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20.000 Histórias Submarinas - #1 Cefalópodes, nossos alienígenas terráqueos

Me apresentando

Acho de bom tom começar falando um tiquinho sobre mim, já que não sei como você veio parar aqui. Eu me chamo Lis!

Uma pergunta frequente sobre meu nome é:

“Mas é só Lis, mesmo?”

É sim, fácil, né? Já o sobrenome nem tanto; dois nomes meio grandes, meio esquisitos e com mil jeitos diferentes de serem escritos. Então quando precisei começar a usar sobrenomes, fiz uma escolha. Bittencourt para a ciência, Vilas Boas para o resto. Na época eu não sabia bem o que era o resto, mas lógico que era a escrita, sempre foi. Assim, eu sou Bittencourt, L. na oceanografia, e Lis Vilas Boas nas histórias.

E sou também uma mistura dessas duas coisas, e essa newsletter é em grande parte sobre isso, o jeito que eu encontrei de ser uma oceanógrafa-escritora e uma escritora-oceanógrafa ao mesmo tempo.

Aqui espero trazer pra vocês a interseção entre a realidade e a ficção dos oceanos e tudo nele contido. Algumas vezes a balança vai pender mais pra um lado do que pro outro, mas se você já navegou você sabe que não dá pra atravessar o mar sem experimentar um pouco de desequilíbrio. Já dizia o poeta:

"Meu velho um dia falou

Com seu jeito de avisar:

Olha, o mar não tem cabelos

Que a gente possa agarrar"

Paulinho da Viola - Timoneiro

Cefalópodes e sua representação na ficção

Classe Cephalopoda, do filo Mollusca. Dentro desse grupo temos uma grande diversidade de espécies, que a grosso modo estão divididas em: polvos, lulas e sépias, e nautilus. Todas elas de alguma forma estão na nossa literatura e no audiovisual.

Eu tenho muitas coisas pra falar sobre essas criaturas, e nem vou conseguiu colocar todas elas aqui (talvez um post de blog mais completo depois? que acha?), mas a primeira coisa que quero dizer é: Desculpa.

Sinto muito que sou eu a pessoa a te dizer isso, mas mentiram pra você o tempo todo. Um dos nossos cefalópodes ícones da ficção, o Lula Molusco… não é uma lula.

Pra ser justa, ele também não é um polvo, nem nenhum outro cefalopóde que conhecemos.

O nome de origem grega usado na classificação científica é bastante intuitivo: kephale + podos, pés na cabeça. E é isso; o que define os cefalópodes como grupo taxonômico são os apêndices locomotivos conectados diretamente à cabeça, ao redor da boca.

A verdade é que é muito fácil criar um cefalópode fictício com chances iguais de errar e acertar, porque eles já são uma conjunção improvável de elementos. Muito se fala sobre os ornitorrincos serem estranhos, mas repare num cefalópode: na boca encontramos um bico, os braços têm ventosas, são os invertebrados com o sistema nervoso mais complexo, ejetam tinta quando ameaçados, alguns têm a concha dentro da cabeça, e algumas espécies até brilham no escuro! Numa outra forma de descrever, são coisas gosmentas e diferentes de tudo que se encontra em terra. (Em terra, seus parentes mais próximos são os moluscos do grupo dos gastrópodes: caracóis, caramujos, e afins. Boom!) Da próxima vez que alguém te disser que suas criaturas não são realistas, pode listar isso tudo pra pessoa.

Mas, como sabemos que o Lula Molusco não é uma lula? Bom, existem alguns números que não são negociáveis quando separamos animais por suas características físicas, e nos cefalópodes:

  • Nautilus: têm tentáculos, dezenas deles. A cabeça tá dentro da concha. A concha é externa, bem visível.

  • Polvos: têm 8 braços. Isso mesmo, braços e não tentáculos. A cabeça é arredondada, pode ter nadadeiras laterais ou não. Não têm concha.

  • Lulas e Sépias: têm 8 braços e 2 tentáculos. A cabeça é comprida e tubular, sempre com nadadeiras laterais. A concha é vestigial e interna, em formato de pena.

A diferença entre braços e tentáculos é que braços têm ventosas ao longo de todo o comprimento, e os tentáculos têm ventosas só nas pontinhas, que também costumam ser mais gordinhas. Pode voltar lá na foto do Lula Molusco e ver que ele tem 6 tentáculos e cabeça redonda e, portanto, é um caso clássico de uma mutação causada pela imaginação do artista. A única coisa "certa" sobre ele, é o sobrenome, Molusco.

Temos outros exemplos. O kraken é classicamente associado a uma lula-gigante, e existe mesmo uma lula-gigante (Architeuthis dux), mas na maioria das representações desenhadas ele é um polvo. Deixo aí de sugestão pra você reparar quando estiver entediado, ou pra lembrar quando estiver fazendo seu próprio monstro marinho.

E essa representação correta importa? Eu acho que depende muito da sua história, acho que quanto mais realismo você estiver buscando, maior deve ser o seu compromisso em acertar os bichos. Em ficções científicas e fantasias bem afastadas do nosso mundo, eu não ligo, embora alguns oceanógrafos e biólogos tenham prazer em apontar os erros. Mas agora você pode se divertir comigo olhando e sabendo se o bicho foi baseado num polvo ou numa lula ou nos dois.

