20.000 Histórias Submarinas - #2 Faróis

Surpresa! Eu não ia trazer a Newsletter essa semana, mas estou fazendo um experimento.

A ideia original era a newsletter sair de duas em duas semanas, intercalando uma sobre um tema e um capítulo de Areia & Pólvora. Isso daria duas news por mês, e eu comecei a achar que o intervalo de um mês talvez não fosse legal pra enviar os capítulos de forma seriada, então aqui estamos. Vou tentar aumentar a frequência da news pra sair semanalmente, ainda intercalando. Se eu não conseguir manter o ritmo por motivos de trabalho e vida, volto pro esquema anterior, ou mando alguma fofura compensatória via newsletter... veremos.

Alerta! Esta newsletter pode conter erros de digitação, ao embarcar por favor use o colete salva-digitação.

Faróis (E minhas idas e vindas criativas)

Então, hoje o tema é uma das minhas mais recentes obsessões marítimas. Faróis!

Recentes, no caso, é um eufemismo, porque a semente foi plantada em 2018 quando eu estive em Itacaré – BA, e passei um dia inteiro na praia olhando para o Farol das Contas. No início desse ano, tive a oportunidade de passar por lá de novo e mais uma vez a imagem do farol deixou sua marquinha. 

A diferença foi que dessa vez eu tinha algumas outras coisas cozinhando na cabeça, outras imagens servindo de inspiração.

Eu não sei se é justo chamar de processo criativo, porque não é algo que eu faça intencionalmente, com um início definido de “vou fazer isso para ter ideias”, mas as minhas histórias normalmente brotam por uma de duas vias: imagens ou frases. As imagens podem ser de paisagem, foto, desenho, ou até uma visualização mental de alguma coisa que desperte meu interesse (essa última muitas vezes a partir de uma frase). Acho que isso deve ser bastante comum hoje em dia em que somos expostos a tantas mídias diferentes, e se você for do time de imaginar as coisas a partir de imagens, dê um alô! Se for de outro time, fale também.

O meu passo seguinte é pesquisar. Sair atrás de outras imagens, outras informações, ideias contrastantes. A ideia da história não estava completamente formada ainda, mas eu sabia que seria especulativa e contemporânea, então por mais que eu fosse encher de esquisitices eu também queria que o farol funcionasse de forma minimamente reconhecível para uma cidade pequena de praia, mesmo fazendo algumas concessões para a ficção.

Na faculdade de Oceanografia da UERJ (alô Oceano2008 que estiver me lendo aí!) temos uma disciplina chamada ‘Astronomia e Navegação’ em que aprendemos a manusear instrumentos de navegação básicos, ler cartas náuticas e traçar rotas... e quando fui tentar resgatar meus conhecimentos sobre faróis, descobri que eu não lembrava muita coisa. E não sei mesmo se eu não lembrava porque não prestei atenção (ops) ou porque foram uma parte pequena da matéria. Talvez os dois.

Na minha mentoria de escrita com Sol Coelho, já com a história bem avançada, ele perguntou se faróis ainda eram usados na navegação hoje em dia. A resposta é sim, mas depois que conversei um pouco com ele sobre isso eu fiquei mastigando essa questão, o que resultou na escolha do tema pra essa edição.

Os faróis são do tempo em que navegar era muito mais perigoso do que é hoje, em que as pessoas saíam com seus navios para procurar (dominar e destruir) novas terras sem saber de dados que hoje são básicos: profundidade, presença de pedras e recifes, a localização da própria terra! No escuro, identificar isso tudo sem tecnologia é muito difícil, então o farol foi a resposta para guiar navegadores (principalmente os ocidentais, mas as múltiplas formas de navegação ficam pra outra ocasião). Jules Verne com sua mania de muitos detalhes e descrições retratou muito bem a importância de um farol em seu livro “O farol do cabo do mundo”, em que três guardas recebem a missão de proteger um farol recém construído a 200 km do Cabo Horn, na Terra do Fogo (Chile), sem saber da presença de piratas. É uma leitura típica de Verne, então se você é fã e quer ver um farol bem retratado em torno de 1900, pode ler esse aqui.

