20.000 Histórias Submarinas - #4 Naufrágios

Bom dia, espero que tenham uma boa sexta-feira e um bom final de semana. Se você é uma pessoa que dá aulas, espero que esteja curtindo um feriado porque você com certeza merece!

 

Na edição de hoje, vamos embarcar em navios naufragados e um pouco no clima de dia das bruxas. Estamos em outubro, afinal de contas. Mas mesmo que você não curta festas importadas, acho que vai apreciar um pouco do que eu trago hoje porque não deixa de ser uma prova de que o Brasil não é para pessoas amadoras.

Já que estamos nesse tópico perigoso, não esqueça de usar seu colete salva-vidas e seu colete salva-digitação. O mar do teclado do computador pode ser muito traiçoeiro!

Um pouco sobre naufrágios

Quem me acompanha pelo menos lá desde o início do ano talvez se lembre que eu fiz uma série de postagens sobre naufrágios históricos no Brasil, motivada pelo edital da Revista Pretérita cujo tema era corpos d’água.

Acho histórias de naufrágios muito interessantes porque por mais que os restos da embarcação fiquem preservados no fundo e guardem pistas dos acontecimentos que levaram ao ocorrido, sempre vai haver um mistério sobre as vidas e motivações que atravessaram aqueles conveses. Na série que eu fiz, procurei trazer naufrágios que tivessem acontecido por motivos variados: guerra, fraude de seguros, motim contra trabalho escravo, e até uma suposta briga de corno! Esses detalhes, essas sutilezas, a água salgada não guarda.

E também escolhi apenas naufrágios ocorridos no Brasil porque eu gosto de reforçar que a nossa história marítima não começa e termina com as caravelas portuguesas. Hoje as águas brasileiras abrigam centenas de naufrágios, alguns tão velhos que a identificação do navio é impossível e outros já nos anos 2000, alguns de embarcações estrangeiras que vieram conhecer seu fim no nosso litoral e outras que sempre estiveram em serviço no Brasil.

O Titanic, por razões óbvias, é a nossa referência de naufrágio. Na versão mais famosa do filme (que eu assisti ainda criança no cinema) tem aquela parte da filmagem percorrendo o navio no fundo antes de Rose nos contar como foi seu primeiro nude. Vemos os objetos “resistentes”, que tipicamente sobrevivem mais tempo, como materiais de louças e metais. Mas e as histórias? Bom, duraram as histórias contadas por quem sobreviveu, e todas as que inventamos depois.

E isso vale tanto para o acidente náutico mais famoso do mundo quanto para todos os sinistros ocorridos do lado de cá do Atlântico.

Uma coisa que eu acho legal na lista de naufrágios que eu fiz na época é que algumas partes do que se conta sobre eles não podem ser comprovadas hoje em dia, podemos no máximo encontrar algumas pistas e indícios. Alguns foram noticiados em jornais da época, outros são tão velhos que nem relatos existem, sabemos que estão lá apenas porque foram registrados por mergulhadores.

O capitão do vapor Pirapama realmente estava disposto a afundar dois navios pra se vingar de uma traição? Não sabemos, só sabemos que as condições que causaram o choque de dois navios (a partir de relatos e da disposição dos destroços) não faz tanto sentido então por que não um pouco de drama? Ou de amor, ou de aventura.

Ou de terror, já que estamos no mês das bruxas.

Fantasmas não precisam respirar, quem há de dizer que os espíritos naufragados não continuam vagando por entre mastros já tomados por algas e recifes de coral?

Alguns marinheiros mais supersticiosos (aqui leia-se quase todos) dizem que todo navio tem uma alma, um espírito que acaba por influenciar também as relações e humores dentro de sua tripulação. Alguns tem alma boa, outros nem tanto, e é aqui que eu entro com uma das minhas histórias de naufrágio favoritas das postagens que eu fiz para a Pretérita. Ela não é grandiosa, nem tenebrosa, nem cheia de ação, mas é... estranha.

Deixo vocês tirarem suas próprias conclusões, inspirações, e por aí vai. (Me mandem as histórias que escreverem!)

🌊 Naufrágio do clipper Blackadder, o navio azarado 🌊

Esse navio foi construído em 1870 em Greenwhich, Inglaterra, encomendado por uma empresa dona de navios que operava rotas mercantes globais, principalmente a que trazia chá da China. A Jock Willis Shipping Line foi dona de alguns navios relativamente famosos, como o Cutty Shark, um dos últimos grandes clippers a atuar no comércio do chá.

Os clippers são uma classe de navios à vela cuja principal característica é a velocidade. Eram normalmente pequenos e estreitos, mas com muitas velas, ideais para o transporte rápido de mercadorias atravessando o Atlântico. Eles perderam espaço em torno da época da abertura do Canal de Suez em 1869, que permitiu que os navios a vapor tivessem uma rota muito mais curta e barata para os comerciantes de chá atuantes entre a Europa e a Ásia (na época, não compensava economicamente que um navio a vapor desse a volta no Cabo da Boa Esperança).

