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20.000 Histórias Submarinas - #5 Romantizando o mar

Bom, vou começar pedindo desculpas. Desculpa.

Eu tinha falado sobre uma News temática de Halloween (ou Helloween? Alguém sabe a diferença?), mas ao longo da última semana tanta coisa aconteceu e tantos pensamentos borbulharam que eu acabei mudando isso aqui em cima da hora.

Escrevo da quinta-feira, 28/10, depois de não ter dormido de quarta pra quinta, por ter relido uma história mais antiga, que foi o que faltava pra transbordar os pensamentos pra fora. Algumas coisas podem parecer meio sem conexão ou dar muitas voltas, mas as correntes oceânicas podem ser assim mesmo, cheias de meandros.

Alerta! Esta newsletter foi escrita após 24h sem dormir, pode conter erros de digitação, ao embarcar por favor use o colete salva-digitação.

Romantização, nerdices, mundos marinhos e por quês

Começou com reflexões sugeridas por colegas escritores — tá aí uma comunidade especialista nisso, aliás, recomendo ouvir o que escritores tem a dizer.

A primeira delas veio na Annalogias, o projeto da Anna Martino também através de newsletter (que eu recomendo demais assinar pra quem puder, o link é esse). Na Annalogias da semana passada, ela trouxe alguns pensamentos sobre a romantização do dia a dia, e um artigo falando sobre isso.

Eu logo de cara comecei a pensar sobre quais eram as coisas que eu romantizava no meu dia a dia, para o bem ou para mal. Cheiro de café fresco, o silêncio das primeiras horas da manhã, cozinhar com afeto, gosto do vinho... Romanticization as Worldbuilding, de Ella Syverson, fala como a consciência e o destaque para detalhes mundanos da nossa rotina podem ajudar a construir outros mundos fantásticos, vivos. Quais são as cores do outono? Como é a sensação de um cobertor quentinho? Como essas coisas podem ser descritas em histórias e podem ajudar a compor um lugar no qual o leitor queira ficar?

Ah, worldbuilding. Essa palavrinha faz muitas pessoas que escrevem ficarem arrepiadas. Construção de mundo. Todo mundo quer construir um mundo crível, mas especialmente em alguns gêneros, todo mundo também quer que o mundo da história tenha aquele algo a mais que faça com que as pessoas queiram ser transportadas pra lá. O artigo me fez pensar de um jeito um pouco mais específico e não precisei de muitos dias pra chegar na conclusão óbvia de que eu romantizo o mar.

Desde sempre, da época que eu era criança e tinha medo e todas as etapas da vida depois. Desde que li 20.000 Léguas Submarinas pela primeira vez e fiquei olhando pra frase que fecha a história.

Assim, à pergunta feita há seis mil anos pelo Eclesiastes, "Quem já esteve nas profundezas do abismo?", dois homens dentre todos têm agora o direito de dizer que o fizeram: o capitão Nemo e eu."

Jules Verne, 20.000 Léguas Submarinas - tradução de André Telles.

De algum jeito, o combo graduação + mestrado + doutorado não matou essa romantização, mas deixou um pouco mais específica, ou até mais crua. Eu sei como é enjoar no mar, não preciso imaginar. Eu sei como é o cheiro ruim, o desequilíbrio de passar do barco pra terra firme e continuar sentindo o balanço, o frio de navegar no inverno, a preocupação de manter os equipamentos secos em dias de tempo ruim... a vida oceanográfica é bem menos glamurosa do que os documentários mostram, mas tem sim uma certa magia, um privilégio de enxergar o mundo (o nosso mesmo, planeta Terra) sob outras perspectivas.

Daí, nesse ponto cheguei numa outra reflexão mais antiga, essa levantada pelo escritor Jim Anotsu sobre escrever a sua nerdice. Na época algumas pessoas conseguiram deturpar um conselho muito válido numa treta completamente desnecessária, e foi uma pena porque a conversa morreu e acho que teria sido legal saber mais das nerdices das pessoas que escrevem no nosso mercado literário. A minha nerdice não preciso nem falar, e embora eu não tenha só histórias marítimas pra contar, é inegável que até hoje foram as que se saíram melhor nas tentativas de publicação.

