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20.000 Histórias Submarinas - #7 Nomeando Baleias, Botos e Golfinhos

Tardou, mas não falhou!

Hoje falo um pouquinho da minha trajetória universitária e das criaturas marinhas que motivaram meu caminho na pesquisa, e de como nomes não significam tanta coisa assim...

Alerta! Esta newsletter foi escrita em final de semestre, pode conter erros de digitação, ao embarcar por favor use o colete salva-digitação.

Nomeando Baleias, Botos e Golfinhos

Eu ainda tenho os desenhos pra provar. Os cetáceos exercem um fascínio sobre mim desde a época que eu nem sabia que faziam parte de um único grupo chamado Cetacea. Eu vinha adiando esse tema da newsletter até sair o meu artigo na Revista Pretérita, pra poder comentar o próprio artigo e complementar algumas coisas que ficaram de fora. Possivelmente, nunca vou esgotar o assunto sobre baleias e golfinhos; lá trás quando escolhi oceanografia, seria mentira dizer que um dos motivos não foi o sonho secreto de nadar com as orcas, minha espécie favorita.

Aliás, pode ser que tudo tenha começado com Free Willy. Tudo mesmo, a parte oceanógrafa e a parte escritora. Aqui uma obra de arte da Lis de 8 anos, desenhando os filmes e fazendo as próprias alterações na história, uma fanfic desenhada!

Já na faculdade, eu tentei experimentar, testar as águas daquele mundo novo chamado ambiente universitário. Foram exatamente 3 semestres pra decidir que “foda-se, eu vou atrás do sonho secreto”. Bati na porta do MAQUA, o laboratório de mamíferos aquáticos da UERJ, pedi estágio, encarei o olhar duvidoso do professor que avisava que trabalhar com golfinho não era nada do que eu estava pensando e... 12 (DOZE) anos depois, aqui estou eu, pós-doutoranda sob a supervisão desse mesmo professor, que no final das contas foi o melhor orientador que uma pessoa teimosa como eu poderia ter encontrado pra seguir carreira na pesquisa.

Ele estava certo, trabalhar com baleias e golfinhos não é nada como as pessoas imaginam (pelo menos, na maior parte do tempo). Horas sob o sol, ou balançando num barco buscando os animais vivos ou numa praia cheia de moscas atraídas pela putrefação da carcaça de um animal morto. Tem bem menos momentos mágicos que Free Willy deu a entender, mas em compensação, cada um deles me levou adiante.

De todas as minhas experiências marítimas, olhar no olho de uma baleia sempre vai ser a mais marcante. Estar num bote inflável e ver o gigante passar bem ao lado coloca muitas coisas em perspectiva, por mais clichê que possa parecer.

Então, quando chegou o convite da Anna Martino pra fazer um artigo pra lindíssima edição de tema aquático da Pretérita, eu nem pensei muito. Já respondi no mesmo o que seria o tema do artigo, que ela tinha dito que podia ser da minha escolha. A caça à baleia é uma das principais formas que os animais são retratados na ficção, e dois grandes clássicos da literatura contribuíram pra que estivessem dessa forma no nosso imaginário. Não vou elaborar muito sobre isso aqui, porque espero que você tenha curiosidade de ir lá baixar a revista e ler. A edição está linda e os contos dentro dela estão maravilhosos, além de acompanhar uma receita no final!

Hoje, vim destrinchar um pouco mais sobre... o que são as baleias e golfinhos? A baleia orca é na verdade um golfinho??

Essa última pergunta é bem famosa, e costuma vir logo depois de você explicar pra alguém quais são as diferenças morfológicas entre baleias e golfinhos.

Dia desses eu comentei no twitter que eu não gostava quando fatos taxonômicos eram usados pra chocar as pessoas. As famosas frases de efeito: a orca é um golfinho! Aves são dinossauros! Borboletas são mariposas! Somos todos peixes! E por aí vai. E não é que sejam afirmações incorretas, mas são simplificações muito grandes voltadas pra impactar as pessoas, sem ter nenhum valor real de ensino ou conservacionista.

A taxonomia não é uma ciência para simplificações. Pelo contrário. A taxonomia vai nos mínimos detalhes, um único padrão específico de manchas na pele pode ser o suficiente pra separar uma espécie da outra (e aqui não vou entrar em outra discussão chocante de “ninguém sabe o que é uma espécie”).

A nomenclatura taxonômica e todos os seus conceitos não necessariamente casam com a forma como as pessoas conhecem e como se relacionam com as espécies. Algumas espécies de peixe são conhecidas por dezenas de nomes diferentes dados pelos pescadores de cada região. Você vai dizer que um pescador não conhece seu peixe só por não sabe o nome taxonômico da espécie e apontar as características morfológicas que diferem um peixe de outro? É óbvio que não. Até porque, ele sabe muito bem que o douradinho pode ser encontrado em tal lugar em tal hora do dia e que o mangaba não frequenta aquela mesma pedra. Chocar essa pessoa dizendo que o douradinho na verdade é o [insira aqui algo diferente e chocante] não serve de muita coisa, nem pro pescador, nem pro peixe.

