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20.000 Histórias Submarinas - #15 O Holandês Voador

Nem só de ansiedade eleitoreira vive outubro... é mês de Halloween! Por que não entrar no clima?

Atenção! Essa newsletter pode conter assombrações e erros de digitação amaldiçoados. Para se proteger, vista seu colete salva-digitação antes de embarcar.

O Holandês Voador (e outros pensamentos volantes)

Eu vou evitar falar o tempo todo sobre a versão de Piratas do Caribe embora eu não tenha vergonha nenhuma de confessar que eu não conhecia a lenda antes do filme. Apesar de navios fantasma ou navios assombrados serem um tema recorrente (mesmo que menos comum) em histórias de terror, tenho a impressão que chegam com menos frequência no grande público brasileiro. Imagino que tenha bastante gente por aí que seja fã de terror/horror e seus subgêneros que seria capaz de apontar várias histórias, mas no geral navios assombrados não são tão reconhecíveis quanto Drácula ou causos de lobisomem e fantasmas de casa em terra firme.

Tenho muitos pensamentos sobre isso e sobre como no Brasil somos afastados da cultura náutica por conta de muitos motivos (e boa parte deles relacionados a elitização progressiva do acesso ao mar), mas como não tenho como embasar em estudos vou guardar essas análises pra mim ou pra uma conversa na beira da praia sem compromisso. Esses dias eu perguntei no twitter sobre causos de embarcações assombradas em qualquer corpo d’água, mar, rio e até lago. Meu alcance em redes sociais não é grande, verdade, mas eu imaginei que pelo menos um ia aparecer. Tinha a expectativa de poder traçar paralelos, ou até perpendicurales quem sabe, com contos estrangeiros. Não deixa de ser irônico que eu também não conheço muitos, salvo um acontecimento aqui ou ali bem pequeno... E eu sei que com certeza essas histórias existem em abundância (porque segundo me disse um capitão uma vez: todo nauta é mentiroso, fofoqueiro e supersticioso). Então, deixo aqui de novo o pedido. Se você tem alguma história assombrosa relacionada a qualquer embarcação (sério, vale canoa!) em qualquer corpo hídrico, me conta. Por hoje, fico com essa história importada da gringa que eu também gosto muito.

Assim que saiu o filme com o Holandês Voador eu fiquei logo de cara encantada. Part of the crew, part of the ship. Eu acho toda a caracterização do navio incrível, faz muito sentido. A madeira apodrecida, a incrustração de cracas e algas e a tripulação sendo absorvida pelo próprio mar. É um microterror por si só a ideia de perder a própria identidade por ficar tanto tempo num mesmo ambiente movido adiante pelo simples fato de que não há mais nada a fazer por toda a eternidade — o tempo passa e você se torna o que te rodeia. Leva aquele ditado do Rei Tritão a outro nível. “Nade com tubarões e será um deles.”. Navegue com o Holandês Voador e deixará de ser você — não pela metamorfose física de assumir características de alguma criatura marinha, mas por perder as memórias e ser incapaz até de reconhecer um filho. Inclusive, eu me pego muito com o fato de que é Davy Jones quem mais retém de sua personalidade original e lembranças, porque Davy Jones é o único que não pertence de forma inteira ao navio. Com o coração batendo separado do corpo, em terra firme, um pedaço de si está sempre fisicamente distante do mar protegido de ser tomado pela maldição. Além de ser muito inteligente — o capitão não pode ser totalmente tomado, ao proteger o coração da ação do oceano o cérebro mantém a clareza — também é muito triste, e talvez uma metáfora sobre como ter o coração no lugar certo não necessariamente quer dizer tê-lo por perto, ou sobre como manter uma conexão com nossa origem (no caso, a terra firme) pode ser nossa única salvação para seguir com lucidez até o fim. Mas vou parar por aqui porque essa newsletter ainda não é sobre como eu gosto tanto dessa série de filmes de Piratas do Caribe e sobre como eu tenho raiva de Johnny Depp por ter tirado a minha paz de espírito por ser apegada nesses filmes. (É sério, eu posso ficar muito tempo destrinchando e reclamando desses filmes, preciso parar AGORA se quiser continuar essa edição dentro do tema pretendido.)

Devidamente absorvida pela maldição do Holandês Voador, lá fui eu pesquisar mais sobre a lenda original. Não foi um esforço único logo após o filme, tem dias que me bate o negócio e eu saio em busca de alguma coisa nova sobre o mito. De qualquer forma, na época da primeira pesquisa fiquei bem decepcionada de não encontrar aquela lenda super clássica, com variações de lugar pra lugar mas com uma origem fácil de ser traçada.

O mito em si parece ter surgido na época em que a Companhia Holandesa das Índias Orientais era uma força importante na navegação mundial, navios holedanses eram uma visão tão comum quanto ingleses e espanhóis. Tem diferentes versões, assim como os relatos de avistamento do navio variam bastante. (Na verdade, até o fato de se chamar Holandês Voador pode ser disputado. Thomas Moore (1779-1852) em seus poemas fala sobre a superstição dos marinheiros quanto a um navio fantasma que a tripulação se referia como “um navio holandês voador”, assim no diminutivo mesmo como se estivessem apontando uma característica ao invés de usando um título.)