É um conselho bem batido no meio da escrita. Escreva o que você sabe. Mas o que acho legal de “escreva sua nerdice” é a expansão para além da experiência corriqueira de cada um. Muitas pessoas podem, por exemplo, retratar bem o Rio de Janeiro numa história, inserir as particularidades da cidade que só quem vive nela tem como conhecer bem. Mas as nerdices são específicas, elas pressupõem um encantamento, uma vivência única de cada um sobre algo que gostem muito, sobre algo que, quem sabe, estudem tão a fundo que romantizem sem deixar de mostrar aspectos mais reais.

Todo esse projeto das 20.000 Histórias Submarinas é parte da minha romantização do mar, dividindo com vocês. A cada tema marinho que eu escolho, eu tento trazer um pouco de conhecimento e também as minhas visões e reflexões sobre o tópico. E quase todos os temas até agora estão inseridos em histórias minhas, mesmo que algumas estejam ainda um pouco longe de chegar a um público leitor.

Lembram da newsletter sobre cefalópodes? Se você ainda não assinava na época, pode dar uma olhada aqui, foi a edição de estreia desse experimento de escrita que tem sido muito interessante e gratificante pra mim.

Eu escolhi começar a newsletter com esse tema porque estava com cefalópodes girando sem parar na cabeça. Sempre foi um grupo pelo qual me interessei muito, mas além disso, uma outra coisa tinha acontecido.

Um fenômeno que eu acho muito legal é que todas as pessoas que passam a me conhecer e interagir comigo de forma um pouquinho mais próxima, passam a se lembrar de mim quando encontram qualquer elemento marítimo. Baleias e golfinhos, principalmente, mas eu recebo todo tipo de curiosidade, arte, piada, indicação de livros e etc relacionado ao mar. (Aliás, continuem fazendo isso!)

Eis que, um belo dia, amigos diferentes me marcaram num post do twitter, um post com a wishlist do editor da Hexagon Magazine, uma revista canadense de ficção especulativa. A lista era, na verdade, o sonho de consumo de qualquer pessoa que seja oceanógrafa e escritora ao mesmo tempo:

Ah, well...

Primeiro veio um estalo, uma faísca de “e se...”. Publicar em inglês não é exatamente novidade pra mim porque na vida acadêmica é praticamente mandatório, minha pesquisa não vale de muita coisa se não estiver num periódico científico internacional. Mas uma história em inglês? As histórias em português ainda nem tiveram muita saída e eu já ia me jogar nessa? Loucura.

Mas... loucuras tem mania de ficar ali no fundinho do pensamento, instigando a gente a ou fazer uma grande besteira ou a arriscar a fazer um grande sucesso. Fiquei olhando pra lista, procurei as combinações de palavras que me chamavam mais atenção, e nossos queridos cefalópodes sempre estavam no meio. Como eu já comentei em alguma News anterior, eu muitas vezes começo ou com uma imagem ou uma frase ou palavra, e a expressão “Cephalopod Heart” brotou na minha cabeça, não queria sair mais. Naqueles dias eu tinha feito fazia pouco tempo as aulas do curso da Aline Valek, e resolvi a oportunidade de experimentar uma técnica de brainstorming que ela sugeriu.

Saí desse exercício mental com um título (Cephalopod Heart), elementos de uma história, e a necessidade por um cenário. Esse último veio dela: a prateleira de ideias em espera, aquelas que temos mas por um motivo ou outro não trabalhamos até surgir o momento certo. O passo seguinte foi o moodboard, meu vício atual como etapa necessária antes de começar a escrever.

Acabei usando um cenário que eu vinha cozinhando desde a graduação em oceanografia. Não vou falar aqui pra não correr risco de spoilers, mas é uma ideia de um mundo marinho que eu queria criar e deixei de lado por muitos anos porque achava que não tinha conhecimento suficiente pra montar. O lado ruim de escrever sua nerdice é as vezes não se satisfazer com não ter algumas explicações bem feitas, mesmo que elas não entrem na história. Claro que estou pronta para, e ciente da necessidade de, fazer concessões para o ‘especulativa’ do ‘ficção especulativa’, mas prefiro tomar essas decisões de forma consciente. É a minha nerdice, não tem jeito.

No projeto do Farol que estou escrevendo, preferi inventar uma ilha do que usar uma cidade costeira existente só pra conseguir conciliar a oceanografia com a parte fantástica. Em Cephalopod Heart algumas decisões talvez não sejam tão claras para quem ler, mas elas estão lá.

E deu certo. A loucura, e a nerdice também.