“A ilha dos Estados já tem o seu farol e, ainda que o furacão sopre de todos os cantos do horizonte, não é capaz de o apagar! Os navios hão de vê-lo a tempo de poderem fazer bom rumo! Guiando-se por essa luz, não se arriscarão a cair nas rochas do cabo San Juan, do pico de S. Diego ou do pico de Fallows, ainda mesmo nas noites mais escuras! O farol está por nossa conta e há de ser bem guardado.”

Fala do Guarda Vasquez, em 'O farol do cabo do mundo' – Jules Verne, 1905 tradução de Joaquim dos Anjos

E hoje, mesmo com toda a tecnologia existente, ainda serve a esse propósito, tendo sido melhorados e aperfeiçoados com o tempo. Eles são tão usados na navegação atual que os responsáveis por faróis no mundo todo ativamente solicitam que, caso algum problema com um farol seja identificado, os navegadores avisem à administração marítima local. Apesar de termos em mente aquelas grandes torres com a luz no topo quando pensamos num farol, eles podem ter tamanhos e formatos variados, alguns sendo armações metálicas discretas, no limite de serem boias luminosas.

(Um tópico que eu não vou entrar aqui, porque tem sua própria história e especificidades, é o do balizamento por sinais luminosos em boias e afins, mas saibam que tem um universo de normas sobre o uso de luzes na navegação.)

Sabia que é possível saber em que ponto da costa você está apenas pelas características do farol daquela região? A forma com que brilham faróis é único, e isso não é só uma mensagem bonita pra ser usada de metáfora, é parte das normas atuais de navegação. Cor, ângulo, tempo de duração da luz, intervalo entre aceso e apagado, brilho contínuo ou brilho pulsado... todas essas coisas são informações específicas e juntas identificam um farol. Diferentes faróis também terão diferentes alcances de visibilidade, de acordo com a necessidade de navegação da região.

Então, se você estiver navegando pela costa do Rio de Janeiro sem GPS e avistar um grupo de lampejos alternados na ordem: lampejo branco por 0,5s – escuro por 4,5s – lampejo branco por 0,5s – escuro por 4,5 – lampejo vermelho (ou encarnado) por 0,5s – escuro por 4,5s, sabe que aquele é o Farol da Ilha Rasapróximo da entrada da Baía de Guanabara. Já o Farol das Contas, a minha inspiração original em Itacaré, emite lampejos brancos, alternando um lampejo branco por 1s com 9s de escuro. O Farol de Ponta Maria Teresa, no Pará, também tem lampejos brancos, mas alternando um lampejo de 1s com 5s de escuro. Repare que somando os tempos de lampejos e escuros, cada farol tem o seu período total: 15s na Ilha Rasa, 10s nas Contas e 6s na Ponta Maria Teresa.

Fácil, né?!

OK, não tão fácil, mas aqui vai uma cola: A Marinha do Brasil mantém sempre atualizada a Lista de Faróis com todas essas normas seguindo as Resoluções Técnicas da Organização Hidrográfica Internacional, e uma lista de todos os faróis do Brasil, grandes ou pequenos, fixos ou móveis. A lista está em sua 37 edição, e pode ser acessada gratuitamente no site da Centro de Hidrografia da Marinha, aqui. Todas as características de todos os faróis no mar territorial brasileiro estão listadas em detalhe nela, caso você esteja precisando de um pra sua história!

O Brasil mantém 507 faróis, de todos os tamanhos e formas, cada um deles com um código numérico nacional e um código correspondente internacional. A lista tem as características e fotos de todos eles, vale dar uma conferida, nem que seja pra ver mais de perto o farol mais próximo de você.

