do futuro – o desbalanço das correntes invariavelmente vai acarretar no desequilíbrio de ambientes marinhos e terrestres.

Acho que por isso essa edição vem mais fria e oceanográfica do que poética, com poucas reflexões criativas, não consigo falar sobre alguns temas sem ter em mente a situação desanimadora do descaso geral com meio ambiente. E isso nem é um mal exclusivamente brasileiro, está em todos os lugares. Confesso que muitas vezes eu fujo um pouco do assunto porque eu mesma tenho dificuldade de falar com esperança. Infelizmente, o aquecimento global não vai ser vencido apenas pela conscientização individual, no mundo que habitamos, a meia dúzia de gato pingado dona do dinheiro tem que querer interromper esse processo e eu não vejo sinais de que queira. Tá aí mais uma questão de escala.

Acho também que a própria dimensão do oceano dificulta convencer as pessoas que ações são necessárias. Da praia, ele parece tão imenso e tão poderoso, invencível, que é difícil acreditar que tenhamos a capacidade de alterá-lo. Bom, alteramos. Mais cedo ou mais tarde ele vai alterar nosso mundo também, em diversas escalas.

Só pra não encerrar essa edição com um clima ruim (desculpa o trocadilho), deixo aqui um polvo bebê porque não tem nenhum bom motivo pra não apreciar as coisas fofas da vida enquanto ainda podemos. 

Nas próximas edições...

Nas próximas edições...

Imagino que o sumiço de Ladrão esteja preocupando algumas pessoas, então vamos resolver isso no próximo capítulo de Areia e Pólvora!

E depois... quem sabe o que as correntes vão trazer?

Abraços e bom fim de semana!