Essa história vai sair pela Hexagon Magazine em dezembro desse ano. (Não, eu ainda não sei se tudo isso é real mesmo já tendo assinado o contrato, vamos descobrir quando sair o volume 7.) Vai estar disponível gratuitamente na internet, e lógico que vou colocar o link aqui quando acontecer. Espero que seja um mergulho interessante pra todo mundo que quiser ler.

Então, nos meandros das correntes das minhas reflexões, ainda me deparei com uma outra questão essa semana. A mesma Aline Valek cujos ensinamentos ajudaram Cephalopod Heart a nascer, fez uma pergunta pra todo mundo.

A maioria dos escritores, eu acho, tem duas respostas: uma longa e uma curta; a postagem convidava algo resumido e foi muito interessante ver os motivos de um monte de gente em palavras simples e bonitas. Para minha surpresa, eu também não hesitei em responder. E foi uma surpresa porque me considerar publicamente escritora foi todo um processo interno que nem cabe aqui.

Respondi que escrevo porque eu transbordo.

Foi uma resposta meio natural, e acho que não é coincidência que transbordar tem uma conotação aquática também. Acho que não tem como tirar a oceanógrafa da escritora e nem a escritora da oceanógrafa; com diferentes níveis de profissionalismo e conhecimento hoje enxergo esses dois lados em sei lá quantas memórias e escolhas e histórias.

Um ponto interessante foi que bastante gente compartilhou a famosa resposta da Clarice Lispector pra responder a Aline ("Então pra que continuar escrevendo, Clarice?" "E eu sei?"). É uma resposta tão válida quanto todas as outras, e pode ser mesmo que algumas pessoas escrevam sem motivo, ou sejam o que são sem motivo, mas sempre interpretei essa resposta da Lispector não como uma não-compreensão e sim como uma indiferença quanto a saber o que quer que a levava a escrever. Não saber é diferente de não querer saber. Entendo que pra muita gente isso basta, pra mim não. Saber é parte do meu processo. Eu preciso saber coisas sobre mim e sobre o que eu faço. Saber me ajuda a transbordar e transbordar me coloca em equilíbrio.

Não sei se tenho uma conclusão ou uma grande epifania, e provavelmente já falei demais. De qualquer forma deixo aqui uma sugestão de encontrar sua nerdice, romantiza-la e ver no que dá, seja pra escrita ou qualquer outra coisa.

(A relação da história antiga que me manteve acordada uma noite inteira é assunto pra outra conversa, mas de forma geral, ela se encaixa nessa parte final, do "saber".)

NaNoWriMo

Eis que chegamos na última sexta-feira de outubro... logo mais novembro tá aí.

Com 31 anos, eu me achava uma pessoa bastante ajuizada. Bom, com essa idade a gente descobre que às vezes não somos o que pensamos e claramente eu não tenho juízo algum porque esse ano vou participar do NaNo.

Pra quem não conhece, em resumo, o National Novel Writing Month é uma espécie de desafio em que escritores se propõem a escrever uma história de pelo menos 50 mil palavras dentro de um mês, sempre no mês de novembro. (Como referência, Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley tem 63 mil palavras.)

Sim, é loucura. Novembro é final de semestre no ensino superior, alunos precisam defender suas monografias, relatórios de final de projeto precisam ser entregues, dados precisam ser analisados e [insira aqui uma infinidade de outras atividades acadêmicas]. Oceanografar é preciso.

Mas a loucura de escrever uma história em inglês sobre cefalópodes e corações deu certo... Então, vou empregar a tática do Silenzio, Bruno! e vou me desafiar com isso.

O link do meu projeto do NaNo tá aqui pra quem tiver curiosidade. Não é uma história marinha (pra provar que eu estou ousada mesmo), mas tem um outro elemento chave que é a ciência, um tema comum nas minhas histórias e também um dos “Pilares da Sanidade da Lis”. Com certeza ao longo do mês vou falar sobre Canção de Caça, nem que seja só pra perguntar em voz alta onde é que eu estava coma cabeça. (Silenzio, Bruno!)

E é isso por hoje. Semana que vem chega por aqui mais um capítulo de Areia e Pólvora.

A vontade do povo foi que, quando 20.000 Histórias Submarinas chegassem em 100 assinantes, a celebração seria um capítulo extra focado no Ladrão, o favorito de todo mundo. Então, fiquem de olho pra quando isso acontecer. A contagem atual é de 94 pessoinhas, precisamos de mais 6 pra Ladrão ganhar o seu momento.

Abraços tentaculosos, e até novembro!