Então, depois dessa volta toda, venho dizer que o mesmo acontece com baleias e golfinhos, e outros cetáceos que são esquecidos no rolê. A taxonomia dos mamíferos marinhos em geral é bastante resolvida, tem poucos pontos em disputa atualmente. Temos a ordem Cetartiodactyla, que engloba todas as espécies de baleias e golfinhos em diversas famílias e gêneros. No geral, o grande divisor são os dentes. As ditas “baleias verdadeiras” são as que possuem barbatanas na boca, as barbatanas são estruturas rígidas que permitem filtrar a água — esse grupo chamamos de misticetos. Os golfinhos possuem dentes, chamamos de odontocetos. Bem simples, na verdade. O fator causador de confusão está justamente na ideia por trás da nomenclatura comum, que surgiu a partir das primeiras observações baleeiras e não levava em consideração nada a não ser tamanho, principalmente nos países anglófonos. Basicamente, grande=baleia e pequeno=golfinho. Os primeiros cetólogos chamaram tudo com mais de cinco ou seis metros de baleia.

Então, o cachalote? Chamaram de baleia, mas taxonomicamente é um odontoceto. Orca? Baleia, mas taxonomicamente um odontoceto. Baleias bicudas (aliás, já tinha ouvido falar delas?), mesma coisa, baleias que na verdade são odontocetos.

Outra curiosidade! Botos, em geral? Odontocetos. Não existe nenhuma característica que difira um boto de um golfinho. A espécie do Fliper, por exemplo, o golfinho-nariz-de-garrafa é conhecida como boto-da-tainha em alguns lugares do Brasil. Nosso querido boto-cor-de-rosa, é um golfinho de rio! Taxonomicamente falando, ele é distante do boto-cinza, o golfinho mais comum na costa brasileira, mas ambos são golfinhos no sentido de que são odontocetos.

É uma salada de nomes, não é?

Bom, e então, as pessoas estão erradas ao chamarem odontocetos de baleias? NÃO. Errado tá quem não se importa com a exploração excessiva dos oceanos que ameaça todas as criaturas marinhas independente de como elas sejam chamadas ou reconhecidas pela taxonomia.

E veja bem, não estou dizendo que a taxonomia não importa. Pelo contrário, importa muito, fundamenta todas as pesquisas biológicas! Mas, na hora de passar o conhecimento adiante, eu creio que existem fatores não só mais úteis como também importantes. Por exemplo, é importante que um pescador reconheça que aquele animal que come peixes não é inimigo dele, não é concorrência. É importante que ele entenda que a conservação do boto/golfinho/baleia está diretamente relacionada com a saúde do ecossistema que sustenta sua pesca. É importante que turistas entendam que o ruído causado por seus barcos podem impactar o boto/golfinho/baleia.

Hoje em dia que a divulgação científica está tão em voga, e nesses tempos em que terraplanistas estão criando asas, acho que devemos ser responsáveis com a forma com que transmitimos o conhecimento. Citar fatos chocantes que podem causar risos numa mesa de bar pode ser divertido, a questão é o quanto isso é positivo para os animais.

Quer dizer, eu poderia tentar chocar vocês falando que os hipopótamos são parentes próximos das baleias e golfinhos, e que elefantes são parentes próximos dos peixes-boi. E depois de alguns segundos de surpresa, o que sobraria? O fato por si só não ensina muita coisa, né? Agora, pegar essa informação e desenvolvê-la trazendo contexto e mais dados e apontando questões relevantes... isso sim faz diferença para as pessoas. Principalmente numa época em que a maioria não se dá ao trabalho de pesquisar depois para entender melhor.

E desculpe se estou parecendo estraga-prazeres, a ideia não é essa. Eu sou só uma daquelas pessoas que acha que o mundo é fascinante demais pra ser resumido numa única frase, sou alguém que cresceu no interior querendo nadar com orcas e a afirmação de que orcas eram golfinhos não foi suficiente pra me satisfazer.

Então, deixo vocês aqui com o pedido: leiam meu artigo na Revista Pretérita, e se o assunto te interessar, leia mais. Sempre mais. Não existe “conhecimento demais”, existe apenas o acúmulo do conhecimento sem fazer nada sobre ele.

Em outros idiomas...

O meu conto Cephalopod Heart publicado na Revista Hexagon já está disponível! O volume 7 está disponível gratuitamente para ser baixado.

E como se ter sido selecionada não fosse suficiente, eu ainda tive a honra de ter a história escolhida para ser a capa da revista! E ninguém menos que DANTE LUIZ foi o ilustrador da capa. É provável que eu tenha gastado metade da minha sorte da vida com essa oportunidade. Eu sonhava com uma capa ilustrada por ele, e aconteceu, e não vou nem falar mais nada se não isso aqui vai virar um texto interminável e incoerente pois... DANTE LUIZ, sabe? A ilustração capturou perfeitamente os sentimentos da história, nem se eu tivesse encomendado teria saído tão próximo da ideia.

Semana que vem

Se você leu o último capítulo de Areia e Pólvora deve estar pensando que não é possível que Delfim vai ter a coragem de fazer aquilo... bom, semana que vem, veremos o que Anabela tem a dizer sobre o assunto!