O mais interessante sobre os cefalópodes da ficção, principalmente a especulativa, é que eles são quase um conceito. As pessoas não têm medo de criar um cefalópode errado — não com o mesmo cuidado com que descrevem uma baleia, pelo menos — porque a própria ideia do que é um cefalópode fica naquele campo vago da nossa imaginação onde tudo é possível, onde monstros podem ser reais.

Cthulhu, o kraken, Davy Jones do filme Piratas do Caribe, o uso dos tentáculos/braços para representar a weird fiction, a imagem de braços de um cefalópode puxando navios para o fundo, o cefalópode naquela cena (esquisita) em The O.A. … Esses animais estão presentes em muitas histórias que remetem ao nosso medo do desconhecido, que falam da nossa dificuldade em enxergar uma coisa em sua totalidade. São as criaturas viscosas que nadam na imensidão, que queremos ver inteiros ao mesmo tempo que queremos distância, que nos fascinam enquanto fazem com que pensemos duas ou três vezes antes de colocar o pé na água. São diferentes o suficiente dos outros animais pra parecer que são alienígenas, e difundidos pelo mundo o suficiente para serem um símbolo comum. Os cefalópodes estão presentes em todos os tipos de habitats marinhos, em todas as faixas de profundidade do oceano, e embora tenham uma vida relativamente curta (~1 ano), são encontrados em todas as estações. Mesmo que você não veja, estão sempre lá, e aí mora o perigo.

Contudo, nem só de medo e mistério vivem esses gosmentinhos.

A logo dessa news também vem de um cefalópode: a concha em espiral do nautilus. Esse é um caso especial, pra muito além da proporção logarítimica no formato de sua concha. Antigo, esse grupo é uma das nossas poucas conexões com um oceano que não vivenciamos. A maior parte das espécies de nautilus são encontradas no registro fóssil, sumiram muito tempo antes do ser humano surgir, e hoje temos só 6 espécies viventes divididas em 2 gêneros.

Se você leu 20.000 Léguas Submarinas (hm… que coincidência de nome, hein?), deve se lembrar que o submarino do capitão Nemo se chama Nautilus. Jules Verne não tinha tanto conhecimento quanto temos hoje, e isso é bem fácil de perceber por vários erros e preconceitos em sua obra, mas nisso ele acertou. Dentro de suas conchas, habitam regiões profundas e só vão para perto da superfície durante a noite, são os animais perfeitos para representar um submarino misterioso. E mais do que isso, são perfeitos para representar o próprio Nemo nessa sua vida reclusa, longe da sociedade, preso ao próprio passado. O ciclo de vida nos nautilus é tão complexo que a criação em aquário é bem difícil e a reprodução quase impossível. O ser humano não é muito bom em aceitar que não pode conter 400 milhões de anos de evolução num tanque, mas segue tentando... Pessoalmente, acho que vale mais a pena colocar tudo isso numa história.

Eu podia ficar aqui falando para sempre, é sério, mas sei que você se inscreveu numa newsletter e não num curso de oceanografia. Aliás, já peço desculpas pelo tamanho, prometo que estou no fim.

Eu só não posso encerrar sem fazer duas menções honrosas a cefalópodes fictícios que saem do estereótipo. Existem fofuras e alegrias a serem encontradas nos tentáculos! E braços.

Kit Fisto, também conhecido como o jedi mais simpático da galáxia, da espécie fictícia Nautolan, não tem nada de assustador e é só sorrisos!

Pérola, amiguinha do Nemo que fica constrangida ao deixar a tinta escapar, eu te amo! Ela é uma representação bem fofa de um Opisthoteuthis californiana, uma espécie de "polvos guarda-chuva". (Aliás, o dia que chegar a newsletter de Procurando Nemo, prepare um café.)

E você? Tem algum cefalópode fictício do coração? Ou tem dúvida sobre algum deles, curiosidade pelas espécies? Quer saber mais? Me pergunta lá pelas redes! Eu estou sempre pronta para trocar gifs fofos de cefalópodes gosmentinhos e fofinhos. A prova disso? Te deixo aqui com um polvo recém-nascido.

Só mais uma coisa

Já falei isso antes em algum lugar, mas caso você não saiba, essa newsletter também inclui uma história submarina escrita por mim! Bom, mais marítima do que submarina, já que os navios são voadores e os marinheiros são medrosos demais pra mergulhar nos atóis amaldiçoados… mas, detalhes!

Na próxima edição, você vai receber o primeiro capítulo de ‘Areia & Pólvora’.

As edições vão ser sempre intercaladas, uma mais como essa e uma com um capítulo novo, e elas sempre terão no título essa diferenciação pra você saber, caso não esteja interessade num dos dois tipos.

Divulgarei em breve a sinopse e mais detalhes sobre Areia & Pólvora no meu perfil do Twitter e no meu blog, fique de olho!

Agora acabou mesmo, eu falo demais, eu sei, mas sempre libero meus alunos em tempo de pegarem uma fila bem pequena no bandejão, prometo.

Um abraço cheio de ventosas, e até a próxima!