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20.000 Histórias Submarinas - #14 O Tempo do Óleo

De novo, venho com um tópico que eu não sou muito próxima. Vindo agora nessa esteira de segundo turno minha cabeça segue bem estressada com crime atrás de crime, se eu tô mandando esse texto hoje é por pura teimosia. Saiu porque eu me agarrei em alguns ganchos: histórias que vão sair, eventos que vão acontecer, e por que não essa coisa que sempre está tão presente nos debates eleitorais desde sempre?

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O tempo do óleo

Petróleo, óleo, recursos minerais. O tesouro escuro cozido sob a pressão de milhões de anos de camadas de sedimento soterrando matéria orgânica. Carbono pra queimar, transformar, envenenar e sufocar. Tenho um pouco de repulsa porque me dói saber que sou (somos) ainda dependentes de derivados do petróleo — por mais que evitemos (e eu tento), os subprodutos são muitos e estão em muitas coisas que nos são essenciais hoje. Esse computador que escrevo tem derivado de petróleo. As construções de onde moro, de onde trabalho, de onde faço qualquer coisa, também tem. Fugir da família Petro não é uma escolha individual, é impossível ser bem sucedida nela sozinha. Precisa ser um esforço coletivo e consciente, e acho que vocês já sabem qual é a escolha majoritária do momento. “Recursos esgotáveis? Tudo bem, vamos botar um canudinho e sugar tudo dessa coca-cola e depois a gente recicla a latinha.” (Aliás, o que é uma plataforma petroleira se não um canudinho sugando líquido explosivo e energético? Um pouco mais, eu sei, mas me deixa)

A exploração de petróleo movimenta a maior parte da indústria náutica, uma única plataforma de extração precisa de várias embarcações e trabalhadores especializados em diferentes áreas, navios de prospecção dia e noite percorrem transecções em busca da coisa. Na verdade, boa parte da pesquisa oceanográfica também esbarra no óleo — condicionantes ambientais (ainda) funcionam suficiente para que como contrapartida a exploração as empresas financiem estudos de monitoramento ambiental de todo tipo. Afinal de contas, se aquela única plataforma tiver algum problema irremediável, o problema nem de longe vai ser só dela.

É claro que meu incômodo é com a sociedade, não o óleo em si. É só que as vezes é mais fácil deixar aquele pedacinho irracional da gente usar uma substância amorfa e milenar e altamente inflamável ser o monstro. No visco fedido funde-se um pouco de tudo que gostaríamos de manter escondido embaixo da terra.

O óleo também me lembra que não existe escapatória. Me manda um recado de micro-organismos e plantas de milhões de anos atrás que depois da morte somos apenas recursos a serem explorados, como se não bastasse a exploração em vida também. Triste fim das criaturinhas produtoras de oxigênio, arrancadas de seu local de descanso para servirem (entre outras coisas) de tapaué pra minha marmita... (e esse ainda acho um dos fins mais nobres de todos os derivados). E no caso dos plásticos mais uma eternidade é entrelaçada nessa história, porque eu vou morrer e meu corpo vai desaparecer e a minha tapaué vai provavelmente ainda estar por aí.

(Aqui vale um parêntese legal, caso você já não saiba: desapega dessa imagem de petróleo sendo feito de dinossauros. Não, gente. Pra variar, são os pequenos que fazem tudo nessa Terra. Todo óleo pode ter sua origem datada e traçada através da química de sua composição, e sabemos que as grandes jazidas de petróleo tiveram origem na matéria orgânica planctônica.)

Toda a escala temporal do óleo é desproporcional. Milhões de anos para a formação do óleo (e sob condições geológicas bem específicas!), dias e horas pra vazar e danificar quase além da reparação, minutos pra queimar, subprodutos que ainda ficarão por aí atrapalhando a nossa vida por mais sei lá quanto tempo. Até esgotarmos todas as jazidas de petróleo do mundo (e em algum momento breve iremos), vamos estar presos nesse ciclo, a etapa dos vazamentos inclusa.

O caso mais recente no Brasil foi o absurdo nas praias do nordeste. Estava em Recife na época e apesar de não ter atuado diretamente no combate, acompanhei de perto pessoas envolvidas. Como numa história de terror pra Stephen King nenhum botar defeito, ao invés da grande mancha clássica jorrando de um fosso aberto tivemos uma invasão de pedacinhos pequenininhos e infinitos. Aparecendo aos poucos, tomando uma praia de cada vez, se agarrando a pedras e corais. Não tivemos as cenas trágicas da fauna marinha completamente coberta de óleo, o mar azul tingido de marrom, as ondas grossas e pesadas. Mas não foi mais brando por isso.

Foi igualmente desesperador ver a invasão acontecendo e quanto mais se limpava mais manchas surgiam. E na verdade, ainda está sendo. Estive na Bahia mês passado, andando pela Praia do Forte vi as manchas, ali escondidas e disfarçadas de pedras — na verdade eu pisei em algumas e fiquei horas esfregando meu pé com tudo quanto é tipo de produto que eu tinha disponível pra lavar.

Nossos erros são pegajosos e uma vez expostos se recusam a ir embora. Nossos medos, nossas culpas. Podem ser queimados ou refinados e processados, mas continuarão aí rolando nas nossas praias e enchendo nossos pulmões. Acho que hoje estamos vivendo isso na prática, individualmente e enquanto sociedade.

Os relatos de quem atuou na linha de frente de contenção no nordeste me marcaram demais. Acabei transformando num conto de horror. Quando a revista Noturna abriu uma chamada de edital com o tema “Manchas” a primeira coisa que me veio a cabeça foram as manchas de óleo vindo não sabia-se de onde e parecendo que nunca iam acabar (e três anos depois não acabaram mesmo). Principalmente, os relatos de mergulhadores da Marinha que saíam da água com gosto de óleo na boca fechou um pacote de horror na minha mente, e o resultado vocês poderão ler quando a segunda edição da Noturna sair, não vou falar mais pra não dar spoiler. Contenção vai sair na segunda edição da Revista Noturna. O que posso dizer é que quando pisei no óleo na Bahia, mandei uma mensagem pra um amigo falando que tinha provado do meu próprio veneno, talvez minhas personagens tenham se sentido vingadas. Ou não.

Outras coisas entraram nessa história também. Nada como um bom trauma pra contar uma história sombria, mas esses meus pedacinhos de óleo bruto que se juntaram ao horror da realidade eu prefiro manter escondidos. Pressionados e passíveis de continuarem se transformando sob pressão.

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Nas próximas news...

Difícil Delfim e Anabela terem uma conversa de verdade com uma mãe disposta a ficar no caminho, não é mesmo?

Espero que tenham um bom final de semana, e que consigam juntar forças porque outubro tá longe de acabar.