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20.000 Histórias Submarinas - #11 - Vozes do oceano

 Hoje venho com mais um texto escrito-oceanográfico, e num tema que é, não só fascinante, mas também bastante confortável pra mim. Hoje divago sobre um dos pontos centrais da pesquisa que eu desenvolvo na UERJ: O CANTO DAS SEREIAS!

 Brincadeira, não o canto das sereias, mas algo próximo disso. E de quebra, falo de problemas no mar que você talvez não soubesse que eram problemas.

 No final, trago algumas novidades da minha escrita e um anúncio bem legal!

Então coloque seu colete salva-digitação e embarque na newsletter de hoje.

As vozes do oceano cantam “e se?”

O mar e o som são dois elementos que constantemente se cruzam na imaginação e nos sentidos das pessoas. Para quem não tem deficiências auditivas, a audição muitas vezes é o primeiro contato com o mar. Ouvimos as ondas antes mesmo de chegar na praia e encarar a imensidão toda.

Os sons de mar têm origem diversa: ondas quebrando, ondas se espalhando pela areia ou se chocando contra as pedras, animais ou objetos mergulhando ou caindo… E isso tudo falando apenas desse mundo restrito que é a superfície, quando mergulhamos um universo acústico novo se revela. Muito além do movimento da água, temos também todos os sons produzidos por criaturas marinhas e até o rugir da crosta terrestre, se estiver no lugar certo.

A verdade é que a vida marinha é bem barulhenta, no bom sentido. As baleias são as que costumam levar a boa fama de cantoras, e realmente entre elas temos as canções mais melodiosas e harmônicas aos nossos ouvidos. A frequência de canção de algumas baleias é muito próxima das frequências sonoras de músicas humanas — mas só algumas, outras (como a baleia-minke) fazem sons tão esquisitos que pesquisadores se referem a eles como “som de boeing” ou “som de star wars” (não estou brincando). Além delas, todos os golfinhos são tagarelas incorrigíveis, peixes fazem coros às vezes até com hora marcada, camarões estalam… O oceano está cheio de sinais sonoros tão diferentes que alguns nem parecem que foram feitos por animais.

(Eu queria deixar aqui alguns sons, mas não estou conseguindo colocar nem os áudios e nem os links dos vídeos,então vou deixar o link da galeria de áudios de um projeto muito legal chamado Discovery of Sound in the Sea. Tem sons de vários animais e também de processos naturais. Já pensou como é ouvir um raio caindo em baixo d’água? Aqui tem. Meus favoritos são da baleia-da-groenlandia, da baleia-minke e da foca-barbada. Escute o som da foca e me diga se não é um disco voador prestes a pousar.)

Em cada tipo de ambiente marinho, temos um conjunto de sinais sonoros produzidos pelos animais que habitam a região — a esse conjunto chamamos de “Paisagem Acústica Submarina”: a composição de todos os sons de um ambiente ao longo do tempo. As paisagens acústicas são específicas de cada lugar (inclusive, em ambientes terrestres também), já que cada região vai ter espécies diferentes ocorrendo. Então, por exemplo, num costão rochoso ao redor de uma ilha você vai ouvir muitos estalos de crustáceos, alguns peixes, e se der sorte alguns golfinhos - dependendo da época do ano pode ser que ouça uma baleia-jubarte se essa ilha for no caminho da migração dela. Já num ponto aleatório do meio do Oceano Atlântico, sem terra por perto, provavelmente vai ouvir mais golfinhos e baleias e quase nenhum peixe ou crustáceo.

Os sons são muito importantes para a fauna marinha. Embaixo d’água, a onda sonora — que você talvez se lembre de ser uma onda mecânica e que, portanto, não se propaga no vácuo — viaja com grande eficiência, muito mais rápido e com menos dissipação que as ondas eletromagnéticas. Se no ar uma onda sonora qualquer viaja numa velocidade de aproximadamente 340 m/s, na água esse valor aumenta para 1450 m/s (podendo aumentar ou diminuir de acordo com as propriedades físico-químicas da água). Ou seja, no mar, é muito mais prático se comunicar através do som do que usando sinais visuais (por sinais visuais entenda: cores vibrantes como se animais venenosos, ou movimentos como alguns animais fazem). Com as ondas sonoras, baleias e golfinhos conseguem se comunicar a grandes distâncias — no caso das baleias, podem se ouvir (e se encontrar para acasalar através disso) praticamente desde o outro lado de um oceano.

Não vou encher vocês aqui com as explicações físicas, mas algumas curiosidades interessantes:

  • Quanto maior a densidade da água, mais eficiente a propagação sonora. Nas regiões mais quentes e mais salinas, ou nas regiões muito muito muito profundas, é onde a velocidade do som é maior.

  • Quanto mais baixa a frequência do som, por mais tempo ele viaja sem ter sua energia completamente absorvida pelo meio. Um sinal emitido no Oceano Índico já foi gravado em diferentes pontos dos oceanos Pacífico e Atlântico!