O único ponto em que de fato todas as lendas concordam é que encontrar o Holandês Voador no mar significa morte na certa, como um aviso de mau agouro. Também é comum entre muitas das versões a parte em que ele está condenado a navegar para sempre e nunca aportar. Uma versão bem comum (e que eu acho bem poética) é a de que o navio todo está sendo eternamente punido a navegar por culpa da soberba de seu capitão, o holandês Van der Decken (pois é, não é o Davy Jones, mentiram pra gente!). Supostamente, ao dobrar o Cabo da Boa Esperança encontraram um tempo muito ruim e ventos altamente desfavoráveis. O mais sensato seria entrar na Baía de Table para passar a noite, porém o capitão teimoso teria dito que navegaria até o dia do juízo final antes de aceitar a derrota para o vento e entrar na baía. E com isso, de fato foram amaldiçoados, incapazes de aportar, navegando por toda eternidade em mares revoltosos e sob tempo ruim. Praticamente um mito grego.

Tem uma versão que eu acho bem legal também (e super leria se alguém escrevesse um conto inspirado nela) que ao encontrar navios dos vivos, a tripulação do Holandês manda através deles cartas para parentes em terra firme — e que se a tripulação mensageira abre essas cartas, bom... vocês conseguem imaginar a desgraça.

O interessante é que pode haver uma explicação perfeitamente racional para a aparição de um navio espectral navegando pelo mal tempo. Já ouviu falar numa miragem superior, também conhecida como Fata Morgana (termo em italiano, e sim, inspirado nela. Morgana La Fey, a melhor das melhores e não estou interessada em opiniões divergentes sobre isso)? É um fenômeno complexo, e não tão comum porque só ocorre em condições muito específicas. Resumidamente: ao atravessarem meios com índices de refração diferentes os raios de luz podem ser redirecionados no ângulo exato para refletir um navio navegando no céu ou acima da linha do horizonte. Isso pode acontecer em qualquer lugar, e se você der um google aí vai ver umas imagens bem legais. Inclusive, anotando aqui pra fazer uma newsletter só sobre isso no futuro.

Com explicações científicas emendadas ou não, é bem possível que você encontre por aí versões levemente diferentes ou radicalmente diferentes, tanto faz. O Holandês Voador conseguiu entrar pro rol das lendas recontadas e reimaginadas ao longo dos anos. Pra além dos filmes da franquia-que-o-ser-humano-ruim-afundou, existem várias outras histórias em que ele está presente, além de ter inspirado vários outros contos originais.

(Inclusive... talvez tenha um conto inédito vindo na sua direção, a todo pano e com velas amaldiçoadas... Você talvez queira entrar na baía, se abrigar durante a noite, fugir pra terra firma, escapar enquanto é tempo... Talvez no final dessa newsletter eu traga um pedaço de uma carta que não foi escrita por mim, ou o anzol que vai te fisgar para um terror sem nome ecoando nos porões de uma aberração... Considere isso um aviso, chegue até o final dessa newsletter por sua própria conta e risco.)

Talvez a verdadeira maldição seja como histórias sobrevivem e se transformam ao longo do tempo, a cada novo relato e a cada compartilhamento. Contamos as histórias que são fruto das histórias que ouvimos, criamos fantasmas das palavras originais até não sabermos mais quem as disse primeiro ou até se foram ditas. É assustadoramente fácil fazer uma mentira se espalhar como verdade, apontar a Fada Morgana e chamá-la de bruxa. Vivemos em tempos assustadores. O que tem me mantido com o barco flutuando é que uma maldição também pode ser uma benção. Me refugio de histórias mentirosas da vida real em histórias inventadas da ficção, sequestro as palavras de volta e faço as assombrações trabalharem para mim. Se a gente continuar contando as nossas verdades por tempo suficiente (a gente só precisa de tempo suficiente, aquela fração de segundo pra se jogar e bater a porta na cara do monstro), as histórias serão nossas e quem sobrevive no final é escolha nossa. O Holandês Voador vai agourar e navegar para sempre, e todas as nossas palavras também, é só a gente continuar falando. Teimosia e alegria, que esse capítulo de outubro vai ter fim.

Lembretes legais pra levantar o espírito (o seu, não das assombrações!)

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-- Para fãs de newsletters e fãs de Areia e Pólvora: em novembro eu vou estar no Texto e o Tempo, um evento online que vai acontecer no final de semana de 5 e 6 de novembro. Com muita gente incrível (os nomes Aline Valek e Felipe Castilho significam alguma coisa pra você??), eu vou participar de uma conversa junto de Anna Martino, Gabi Colicigno e Bárbara Morais, com mediação da Vanessa Guedes, vou falar sobre folhetins em newsletters! Você pode conferir a programação completa e ter mais informações sobre o evento aqui, e se inscrever através do Sympla aqui. Não é à toa que venho tentando falar de tempo por aqui, o texto lido no futuro não deixa de ser como petróleo ressurgindo da rocha.

....uma mensagem... o que é isso?

O meu amigo Ariel Ayres me avisou, então aqui eu deixo um aviso pra vocês também. Henrietta Lostwithiel tem uma história pra contar, e eu não sei o que será de nós depois de lermos seu relato. Esse é um fragmento de uma carta,que recebi por meios que prefiro não descrever, o que importa é: O Dama do Abismo está vindo.