Caso você prefira outras mídias e também responda bem a estímulos audiovisuais, recentemente também foi lançada a série Faróis do Brasil pela TV Brasil, e você encontra os episódios de cerca de 20min aqui. A série, além de informativa, tem umas imagens lindas demais, que acho que inspiram qualquer um.

Não importa o quão modernas/obsoletas/bonitas/feias estejam as construções de faróis, eles sempre trazem alguma coisa para quem os observa, indo além do papel para o qual foram erguidos. Existem muitos aspectos sobre eles que podem ser trabalhados e interpretados. Um que eu acho muito interessante é que, apesar de ser muito associado com a ideia de solidão e isolamento, a construção de faróis foi um dos primeiros acordos informais da nossa espécie de que sozinho, sozinho, SOZINHO, ninguém navega. Um farol mantido por uma nação, lá nos primórdios, servia a navios de todas as bandeiras, independentemente de quais guerras estivessem sendo travadas, e isso continua sendo verdade. Atravessar o oceano em segurança sempre será um esforço conjunto, não importa quantas pessoas estejam num barco, ou numa torre de farol, ou num porto.

A figura do faroleiro solitário aparece na história que estou escrevendo, não consegui fugir dela, mas o que me pegou e me fez colocar um farol como parte importante foi um outro sentido. Um farol é ao mesmo tempo um aviso de segurança e um alerta de perigo, pode indicar que você está no caminho certo ou que tem algo ali que pode te mandar para o fundo. E o afundar no abismo oceânico, é um dos temas também presentes nessa história.

Uma das imagens base de inspiração para ela é a de um peixe-pescador, aquele que tem uma luzinha pendurada na cabeça como esse fofinho aqui em baixo. Fazendo um belo de um exercício de imaginação que talvez só faça sentido na minha cabeça, a luz do peixe no abismo também pode servir como um farol (embora no caso do peixe ele esteja criando uma armadilha para suas presas). Quando eu juntei os dois, uma série de “e se” brotou e depois disso a história começou a surgir. As frases aliadas a imagem vieram em seguida, e então os personagens, e aí quando eu vi estava naufragada.  

Nessa história (que ainda não tem título e não está pronta) o farol assume esse papel ambíguo que na verdade não tem a ver com navegação. É uma promessa de proteção para uma cidade pequena numa ilha, ao mesmo tempo que é um aviso para [CENSURADO] se manterem longe. Eu não vou ficar falando muito sobre um romance ainda não concluído, mas eu tenho mania de fazer moodboards para juntar as inspirações do que estou escrevendo, e o dessa história é esse aqui:

Pra fechar de verdade, porque eu já tentei fechar esse texto mil vezes e toda hora lembro de alguma coisa, vou deixar aqui uma pequena lista de faróis da ficção que eu amo:

- O farol da Ilha dos Estados, de "O farol do cabo do mundo" por Jules Verne: detalhamento histórico e as navegações de séculos passados, gostamos.

- O farol de "Aniquilação", por Jeff VanderMeer: weird fiction, isso já bastaria, mas todos os elementos e o papel do farol na história são incríveis demais. (Aliás aqui a representação de "segurança" é trabalhado de um jeito que olha...)

- Os faróis de Gondor, de "O Senhor dos Anéis", por J. R. R. Tolkien: não interessa que não é no mar, a comunicação por faróis entre os dois reinos dos homens é uma das cenas mais arrepiantes de toda a trilogia de filmes de Senhor dos Anéis.

Finalizando

Como você sabe, a próxima edição vem com o segundo capítulo inédito de Areia e Pólvora. Esse será do ponto de vista da Dra. Anabela Argo, uma cientista em expedição pelos Mares Esquecidos.

Depois, voltamos a news temática, que eu ainda não escolhi sobre o que vai ser, mas com fortes chances de abordar um grupo de animais que praticamente tem uma trilha sonora própria, e eu não estou falando de baleias!

Até lá, navegue atento aos sinais luminosos no horizonte e não choque seu barco contra rochas no escuro.