Alguns talvez possam dizer que ter sido construído já na época de declínio do uso de clippers no comércio transatlântico já não significava uma vida auspiciosa para o Blackadder. Mas ele poderia ter sido um gracioso símbolo do passado em meio a modernidade dos vapores (aliás, isso será um tema de newsletter futura, inspirada na minha pintura favorita de Turner), se sua história não fosse tão cheia de acidentes. A verdade é que o navio teve azar. Muito azar.

(Curiosamente, seu navio irmão se chamava... Hallowe’en......)

(O Hallowe’en, inclusive, também naufragou, mas teve uma vida mais feliz, quebrou vários recordes de tempo de viagem entre a China e o Reino Unido.)

O primeiro problema ocorreu logo na sua viagem de estreia em 1870. Defeitos na produção de peças do mastro não resistiram a pressão dos ventos, fazendo com que o mastro se soltasse e afundasse no convés, e depois caísse pela borda, danificando outros mastros junto. A tripulação conseguiu se virar com os mastros restantes, mesmo com os danos no navio, e navegaram mais 3 dias rumo a um porto. Quase chegando, o navio começou a fazer água (termo para entrar água dentro do casco) e colidiram com mais duas embarcações.

Após reparos, o Blackadder foi mandado para Shanghai em 1871. Adivinhe... no caminho colidiu com um vapor francês e depois de novos reparos, perdeu peças em outra colisão próxima do destino. É sério.

Incrivelmente, ele não afundou em nenhuma dessas ocasiões. Houve uma troca de capitães, e a partir daí teve um período de navegações mais “tranquilas”.

Mais ou menos.

Em 1873 numa travessia levando carvão de Sydney para Shanghai, ele foi pego num tufão. A tripulação teve que cortar um dos mastros para que o navio não virasse com a força do vento (já viram aquele filme Mestre dos Mares? Pois então). Conseguiram chegar no porto, ufa.

Depois disso, numa viagem no mesmo ano, na China, atingiu um recife não cartografado e ficou agarrado. Nem se livrando da carga conseguiram soltar o navio. Foi necessário abandonar o Blackadder e voltar com ajuda, e esperar uma maré bem alta para atingir a flutuabilidade necessária para navegar.

Apesar de tudo isso, há registros de que o Blackadder bateu alguns recordes de navegação. Foi vendido para um comerciante norueguês, e chegou a viajar por mais tempo sem incidentes.

Eis que, em 1905, ele foi para a Bahia com uma carga de carvão.

É isso mesmo o que você está pensando, o que problemas de fabricação e as tempestades do Oceano Índico não afundaram, as águas brasileiras deram conta. Os relatos são de que, já ancorado, foi atingido por um temporal que soltou sua amarração e arrastou suas três âncoras. O navio foi jogado contra as pedras da praia de Boa Viagem, BA. Toda a tripulação sobreviveu, mas dessa vez o Blackadder não resistiu.

Depois de várias ocasiões desastrosas, nosso clipper azarado veio repousar no fundo da Baía de Todos os Santos. Os restos do Blackadder não estão na melhor região de visibilidade pra mergulhos em função da água mais turva, mas podem ser facilmente identificados.

O motivo de tanto azar? Não sei, podemos inventar!

Na página Naufrágios do Brasil você encontra fotos e esquemas sobre o Blackadder e outros tantos navios que encontraram seu fim por aqui. É um lugar legal pra começar a pesquisar porque a lista está separada por estados e por nomes, e a partir dali ir para a caça sobre informações. Temos muitas histórias curiosas cravadas na areia, só precisamos contá-las.

Aqui nesse fio tem a listinha completa dos naufrágios históricos brasileiros que eu citei. Está resumido porque as postagens estão escritas pensando no Twitter e seus caracteres reduzidos, mas além disso também tem vídeos muitos legais que a Revista Pretérita fez a partir deles, está no canal de youtube da revista e no instagram também.

Deixo aqui o vídeo que a Pretérita fez de outra história de naufrágio que tenho apego, porque esse já tive oportunidade de ver de perto: o Hwa Shing, que hoje está enferrujado na distante Ilha da Trindade, ponto mais a leste do território brasileiro.

Um último recado...

E é isso. Na semana que vem chega o quarto capítulo de Areia e Pólvora!

Nesse mês de outubro estou vivendo aquele esgotamento de proximidade de fim de ano, e tentando juntar energias pra chegar até dezembro, não tenho escrito nada de novo. Além do trabalho de pesquisa em oceanografia, minha atenção está voltada para editar histórias já prontas, seja para mandar aqui ou mandar para editais em aberto. Não sei se isso tem muita relevância para quem está lendo, mas caso você também esteja sentindo cansaço, vou lançar mão de novo da minha amiga que fica sempre aqui na mesa de trabalho: a baleia motivacional!

Abraços e até a próxima!