  • Existem regiões onde as condições oceanográficas geram um canal de propagação ótima do som e uma espécie de sombra acústica. É nesse lugar que se escondem os submarinos para não serem detectados por sonares de navios.

  • Animais marinhos que usam o som são tão especializados nisso que é possível identificar as espécies apenas através de seus sinais. (Ou, esse é um grande objetivo de cientistas. Muitas espécies tem seu repertório acústico bem caracterizado, outras nem tanto mas estamos chegando lá!)

Acho que não é à toa que um dos seres mitológicos mais famosos do ambiente marinho tem uma conexão tão forte também com os sons. Existem muitas variações na mitologia das sereias e/ou sirenes (sirenes, aliás, que emprestaram seu nome a um grupo inteiro de mamíferos marinhos, a ordem Sirenia, que contém os peixes-bois e dugongos e que sim, cantam, mas nem de longe cantam bonito como as baleias.), mas quase todas envolvem as perigosas canções que encantam e afogam marinheiros desavisados.

O canto das sereias e as consequências de ouvi-lo é uma ótima metáfora para o que acontece para quem escuta o mar. Escuta, é seduzido por ele e pelas promessas girando nas ondas. De certa forma, foi o que aconteceu comigo. Depois que se escuta o som do oceano e se deixa encantar por ele, nos afogamos. Algumas pessoas vão trabalhar embarcadas e viver duas vidas, períodos no mar e terra que não se conversam. Outras só vão estar em paz se tiverem contato regular, vão testar os limites do próprio corpo para mergulhar, surfar, nadar, velejar. (Uma ou outra vai, ainda, se ver toda hora escrevendo sobre o oceano.)

Volta e meia ressurge um daqueles documentários de conspiracionistas sobre sons desconhecidos que obviamente só podem ser cantos de sereia que algum instituto de pesquisa quer manter escondido de você por algum motivo esdrúxulo. Spoiler: 90% desses sons desconhecidos são produzidos por algum mamífero marinho, inclusive os que parecem de alguma máquina. Os outros 10% são de máquina mesmo. Mas é fácil pensar “e se…”. Ninguém vê o que tem de baixo d’água, o que tem na escuridão do abismo profundo onde o cachalote mergulha e nos guiamos através do som e não de luz. A sedução do canto da sereia também é querer acreditar no impossível, essa coisa convenientemente escondida da luz da superfície e alcançada por mil repetições dessa perguntinha. E se?

 É o “e se…” que mantém o medo do desconhecido vivo e as vozes do mar misteriosas, esse é o poder do canto das sereias.

Em “As águas-vivas não sabem de si” da Aline Valek, o som no mar acaba tendo um papel importante na movimentação dos acontecimentos. Não vou estragar a graça da história, mas, num cenário que é uma estação submarina no assoalho submarino e com as pesquisas sendo conduzidas a tantos metros de profundidade, muitos dos equipamentos que os personagens usam se valem do som. Muitas das criaturas também. O “e se” chega pelos sons e move a trama, instiga alguns dos personagens até um ponto em que estão dispostos a tudo. (Pra saber como águas-vivas (que não emitem nem escutam sons) se relacionam com isso tudo, só lendo, então vou deixar aqui de novo: leiam esse (e outros) livros da Aline Valek.)

Gosto muito quando histórias pegam essa investigação do desconhecido marítimo e usam elementos pra além da navegação com navios e submarinos, e o som é uma das, se não a maior, ferramentas essenciais de exploração oceanográfica. Principalmente porque o som também é sobre conexão, comunicação, entendimento. Podemos aprender muito apenas ouvindo com atenção, o que é basicamente o princípio central da minha pesquisa: estudar o oceano ouvindo, sem impactar e nem fazer barulho. O que me leva ao ponto seguinte...

 Um lugar silencioso (não exatamente o filme, mas se quiser pode)

Precisamos conciliar algumas percepções.

Jacques Cousteau, com todo seu trabalho maravilho, com o documentário “The Silent World” acabou difundindo muito uma ideia que o oceano é um lugar silencioso. E não é. Ou é, mas nem tanto. Porém depende. Depende do que consideramos silêncio.

Os sons são tão parte do nosso dia a dia, que filtramos certos barulhos. É possível que você esteja lendo isso numa sala e não se dê conta mais do som do ar-condicionado ou do ventilador, ou de algum outro maquinário funcionando para sua conveniência (o computador incluso). Ou talvez não se dê conta mais de ruídos da casa, a geladeira sempre funcionado, os carros passando. Talvez, você seja uma daquelas pessoas que se chega em casa e não tem ninguém, liga a televisão ou coloca uma música. Nós enquanto animais urbanos não sabemos mais viver no silêncio e perdemos noção do que ele realmente é — inversamente, só nos damos conta de certos barulhos quando eles de repente não estão mais lá.

Quando se mergulha em qualquer corpo d’água, os barulhos da superfície ficam abafados ou inaudíveis, e de repente parece que mergulhamos no silêncio. Mas não. O mundo aquático tem seu próprio conjunto e ritmo de sons que estão ali a todo tempo, e nos damos conta deles quando paramos pra prestar atenção. O que o mar é, é um mundo de sons naturais. Ou era.

Assim como no ambiente terrestre, o mar também já conta com uma dose considerável de poluição sonora. O ser humano não consegue usar recursos marinhos sem fazer barulho, é impossível porque todo o maquinário que usamos gera algum tipo de ruído. Com isso, nossa barulheira vai se sobrepondo aos sons naturais, aos sons que os animais precisam para terem uma vida saudável. E, pra completar, a maioria dos nossos ruídos poluidores é de baixa frequência— ou seja, como disse lá em cima, alcançam grandes distâncias e poluem outras regiões além daquela em que foram gerados.

Ironicamente, a poluição sonora é um problema silencioso. Não chama atenção, não mata de imediato. Vai chegando pelas beiradas e se somando a outros tipos de poluição e contribui de forma discreta, porém constante, para degradação ambiental. Lembra que eu falei que conseguimos identificar ambientes só pelo som dos animais? Bom, a poluição sonora dificulta isso. Os sons humanos tomam conta de tudo e mascaram a diversidade acústica dos lugares.

Trabalhar com isso me deixou muito consciente dos meus barulhos e dos sons ao redor. Eu já era uma pessoa quieta, e fui ficando mais silenciosa ainda. Gosto de estar num ambiente com poucos ruídos e estar ciente dos sons individuais, de usá-los na minha rotina. Passos de alguém se aproximando, opa a água já ferveu, o carro do marido entrando na garagem, o plim do computador avisando que acabou a análise, eita alguma coisa caiu com o vento. Não é como se fossem os sinais que prestaríamos atenção no nosso meio selvagem, mas são os sons dos nossos ecossistemas urbanos e não consigo mais me desligar deles. (E sim, eu sou aquela pessoa que não consegue escrever ouvindo música, também por isso.) Lembra do filme “Um lugar silencioso” e de como as pessoas espalham aquelas armadilhas de barulho? Tanto pra serem avisadas da chegada dos monstros quanto pra distraírem os bichos? Bom, a lógica a mesma. Felizmente não estamos num contexto de sobrevivência, o que não quer dizer que nossa percepção acústica também não poderia ser bem utilizada na nossa vivência —para nós e para as outras criaturas do planeta.

As vozes dos oceanos acabam ficando um pouco sumidas no meio disso tudo que somos nós. Enquanto buscamos alternativas pra reduzir o nosso impacto sonoro, o misterioso canto da sereia tem que disputar espaço com outros elementos sedutores como mercadorias baratas cruzando os mares. A poluição sonora é um problema que, como muitos gerados pelo consumo desenfreado, não vem com soluções fáceis e sem sacrifícios de conforto, mas o primeiro passo é se dar conta dela.

Com certeza aqui, pra além de uma situação ambiental triste e real, também tem uma grande metáfora pra tudo na vida (ou até pra escrita), só que isso vou deixar pra você refletir. Quais são os sons que você deveria estar ouvindo e estão afogados pelo barulho? Quantos "e se?" você anda sem escutar?

Novidades

Eu vinha adiando uma newsletter tão fácil de escrever quanto essa porque me sentia “roubando”. Se escrever sobre o mar vem fácil, escrever sobre acústica submarina e comunicação acústica subaquática de animais marinhos vem mais ainda. Ao mesmo tempo, também é uma das coisas que eu gosto mais de falar e parecia bobo resumir aqui tópicos que eu regularmente abordo em sala de aula com gráficos e tabelas.

Mas, uma coisa MUITO legal aconteceu essa semana e era o momento perfeito! Eu fui convidada para participar de um episódio do Curta Ficção, e segunda-feira (16/05/22) vocês vão poder me ouvir conversar com Thiago Lee sobre… escrever sua nerdice!!! Foi um papo muito legal, com várias reflexões bacanas, e acabou me deixando mais à vontade ainda com várias coisas que eu escrevo (e pra fazer essa edição com a minha nerdice das nerdices). Aqui agradeço de novo pela oportunidade, Lee!

Além disso, em breve um conto meu vai sair na Seaborne Magazine, uma revista inglesa temática de mar. “Wish upon a fish” fala de sete mares e desejos que talvez não devessem ter se realizado — também tem sereias e gatos, o que deve ser suficiente pra te convencer a ler! Fiquem de olho pro anúncio da capa.

Nas próximas edições...

Na próxima semana chega mais um capítulo de Areia e Pólvora. Delfim jogou a rede e é possível que tenha pego muito mais peixes do que ele consegue puxar — sorte que Ladrão está com ele!

E depois, a chegar em algum momento, a próxima edição temática será sobre marés! Esse é outro tópico que vinha adiando, mesmo sabendo que bastante gente tem curiosidade. Agradeçam a Ana Carolina Dantas e a Carol Chiovatto por eu finalmente criar disposição pra explicar as marés!

Bom final de semana e até a próxima!